Wanzo - I
O sol escaldante alimentava as inúmeras plantações de arroz cercanas e esquentava as estradas de chão batido por onde caminhava nosso novo protagonista. As cigarras cantavam alto uma ópera que ensurdecia ouvidos passageiros, traduzida como um presságio ou mau agouro. As sandálias de Wanzo só não desgastavam por ser de madeira, pois não fez nada mais que caminhar nos últimos dias; andarilhos sem rumo eram bastante comuns naquela época, naquele lugar.
Com passos despreocupados marchava Wanzo, sua prepotência e confiança exagerada não permitia que a cautela aflorasse em cada viagem que fazia, ao contrário de qualquer outro samurai, que viajava sempre atento com dois olhos na frente e um atrás. Essa mesma convicção deixou passar despercebida a foice que surgiu repentinamente do chão e cortou seu peito, estava camuflada na areia e, presa por uma corrente, voltou para a mão do seu dono.
"Conseguiu desviar da minha kusarigama," disse um homem escondido que logo se revelava de trás de uma árvore. "Não esperava menos do grande Wanzo." Ele segurou a foice na mão direita e começou a girar a corrente com a esquerda, cujo fim carregava uma bola de ferro para equilibrar. "Eu me chamo Kasu..."
"Pode parando aí," interrompeu Wanzo abruptamente, "eu não preciso saber o nome de cada verme que passa pelo meu caminho." Se virou de frente e revelou o corte superficial que cortou seu kimono branco listrado de amarelo; mas mais surpreendente ainda, faixas enroladas em seu tórax que agora caíam no chão, expondo um pequeno volume.
"Não acredito em meus olhos," proferiu o homem. "O lendário samurai Wanzo das Montanhas é... uma mulher? Hahaha!" Ele riu em deboche.
"Eu hein, nunca vi um homem a ponto de morrer tão feliz," respondeu a samurai, arrumando seu kimono. "Minto, já vi muitos. Pelo menos, todos os estúpidos suficiente para me provocar," comentou com tom arrogante e mãos na cintura. "Deixa eu adivinhar a história," continuou, "você busca a recompensa que o shogunato colocou na minha cabeça e estava me esperando passar por esse caminho com essa armadilha ridícula. Para o seu próprio bem, espero que essa kusarigama esteja envenenada," e pousou a mão direita sobre a empunhadura de sua katana.
"Você fala demais, mulher," respondeu confiante o sicário. "Sua cabeça vai me fazer rico!" Bradou e chutou com força a bola de ferro que girava rapidamente, lançando-a velozmente na direção de Wanzo.
"Perceber que sou mulher te deu tanta confiança assim?" Jogou o ombro pra trás e desviou facilmente da bola metálica. "Mas pergunte-se por um momento," começou a andar na direção do outro, "com um nome tão famoso quanto Wanzo das Montanhas, como ninguém conhece meu verdadeiro sexo?" Se aproximou depressa do homem, mesmo com passos serenos e silenciosos. Seu advento foi tão ligeiro e repentino que o homem se assustou. A gravidade nem havia começado a puxar a pesada bola de ferro pro chão quando ela estava cara a cara com ele. "Simples, porque todos morrem antes de espalhar rumores."
Desesperado, o sicário tentou um corte com a foice e puxou a bola de ferro de volta, mas perdeu o equilíbrio, pois a corrente estava cortada em pedaços. "C-como?" Este foi o último pensamento de sua vida.
"Boa viagem ao inferno, Kasu-alguma-coisa." Quando a mão de Wanzo encostou pela segunda vez na empunhadura da katana, a cabeça do homem rolou pelo chão.
~ ⚔️ ~
O período Sengoku não foi uma época fácil de se viver no Japão. Foi marcado por constantes guerras e confrontos entre os lordes da época que lutavam pelo poder. Foram duzentos anos de conflitos que deram nascimento a inúmeros guerreiros famosos e habilidosos, assim como muitas lendas.
Yama no Wanzo, ou Wanzo das Montanhas, é uma delas. Conhecido por ser o mais habilidoso samurai do shogunato da época, com cortes tão limpos, velozes e precisos que cortavam desde o bambú até a carne e o metal como se fossem manteiga. Abandonou o shogunato por considerar um trabalho "chato demais", o que resultou na derrota e captura do shogun Ashikaga para forças inimigas, que por sua vez, resultou em uma recompensa milionária pela cabeça da samurai, tornando-a a ronin mais odiada da Terra do Sol Nascente.
Infelizmente, o caminho da espada era — com pouquíssimas exceções — seguido apenas por homens. "Samurai" era um título de nobreza, e apesar de muitas mulheres serem consideradas samurais em nome, nenhuma seguia o bushido — o caminho da espada — e o revés também acontecia, muitos homens seguidores do bushido não considerados samurais vagavam pelo país. No início, não era intenção de Wanzo esconder seu sexo, mas as vantagens de ser homem na época eram tantas que acabou disfarçando antes de se dar conta (e seu nome masculino também ajudava).
Anos passaram desde o incidente com o shogun — logo no início do século XVII — e Wanzo levava uma vida ronin, viajando a pé de vilarejo em vilarejo, acabando com gangues de ladrões das montanhas, caçadores de recompensa e outros samurais que a buscavam para testar suas habilidades em um duelo; estava sempre em uma busca incessante por adversários dignos. Havia cansado do trabalho de guarda-costas do shogun justamente por isso, seus serviços nunca eram necessários. De fato, o shogunato ter sido atacado e conquistado logo após sua saída foi a obra prima do seu azar, pois perdeu a única oportunidade de elevar ainda mais seu nome E enfrentar alguém poderoso ao mesmo tempo. "Sem arrependimentos!" Gritava em pensamentos sempre que o assunto surgia em sua mente.
~ 〽️️ ~
Suas viagens a levaram até a prefeitura de Gifu, no distrito de Fuwa. Percebeu que os moradores locais estavam agitados e nervosos, muitas famílias fugindo com trouxas em mãos.
"O que está acontecendo nessa vila?" Perguntou a um camponês qualquer. "Por que estão indo embora?"
"Não ficou sabendo? As forças dos clãs Toyotomi e Tokugawa estão marchando para Sekigahara, uma cidade vizinha daqui," respondeu o velho. "Dizem que são mais de duzentos mil homens. Essa batalha vai decidir o rumo do Japão!"
"Obrigado pela informação," sorriu Wanzo. "E por onde fica Sekigahara?"
Seguia seu caminho enquanto se informava mais sobre essa grande batalha. Aparentemente, a aliança do clã Toyotomi tinha uma força de 120 mil homens, enquanto o clã Tokugawa apenas 75 mil. Pelo menos a escolha foi fácil, "se aliar ao lado desvantajoso sempre é mais divertido," pensou. Quanto mais se aproximava da cidade de Sekigahara, mais nitidamente conseguia ouvir os tambores de guerra, logo gritos de dor e raiva, e em pouco o som de katanas chocando-se umas nas outras. O cheiro de sangue no ar e o barulho de metal colidindo emocionavam a samurai, que inspirava profundamente.
"Ai ai, guerra. O que seria de nós, meros mortais, sem você?"
A cidade estava completamente vazia, tirando pelas centenas de corpos estirados pelo chão. Os cadáveres faziam uma trilha para onde acontecia a verdadeira batalha, nos campos abertos de Sekigahara. Chegando ali, Wanzo se deparou com uma cena digna de pintura: Espadas chocando, homens caindo; flechas voando, cavalos fugindo; tambores soando, sangue escorrendo; generais bradando e o vento dançando com as folhas das árvores e a areia manchada de carmim.
As forças de Toyotomi arrasavam a aliança de Tokugawa, que cada vez mais retrocedia em sua formação, mas todos implacáveis enquanto respiravam, dispostos a dar a vida pelo seu general, Tokugawa Ieyasu. Os arqueiros de Toyotomi prepararam outra ronda de flechas, e mais uma vez o céu foi coberto e escurecido pelas milhares de setas. Escudos foram erguidos pelos samurais de Tokugawa, mas já estavam flanqueados e o fim da guerra era eminente.
Isso até as flechas começarem a cair ao chão uma por uma como se fossem gotas de chuva, todas cortadas ao meio. A perplexidade no semblante dos mais de cinquenta mil homens(os outros 150 mil já estavam mortos) só foi apagada quando viraram seus olhares ao samurai longínquo que encaixava sua katana na bainha.
"Aquele é... Wanzo das Montanhas!" Exclamou um dos samurais.
"O que ele quer aqui?"
"De que lado ele está?"
"Se cortou nossas flechas, é aliado dos Tokugawa!"
"M-mas como ele fez isso?"
"É um monstro!"
Por alguns poucos segundos, a batalha cessou com o início dos murmurinhos. Wanzo contraiu os joelhos e investiu ligeira contra o exército de Toyotomi, cortando ao meio, em um piscar de olhos, um dos samurais adversários. "Estou me aliando às forças de Tokugawa Ieyasu," manifestou em meio às tropas inimigas, "vocês são bem vindos a revidar, ou esperar que minha espada os dilacere." E dito isso, a guerra começou outra vez.
Todo guerreiro que ousava lançar-se contra ela sofria as consequências, assim como os que ousavam fugir. Com cada movimento de sua katana surgiam duas partes de um novo cadáver. O que restava do exército de Tokugawa recuperou sua esperança e, com um bravado de seu líder, voltaram a lutar uma vez mais.
A adição de Wanzo aos escalões foi esmagadora e a moral inimiga não podia estar pior. Centenas, talvez milhares, caíram pela lâmina escarlate de sangue da samurai. Em meio sua sequência frenética de cortes devastadores, Wanzo acabou por matar — sem querer — o general inimigo, Ishida Mitsunari, e não demorou para que as forças inimigas finalmente batessem em retirada, concedendo a vitória para Tokugawa Ieyasu, em uma das maiores reviravoltas da história das guerras humanas.
A batalha de Sekigahara entrou para a história do Japão como uma das mais importantes e influentes do país, e seu fruto foi o início do shogunato de Tokugawa, que unificou todo o Japão, dando início ao período Edo, período esse em que a Terra do Sol Nascente desfrutou de mais de 200 anos de paz.
~ ⏲️ ~
Mas antes de começarem esses duzentos anos de paz, um evento esquecido pela história aconteceu envolvendo o novo shogun, que agora governava na capital de Edo, e nossa brilhante samurai, Wanzo da Lâmina Escarlate (alcunha que lhe foi imposta após a fatídica batalha de Sekigahara).
O shogun Tokugawa Ieyasu convidou formalmente Wanzo para seu palácio em Edo, como forma de agradecê-la e recompensá-la por seu auxílio na guerra. Mas para o desapontamento do novo shogun, os eventos não desenvolveram como ele imaginava.
"Deixa eu ver se entendi direito," reclamou a samurai, "basicamente, você me chamou até aqui para me oferecer trabalho?"
"Insolente!" Gritou um dos serventes de Ieyasu, aparentava ser um político, "servir diretamente para o shogun é a maior honra que um samurai pode adquirir!"
"Quieto," ordenou o shogun. "Wanzo, explique-me suas razões para recusar minha oferta."
"Dessa 'honra' eu já usufrui," retrucou ela, "e não me agradou nada."
Os vassalos do shogun se indignaram com a insolência da samurai, mas se aguentaram para não intervir em uma ordem direta dele, o que era um crime pagado com a morte.
"E há algo que você queira como recompensa?" Ele perguntou. "Nunca ouvi de um ronin que oferece seus trabalhos de graça."
"O que eu quero..." ela indagou por um instante. No fundo, tudo que ela queria era um oponente a sua altura, esse foi o motivo de ter se juntado à batalha em primeiro lugar; e ter se aliado com o exército de Tokugawa não foi nada mais que um capricho, pois ao possuir menos homens seria maior o desafio. "Não, não quero nada mesmo," contestou após refletir um pouco. "Bom, se isso é tudo..." rematou e se levantou da posição ajoelhada a qual estava, preparando-se pra ir embora sem mais.
"PARADA AÍ MESMO!" Mas foi interrompida por um dos generais que ali se encontrava. "Quem você pensa que é para desrespeitar seu shogun dessa forma?!" Ele se levantou e desembainhou sua katana. "Você não passa de uma mulher, te executarei aqui mesmo!"
Ela encarou o homem com uma expressão impetuosa e, antes que o shogun pudesse proferir qualquer palavra de protesto, sua mão direita pousou na empunhadura de sua katana, e o corte foi desferido. Ninguém viu a lâmina sair da bainha, tampouco a viram entrar, nem o movimento feito pela samurai; mas todos sentiram um arrepio na espinha.
Ela deu as costas e foi embora dali.
O homem — para surpresa de ninguém — foi partido em dois, junto com sua katana e a armadura de ferro que vestia, mas seu corpo continuou em pé, completamente imóvel e silencioso, dada a velocidade e limpeza do corte. Logo, ruídos foram surgindo de dentro da estrutura do imenso palácio, e em seguida um tremor forte como um terremoto. Todos fugiram do lugar, e o que presenciaram do jardim foi a parte superior do edifício deslizando aos poucos, até finalmente cair para a esquerda e desmoronar.
Wanzo havia cortado o palácio ao meio.
~ ♀️~
Após esse ocorrido, todo e qualquer indício de história de Yama no Wanzo foi queimado e esquecido. Mesmo sendo a causa da ascensão do atual governo, o shogun não podia permitir tamanha insolência, o assassinato de um oficial do governo e a destruição de seu palácio, e uma carta de exílio foi enviada para ela, junto com um pequeno exército — preparado para o pior. Mal sabiam eles que a mestre samurai já havia abandonado o país, exiliando-se por conta própria.
"O Japão é um lugar entediante," pensava, enquanto sua pequena barca de madeira vagava perdida pelo oceano. "Ouvi falar que o mundo é imenso. Só espero que não seja tão maçante quanto isso aqui."
A decisão de abandonar aquela pequena ilha isolacionista foi o primeiro passo dado para o cumprimento do seu objetivo, e o que havia pela frente, ela nunca esperaria.
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