07. Post Mortem

— Você tem uma aura perversa — percebeu a entidade ao meu lado. — Tem certeza que é mesmo neto de Mavetorã Lume?

Dei uma risada.

— Não acha ela perversa? Qualé, ela roubava almas de homens e mulheres desesperados para gerar bebês que em pouco tempo ficariam órfãos — respondi, encarando-a com desdém. — Existe algo mais maldoso do que isso?

— Justo — aceitou ela. — Embora eu tenha conhecido mais de uma face dela, foi a face mais chata dela que me marcou mais.

— Eram amigas?

— Não chegava a tanto — respondeu a contragosto —, mas tínhamos, sim, um laço.

Ponderei um pouco e analisei o corpo sem vida de Amélia no chão do quarto.

— Espera, ela fazia parte da minha banda. Éramos quatro. Como vamos tocar sem ela?

— Primeira regra do nosso trato: confie em mim e terá tudo que pediu. Duvide de mim por um só minuto e perderá tudo.

— Mas eu não estou duvidando de você. No entanto, eu preciso saber o que responder quando os outros perguntarem por ela.

A entidade levou a mão ao queixo e fez sua melhor feição de pensativa.

— Diga algo trivial — respondeu. — Como: "ela foi ao banheiro, estava muito apertada".

— Tá bom. Vou para o evento, vamos tocar para várias pessoas importantes ainda hoje, então é melhor fazer sua parte.

Fúria Sanguinária gargalhou.

— Não se preocupe, querido. Já tenho tudo milimetricamente planejado. Essa festa vai ser um estouro.

Enquanto eu caminhava até a minha carona de volta ao salão de eventos, busquei dentro de mim algum sentimento de remorso ou culpa, mas tudo que eu sentia era empolgação. Eu finalmente tinha uma chance real de me tornar famoso em mãos.

Eu tinha conseguido invocar uma entidade diretamente do sobrenatural para o meu quarto de hotel e a convencido a me tornar famoso. Eu estava em êxtase com a notícia e não deixaria nada nem ninguém ficar no meu caminho, não importava quantas pessoas tivessem que ser sacrificadas para isso.

***

Quando voltei à área de festas, as pessoas estavam mais bêbadas e fedidas do que quando fui embora.

Caminhei por entre a multidão em busca de Solene, a fim de contar sobre a grande notícia envolvendo Fúria Sanguinária e o meu desejo, mas estava difícil encontrá-la em meio à tanta gente.

Em vez de achá-la, quem cruzou o meu caminho foi a dupla Tom e Jorge, que estava discutindo tal qual um gato e um rato.

— Por que vocês estão discutindo dessa vez?

— Ele insiste em mentir dizendo que aquela gata ruiva ali estava olhando para ele — disse Jorge, com seu típico olhar malicioso de quem só queria implicar. — Mas uma garota daquelas nunca daria moral para um bobão feito o Tom.

Tom tentou se defender, mas eu fui mais rápido.

— Nossas, vocês conversam tanta besteira, né — resmunguei, me afastando. — Credo!

Vislumbrei quando eles se entreolharam confusos com a minha reação azeda.

— O que deu em você, cara? — perguntou Tom. — Chupou um limão?

— Pior. Fiquei sozinho com a Amélia por mais de dez minutos.

Ambos riram.

— E por falar nela, onde ela se meteu? — perguntou Jorge, olhando para os lados.

— Foi ao banheiro — respondi. — Disse que estava muito apertada.

— De boa, vamos voltar a discutir por besteira — avisou Tom, me dando a deixa perfeita para sair de perto deles.

Nesse instante, ouvi quando alguém subiu ao palco e pegou o microfone, fazendo com que automaticamente o DJ desligasse a música. Era Solene.

— Alô, alô, pessoal — chamou ela. — Vamos começar a rodada das bandas, então peço que todos os grupos tocantes se dirijam para os camarins, para que possam se organizar.

Senti quando Jorge e Tom agarraram meu braço e me arrastaram até os camarins. Fiquei levemente nervoso porque Amélia estava morta... no chão do nosso quarto de hotel... e quem contaria isso a eles? E, pior, sem ela, nossa performance seria uma porcaria... Nossa primeira apresentação num lugar cheios de olheiros, agentes musicais e donos de gravadoras não podia ser um fiasco.

Minhas pernas pareciam estar em negação, recusavam-se a andar até o camarim. Elas sabiam que, depois de lá, a próxima parada era o palco... e lá não podíamos pisar sem a Amélia... ou pelo menos alguém que fosse bom tocando guitarra.

— Pessoal, não podemos subir ali — falei, gaguejando.

— O que? Por que? — indagou Jorge, intrigado.

— E cadê a Amélia que ainda não voltou desse bendito banheiro? — perguntou Tom, impaciente.

— Por que você está suando, Levi? — quis saber Jorge, me encarando com seus olhos de lupa. — Aconteceu alguma coisa entre você e a Amélia? Ela foi embora, por acaso?

— Mais ou menos... — tentei inventar uma desculpa, mas meu cérebro parecia estar tendo dificuldade de dissimular.

Uma tensão tomou conta do meu corpo. Pouco a pouco, pude sentir a tensão dos olhares de ambos os jovens em cima de mim, querendo explicações e criando suposições.

— Oi, rapazes — disse uma voz conhecida, me fazendo ir do inferno ao céu em segundos.

ERA AMÉLIA!

— Prontos para arrasar?

Respirei fundo. Ambos riram.

— Pensamos que você e o Levi tinham se desentendido, não sei, e que você tinha nos abandonado — comentou Jorge.

A pseudoAmélia riu e deu a resposta mais deslavada que eu já ouvi na vida.

— Nem morta eu abandonaria vocês. Somos uma equipe, não somos?

Pelo modo como a jovem respondia, desconfiei que aquela não era a verdadeira Amélia. Criei duas teorias: ou era Fúria Sanguinária ou a morte da Amélia foi só um teste da entidade para saber se eu topava mesmo ir adiante com o nosso pacto.

No mais, fiquei mais intrigado ainda quando subimos no palco e "Amélia" tocou perfeitamente bem a guitarra. Sei lá, eu sabia que magia podia fazer praticamente tudo... mas tocar guitarra também?

Decidi não questionar muito. A entidade foi bem clara quanto aos perigos de desconfiar dela, então foquei no momento, tentando dar o meu melhor para os olhos da plateia que poderiam me ascender.

No fim, quando terminamos a apresentação, fomos ovacionados e Solene subiu ao palco para me parabenizar. Ela me deu um abraço apertado, diferente do dos demais, que foi mais rápido e menos afetivo.

— E esses foram os Flamingos Vigaristas, pessoal! — anunciou ela com um sorriso enorme no rosto. — Mais uma salva de palmas para eles, pois eles merecem!

Enquanto o barulho das palmas eclodia pelo espaço, eu absorvi toda a emoção, todo o deleite, toda a felicidade do que um dia eu havia imaginado. Tínhamos tocado para uma multidão promissora e, melhor ainda, tínhamos a garantia — pelo menos eu tinha — de que aquela apresentação me faria colher frutos pelo resto da vida.

Era o meu momento. Só meu.

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