Sarkan - I
Os poderosos e sábios shamans de Baal Shem receberam em sonhos uma profecia. Aquela seria a última geração de Mogu, o protetor milenar da floresta, neste plano de existência, o que causaria o fim da tribo por forças exterioras invasoras. Mas, nesta mesma geração, nasceria um bebê que levaria Baal Shem até sua glória, e governaria como seu supremo líder por eras.
Este bebê era Sarkan, que desde seu nascimento foi considerado um Messias.
Filho do chefe tribal, nasceu abençoado de capacidade física e inteligência sobrehumanas. A tribo de Baal Shem tinha costume de passar o tempo livre exercitando o corpo, a mente e a alma, com diversas tradições e rituais, e uma rígida rotina de treino. Eram grandes guerreiros — mesmo que não fosse necessário lutar na Floresta de Mogu naquela época — e Sarkan se destacava em todos os aspectos desde a infância.
Os Baal Shem habitavam as ruínas de um templo subterrâneo bem no centro da floresta, por entre as raízes da grande árvore-mãe Gaia. Ruínas essas praticamente intactas, construídas diretamente em rocha-mãe, com diversos túneis subterrâneos e câmaras ocultas talhadas geométrica e perfeitamente em granito. A tribo fora atraída pela descomunal árvore Gaia, em uma de suas peregrinações, e ao explorar o lugar, encontrou as ruínas nas quais se alojaram. Encontraram dentro dos túneis grandes campos férteis para plantação, materiais e ferramentas que nunca haviam visto antes, e desenhos nas paredes que não entenderam mas veneraram.
Diferente dos Sasalisaras — a única outra civilização da floresta — os Baal Shem chegaram ali antes mesmo de Mogu, e mesmo vivendo em suas ruinas ocultas, eram constantemente alvo de caçadores e exploradores, o que os fez ter que batalhar por seu território e sobrevivência durante muitos anos. Já com a ascenção do Espírito de Mogu, eles eram e se sentiam protegidos, e o idolatravam como um deus da floresta. A partir daí, não sentiam mais necessidade de sair de suas ruínas, e então viveram ali em segredo durante todos esses milênios.
Isso até a chegada da profecia.
Sarkan, ignorando as tradições e avisos dos sábios, saía das ruínas e explorava a floresta ao seu bel prazer. Era constantemente surpreendido pelas maravilhas naturais dali, tão diferentes dos túneis e cavidades de pedra onde vivia. Mas o que mais o surpreendeu foi o próprio Espírito de Mogu, cuja intensa presença e poder sempre admirava em silêncio.
Em uma de suas expedições, o jovem Sarkan encontrou no fim da floresta um pequeno lago de água branca. O lago nascia da união de diversos canais espalhados pela floresta, e terminava no oceano Índico, onde se mesclava totalmente com o ciclo aquático do planeta. Ao beber dessa misteriosa água branca, Sarkan se sentia ainda mais forte, ágil, inteligente e principalmente lúcido.
Mal sabia ele que esse líquido branco era Ouro Monoatômico, uma substância mística que retorna todas as coisas ao seu estado natural de harmonia. Através da história da humanidade foi conhecida por diversos nomes, como Oricalco por Platão, Manna pelos hebreus, Mfktz pelos egípcios, Ormus pelo ocidente e, mais popularmente, o Elixir da Vida pelos alquimistas, um de seus principais objetivos dos longo dos séculos. Sim, o lago produzia essa fascinante substância naturalmente, através de reações alquímicas de redução de acidez e pH que ocorriam graças à um tipo de alga extremamente ácida e solúvel em um dos pântanos dali, que após vários processos transmutava a água nessa lendária substância branca.
Sarkan então começou a se interessar pelos conhecimentos alquímicos dos shamans de sua tribo, que com os milênios de estudo das inscrições talhadas nas ruínas, possuíam grande conhecimento hermético e espiritual. Começou a experimentar com o próprio ormus do lago, e a cada dia passante se tornava mais poderoso, tanto fisicamente quanto mentalmente. Infelizmente, nunca conscientemente, pois esses conhecimentos alimentavam demasiado seu ego, e o tentavam a imaginar o quão longe poderia chegar; afinal, era o messias destinado a salvar e governar sua tribo, e mesmo admirando o grande Espírito de Mogu, sabia que quando ele não estivesse mais ali, seria o novo mestre da floresta.
~ § ~
Certo dia, Sarkan desperta com um impulso, suando frio, com um forte pressentimento de que algo aconteceria. Percebeu que os sábios também estavam aflitos, e contra seus conselhos, decidiu investigar o que estava acontecendo.
Foi na borda da floresta que viu pela primeira vez um grupo de humanos que não fosse de Baal Shem, forasteiros que deturparam claramente a paz natural do lugar. Dois grupos que gritavam e brigavam uns com os outros, e no horizonte, um imenso exército que se aproximava pouco a pouco junto com animais misteriosos de metal.
Espiava camuflado entre as folhagens de um dos altos galhos enquanto o exército detia sua marcha ali perto, e logo um homem saía voando por entre as árvores, e enfrentava o exército inteiro apenas com o poder da mente, enquanto voava rapidamente e controlava as máquinas e projéteis. Sarkan se impressionou com a demonstração de habilidades psíquicas do homem, já sabia que era possível graças à influência da mente sobre o universo — a primeira lei hermética — mas não nesse nível tão desenvolvido. Então, uma das bombas explodiu numa árvore perto da onde estava, e ao se distanciar com um salto, viu um colossal buraco negro engolir por inteiro várias árvores e o próprio solo, e se enfureceu com a fútil batalha daqueles intrusos.
Seu impulso foi de saltar até eles e matá-los todos por sua insolência, mas foi interrompido por uma grande sombra que passou sobre sua cabeça e o encobriu por inteiro. Era Mogu, que caiu ao lado da grande esfera e, após girá-la pelo ar, a arremessou até os confins do espaço.
Sarkan observou tudo impressionado. Era a primeira vez que via o grande espírito atuando de forma tão ativa, feroz, em uma pura tentativa de proteger a floresta, e o admirou por completo. O viu sentar-se no chão e pouco a pouco começar a desaparecer, e sua expressão foi mudando de admiração para choque.
De repente, o grande Espírito de Mogu se foi sem deixar rastros. O poderoso protetor milenar da floresta e sua tribo evaporou no ar como se nunca tivesse existido. Observou com tristeza nos olhos a cena, e logo sua testa se enrugou em ódio, olhava de cima da árvore aqueles humanos insolentes, e sentiu o mais profundo nojo.
Voltou para as ruínas de Baal Shem e contou tudo o que presenciou com seus próprios olhos, para o desespero dos locais e principalmente dos sábios. A profecia se concretizou, e o deus protetor da floresta já não estava.
~ × ~
Alguns dias se passaram e Sarkan decidiu voltar para a borda da floresta e analisar a situação. A angústia dos habitantes da tribo era notável, e todos imploravam para que ele não se fosse. Afinal, quem os protegeria então?
"Não se preocupem," proclamou Sarkan, "eu com certeza os protegerei, foi para isso que eu nasci. Esse é o motivo da minha existência, e pretendo fazer jus a ele."
Com essas palavras, e uma pequena e afiada espada tradicional, ele partiu para o lugar onde havia encontrado o grupo de forasteiros uns dias atrás. Ao chegar, viu que ali ainda estavam, e pior ainda, haviam montado um acampamento. Se escondeu e apenas observou todo e qualquer movimento que faziam, e toda e qualquer coisa que falavam, com uma mirada vingativa e psicótica nos olhos. Percebeu que muitos estavam feridos, supôs que por algum tipo de incêndio que havia ocorrido. Decidiu então apenas vigiar o lugar até algum imprevisto de interesse ocorrer.
E assim foi. No dia seguinte, apareceu dos céus o mesmo jovem que batalhou com o exército, o que havia capturado seu interesse. Concentrou nele toda sua atenção, e pela madrugada, viu que o mesmo adentrou a grande floresta. Sem pensar duas vezes, o seguiu silenciosamente.
Foram parar em um lugar o qual já havia explorado antes, mas que mesmo muito belo e misterioso, nunca o havia fascinado tanto quanto outros. A Pirâmide de Buda. Apenas espiou enquanto o homem sentava-se no topo da pirâmide e aderia uma postura de meditação.
Sarkan pulou do galho da imensa árvore e caiu no chão de joelhos. Se levantou e, furtivamente, caminhou até a pirâmide. Conseguia sentir em sua pele a forte vibração que emanava daquele lugar, e cada vez mais potente à medida que subia as escadas de pedra do grande monumento. Chegando ao topo, viu o homem sentado de costas, e apenas ao mirá-lo, notou florescer em seu ser toda a fúria que sentiu ao ver o Espírito de Mogu desaparecer, e retirou de sua cintura a espada cerimonial.
Seus olhos arregalados e raivosos fitavam de cima aquele curioso homem que movia as coisas com a mente. Era o primeiro humano fora de Baal Shem com o qual teve contato direto. Em seu estado meditativo, ele nem perceberia. Melhor. Levantou a espada e, sem hesitar ou pensar duas vezes, cortou sua cabeça.
O corte foi tão limpo que pouco sangue jorrou, e a cabeça do homem rolou pelo chão, com os olhos entreabertos. Sarkan imitou uma garra com sua mão direita, e a atravessou com força no peito daquele homem pelas costas. Segurou seu coração, o sentiu palpitar em seus dedos, e o arrancou de seu corpo sem escrúpulos.
O coração batia fraco em sua mão, e sangue jorrava por suas válvulas e artérias. O carmim daquele suco vital o tentou como nada antes o fez, e ele mordeu o órgão com força.
Pedaço por pedaço, troço por troço, ele comeu o coração até não sobrar nada que não fosse sangue que sujava suas mãos. Um ritual ancestral e proibido de sua tribo, com intuito de absorver a própria essência de um outro. Sentiu um intenso choque percorrer todo seu corpo, e logo uma impressionante vibração percorrer por sua espinha e se espalhar por suas veias. Ele gritou aos céus com toda sua força, e toda sua raiva. E logo após, riu até seus pulmões cansarem. A partir daquele momento, ele governaria, decidiu, e aqueles forasteiros insolentes nada mais seriam que seus servos.
A Faísca do Destino era sua.
Contudo, em meio à essa cena grotesca e extremamente decisiva, uma realidade energética interessante acontecia no campo eletromagnético da Terra. Já faziam vários dias que o ser humano passava por um processo de despertar da consciência, de ascenção, através da conscientização em massa e a esperança por um futuro melhor. A Revolução de Bélanger fez com que as pessoas despertassem para uma nova possível realidade, e isso fez com que os pensamentos coletivos de todos emanassem essas altas frequências de esperança, positividade e transição, transmutando assim uma nova realidade. Toda essa energia era concentrada no campo eletromagnético que envolve o planeta, e mais especificamente, naquela grande pirâmide; o lugar que Buda escolheu, onde se cruzavam e se encontravam importantes meridianos e paralelos energéticos do planeta.
A poderosa intenção de Sarkan ao anunciar seu governo sobre os humanos afetou essa imensa torrente energética que ali se concentrava, e manifestou físicamente esse pensamento, atraindo as mais potentes sincronicidades universais para esse fim.
Utilizando todo o potencial de criação do ser humano sem nem perceber, Sarkan começou seu império.
~ ❇️ ~
Os meses foram passando e o desespero voltou a tomar conta da mente das pessoas. Basile, o símbolo da revolução e do futuro próspero, havia desaparecido. O pequeno grupo que se encontrou com Basile na Base de Mogu não foi suficiente para aguentar as expectativas de milhões de pessoas ao redor do globo, que estava em absoluta crise. Alguns projetos continuaram, e poucos até foram levados a cabo, mas com controles centralizados de indivíduos, e isso gerava fricção. Totalmente perdidas, as pessoas mais uma vez almejavam invadir a Floresta de Mogu, e os conflitos voltaram a crescer.
Mesmo sem o controle illuminati sobre os governos, a PSA voltou a invadir a floresta. Sem a presença do guardião espiritual dali, estavam confiantes de sua conquista. O que não contavam era que, na calada da noite, todos os soldados e agentes invasores do exército fossem degolados, um por um, por uma veloz e silenciosa sombra, que inundou em sangue e cadáveres o chão da secularmente imaculada floresta. Era Sarkan, que com suas próprias mãos, dizimou o exército global da PSA, em um misterioso evento que foi conhecido mundialmente como Bloody Night — a Noite Sangrenta, e trouxe consigo o fim da PSA e grande parte dos investimentos militares das potências mundiais que restavam.
Na manhã seguinte, os milhares de residentes da Base de Mogu despertaram com a forte chuva que caía, e ao levantar, perceberam a silhueta de um grande homem em pé sobre um dos galhos de uma das imensas árvores, que logo, com sua estrondosa voz, proclamou a todos:
"Eu sou Sarkan! O governante da Floresta de Mogu!" declarou e um trovão eclodiu pelos céus. "Aqueles que quiserem sobreviver neste mundo perdido e criar um novo lar, venham comigo! Eu realizarei seu desejo."
No início, relutaram, mas logo todos o seguiram. Uma longa e histórica caminhada até o centro da Floresta de Mogu, à grande árvore-mãe Gaia. As milhares de pessoas se impressionaram com a magnitude daquele lugar, e logo ouviram a voz clamar outra vez.
"Hoje é um dia especial, pois marca o início de uma nova sociedade, um novo lar para quem quiser aparecer, e respeitar a floresta como ela é. Sob a minha asa, os protegerei como meus próprios filhos. Aqui, criaremos juntos a grande capital de Vedas!"
A poderosa voz do homem transmitia uma segurança que invadiu os corações aflitos, e mesmo com a desconfiança de alguns, a maioria bradou contente por seu novo líder, e por uma nova e próspera cidade.
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Os anos se passaram voando enquanto a capital de Vedas continuava em seu constante desenvolvimento ao redor da árvore-mãe Gaia. No início, os sábios de Baal Shem estavam receosos, mas logo abraçaram a ideia de uma nova sociedade sob o comando de Sarkan, e a convivência em harmonia com forasteiros.
Milhares de pessoas peregrinavam até Vedas em busca de um novo lar, avassaladas pela perda de seus lares, a fome, e as mais diversificadas circunstâncias. Ao considerar Vedas seu lar, e Sarkan como seu líder, qualquer um era aceito, e vivia uma vida próspera ali. Muitas invasões de países desesperados por recursos também aconteciam, mas todas eram detidas e massacradas pelo grande Imperador Sarkan, que era capaz de destruir tanques de guerra com suas mãos nuas, e desviar de balas com seus impresionantes reflexos e agilidade, sendo capaz de dizimar qualquer exército enviado até a floresta. Com o tempo, elas cessaram, e os poucos governos que restavam se uniam ao supremo líder, o que apenas expandia seu território e desenvolvia ainda mais a cidade ao redor do centro da floresta.
Sarkan comandava com mão de ferro a grande capital, mas seu reinado era unido e pacífico. Sua palavra era lei, mas haviam poucas delas, entre elas, o total e absoluto respeito pela santidade da floresta. Qualquer tipo de destruição ou poluição desenfreada era severamente punida, até com a morte. É possível dizer que, nas primeiras gerações, Sarkan genuinamente desejava uma vida próspera para todos, e uma cidade livre em conexão com a bela natureza da floresta que a envolvia.
Mas isso foi mudando com o passar dos anos, quando Sarkan percebeu algo estranho sobre si mesmo: ele não envelhecia.
Com o passar das décadas, e o rigoroso treinamento físico e mental diário de Sarkan, ele percebia seu corpo tornando-se cada vez mais poderoso, flexível, musculoso — até monstruoso — e nunca se degenerando junto da força do tempo. Todos os sábios shamans de Baal Shem haviam perecido, e logo, sua própria linhagem havia sido extinguida com o passar das gerações, no que foi apenas um instante nos olhos do imperador. Ele era o único sobrevivente, e por um simples motivo, que o impressionou quando se deu conta por fim: ele era imortal.
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Os primeiros séculos desde a criação de Vedas passaram, com um início um pouco conturbado graças às invasões bélicas e a revolta causada pelo descobrimento do assassinato de Basile pelas mãos de Sarkan, que gerou revolta em milhares de pessoas que ainda desejavam um mundo livre de líderes como idealizado pelo cientista — insurgência que foi punida com nada menos que a morte — mas após silenciar a revolta, a paz voltou ao império.
Sarkan ampliou o sistema de túneis das ruínas de Baal Shem em partes privadas de raízes e ecossistemas na floresta, e construiu magníficos campos de plantação para desenvolvimento da agricultura do império, onde não disturbaria tanto o ciclo de vida natural da floresta.
O primeiro tema que o fascinou em sua jornada de pesquisa alquímica — de muitos, já que possuía extenso arquivo de livros e registros sobre o assunto — foi a existência dos cristais, logo após se deparar com uma imensa caverna de cristais naturais em um dos cantos da Floresta de Mogu, que emitia um campo eletromagnético fortíssimo por toda a área. Cristais gigantescos, de todos os tipos, padrões, cores e propriedades. Ametistas, selenitas, lapis lazulis, quartzos, obsidiananas, até raras espécies como chrysocollas, alexandritas e shungitas.. desde o chão até as paredes e o teto, tudo era coberto de imensas formações de cristais reluzentes que geravam uma atmosfera bela, fria, aconchegante e energética.
Através de um processo de cristalização alquímica e geometrização molecular, ele conseguiu criar cristais de todas as propriedades energéticas, na quantidade e volume que almejasse. Criou então um imenso castelo de cristal em volta da árvore-mãe Gaia, e elevou a capital de Vedas ao redor das árvores, com pontes e escadas de cristais de todos os tipos.
Sarkan era considerado um grande Imperador, benevolente e generoso. A vida em Vedas era plena e satisfatória, e todos os habitantes viviam alegres. A cidade foi crescendo cada vez mais ao redor da floresta, e quanto mais distante do castelo de Sarkan, mais expostas estavam aos perigos da incrível e ameaçadora biosfera. O imperador, não querendo de preocupar com isso e já não querendo abusar mais da floresta, abandonou esses povos e criou três cidades a alguns quilômetros fora da grande floresta, conectadas por estradas, no norte, leste e sul. Quetzalcoatl, Ek Chuak e Xbalanque. Criou também um exército para proteger essas cidades de animais e grupos invasores do que era o mundo pós-apocalíptico fora da Floresta de Mogu.
Os séculos foram passando e o império continuou expandindo, com vários povoados e vilarejos surgindo ao redor das três cidades. Sempre em seu castelo, o segundo grande interesse alquímico de Sarkan surgiu naturalmente quando se deparou com a ciência dos homunculus, e a criação da vida artificial.
Seus estudos avançaram muito ao trabalhar com o ormus, mas ainda faltava um importante material, que tinha muito à sua disposição mas ainda não havia ousado tocar: o ser humano. Os habitantes de seu império que o consideravam como um deus na Terra.
Apenas seus valores éticos o bloqueavam de tais experimentos, mas a tentação foi crescendo pouco a pouco cada vez mais que pensava sobre o assunto. "Pretendo viver o resto de minha eterna vida sem adquirir este conhecimento? Eu sou o grande Imperador Sarkan, não sou?!" E de repente, após reflexões, o primeiro experimento foi feito.
Como um colega alquimista, consigo empatizar com essa tentadora sede de conhecimento, pois também já a senti. Mesmo não concordando com seus métodos de experimentação, pessoalmente, não posso julgá-los... mas tudo é questão de perspectiva.
Sequestrou uma garota — que na verdade foi oferecida pelos próprios pais, pela imensa honra que seria — em plena puberdade, e utilizou seu óvulo como fertilizante e objeto de estudos de sua composição anatômica e biológica, e a relação que tinha com outras substâncias químicas. Poucos meses de intensos estudos depois, Sarkan criou pela primeira vez um homunculus, seu primeiro sucesso na criação da vida artificial, e o denominou Bishop, iniciando assim o desenvolvimento do Projeto Bishop.
O primeiro Bishop morreu depois de dois meses de vida, período que Sarkan aproveitou para estudá-lo intensivamente, e todas as características que tornavam o pequeno homunculus pouco desenvolvido tão vivo e consciente.
Mais crianças foram sequestradas para seus experimentos, e as pessoas já começavam a temer por suas famílias. Enquanto isso, a corrupção nas grandes cidades fora da capital de Vedas começava a nascer, com a expansão da instituição militar e a grande autonomia que tinham os generais sobre a região e o povo, e a submissão a qual este último sofria por eles.
Sarkan pouco se importava com as cidades fora da Floresta de Mogu, apenas desejava focar-se em seus estudos e desenvolver ainda mais seu próprio corpo já colossal com seu rígido treinamento e experimentos anatômicos. Parte sua desejava se tornar o ápice do ser humano, em todos os sentidos. A mais poderosa, inteligente e definitiva criatura no planeta Terra.
O segundo Bishop nasceu, e com uma aparência muito mais humanoide que o antigo. Era como uma pequena criança em miniatura, e portadora de grande capacidade cognitiva e capacidade de raciocínio elevado. Também conseguia se comunicar muito mais eficientemente, então Sarkan lhe deu o título de Papa, e o apresentou para Vedas como um grande guia espiritual que ajudaria com seus problemas e agonias interiores.
Após a morte do segundo Bishop, que viveu quase meio século, Sarkan decidiu estudar a própria natureza da consciência, e em que lugar se encaixavam os homunculus nela. Esses mesmos estudos futuramente seriam utilizados para o desenvolvimento dos Links, sua obra-prima.
Inspirado em projetos de controle mental antigos os quais havia encontrado em suas pesquisas, aproveitou o próprio abuso militar da época para estudar os humanos em situações de estresse, humilhação, sofrimento, e também alegria e prazer, assim como estados alterados de consciência. Foi nessa época que decidiu sair de Vedas, e deu de cara com as pequenas revoluções que começavam nas cidades ao redor, graças ao sofrimento e exploração causados aos povos mais pobres, e nas imensas áreas expandidas delas e as vilas subsidiárias vizinhas.
Obliterava as revoluções com o mesmo esforço de matar um mosquito. Nessa época, o corpo titânico do Imperador alcançava seus dois metros e meio, e seus músculos sobressaliam e se destacavam como os de um monstro. Sarkan aprendeu o prazer da batalha, e descobriu outra forma de matar seu tédio que não fosse pesquisando: acabando com insurgências, invasores e tribos nômades guerreiras. Chegava a peregrinar para outros continentes em busca de novas experiências e lugares — mas poucos se comparavam com a magnitude da Floresta de Mogu — e tribos para colonizar, principalmente adversários à altura para satisfazer os profundos desejos de seu absoluto corpo de ser usado ao seu máximo potencial.
Em uma dessas viagens, Sarkan conheceu um animal muito peculiar, que ao contrário da maioria deles, não se intimidava com sua presença. Um pequeno gato negro de olhos amarelos, magro e faminto, que se aproximou do veículo de cristal flutuante que utilizava para locomoção, o adentrou e deitou ao lado do imperador. Este ficou curioso com a natureza do bicho, se interessou por ele e o adotou.
Era um gato, que nomeou como Linx, e o tratava como um membro de sua família, com todas as regalias imagináveis, e também muito carinho, já podendo-se dizer que era o único ser vivo realmente próximo dele, sem contar os homunculus. Aproveitou também para utilizá-lo em alguns experimentos, principalmente com o ormus, e assim aumentou sua longevidade consideravelmente. Para sua surpresa, quando o gato alcançou os 100 anos de vida, sua cauda se separou em duas, e ele começou a falar a língua dos humanos, e assim podendo se comunicar diretamente com o imperador, que se impressionou com esse acontecimento místico. O gato havia se transformado em um Nekomata, e podia até andar em duas patas, como um humanóide.
Os estudos sobre o desenvolvimento repentino da consciência do gato ao virar um Nekomata aprimoraram consideravelmente a pesquisa de Sarkan sobre a natureza da consciência em seres cognitivos, e resolveu então começar o desenvolvimento dos Links, cristais cujo potencial eletromagnético interagia com o próprio campo morfogênico da consciência do ser humano, afetados por seu subconsciente, e as possibilidades eram infinitas para uma ferramenta assim, uma tecnologia revolucionária.
Enquanto isso, o povo sofria. Sarkan era consciente do abuso autoritário militar nas cidades fora de Vedas, e a corrupção era até conveniente para ele. No entanto, a capital continuava em todo seu esplendor e seus habitantes contentes como sempre. Pela memória de seus ancestrais, o imortal fazia questão de que a prosperidade do lugar fosse plena.
O desenvolvimento do terceiro Bishop começou, então. Sarkan o construiu com um corpo imortal, e o desenhou de forma que sua consciência reagisse com extrema facilidade com sua nova tecnologia, os Links. Isso foi mais difícil do que aparentava, e muitos sacrifícios humanos foram necessários, já que o sangue humano e óvulos férteis eram indispensáveis para a criação de um homunculus. Nesse ponto, Sarkan já nem hesitava ao sacrificar os habitantes do império em seus experimentos.
Então, após alguns anos de desenvolvimento e cuidado dentro de uma incubadora com uma mescla alquímica de ouro monoatômico e sangue humano, os olhos do Bishop se abrem e, desesperado por ar, ele quebra o vidro da incubadora e enche os pulmões de oxigênio como um recém nascido.
"Finalmente," ele ouviu as palavras calmas da intimidate e grave voz, "criar o homunculus perfeito foi difícil até para mim." Ele segurou a mão da criatura de cabelos loiros e olhos azuis, e a ajudou a se levantar, e logo deixou em suas mãos uma esfera dourada que começou a brilhar. "Principalmente um que reaja tão bem com o Link. Você me será útil, Bishop"
Ele era inteligente, muito mais que seus antecessores, o organismo perfeito. Desde o nascimento ele ponderava o motivo de sua existência, afinal, era apenas uma vida artificial, o terceiro do projeto. Sarkan o nutriu, o ensinou e o guiou. O fez perceber seu lugar no universo e no império.
Ao homunculus foi conferida a posição de Papa, então. Se preocupava com os habitantes do império, os achava curiosos, os analisava e desfrutava ao seu lado. Comunicando-se com e influenciado por eles ele crescia rápido, aprendia rápido e evoluía rápido. Era visto por todos como um ser de luz, e respeitado como uma grande autoridade imperial até pelo alto escalão do exército, segundo em comando apenas ao imperador. Sarkan deu um objetivo concreto ao homunculus, uma razão para seu existir, que era fazer com que Vedas fosse a mais magnífica cidade até o fim dos tempos, e que ajudasse com as necessidades, males e preocupações de qualquer um que o buscasse na bela Igreja de Hermes, outro gigantesco monumento de cristal que criou.
Bishop começou a acompanhar Sarkan em suas expedições fora da floresta, e se deu conta do imenso sofrimento causado ao povo de fora explorado, que sofria nas mãos de um governo corrupto e um exército totalitário, e seu coração doía ao presenciar as atrocidades que passavam batidas aos olhos do imperador. Sua condição biológica homunculi superior fez sua consciência despertar furiosamente com a empatia que sentiu pelos pobres sofredores, e começou a ajudá-los como podia.
Também presenciava o imperador massacrar tribos de guerreiros bárbaros e nômades, em busca de aventuras e básicos recursos que facilmente encontraria na grande floresta. Na verdade, Bishop sabia que o imperador o fazia apenas para seu divertimento pessoal, mesmo que ele não admitisse, e era uma visão que sempre causou incômodo no interior do Papa. Sarkan então sempre fazia questão de deixar um único sobrevivente, e com ele, um Link adormecido. Afinal, buscava também conhecer o verdadeiro potencial do Link, e esse era um dos possíveis métodos de descobrí-lo, através do ódio e o desejo de vingança de suas vítimas como forma de liberar suas capacidades latentes.
Ver diferentes povos, culturas e pessoas sendo aniquilados por motivos tão banais ia contra a natureza benevolente do Papa, que era mais feliz ao ajudar os habitantes de Vedas com seus vazios existenciais e preocupações do dia a dia, e também peregrinando às outras cidades do império e aliviando seu sofrimento como podia, com a grande influência que tinha como a máxima autoridade religiosa dali.
Mesmo assim, Bishop admirava Sarkan como seu sábio e consagrado criador e imperador, possuidor de profundo conhecimento e poder. Simplesmente não conseguia, mesmo contra sua vontade, desobedecer as ordens dele, e suas próprias mãos já haviam cometido muitas atrocidades, as quais todas as noites eram relembradas em forma de terríveis pesadelos que provinham do fundo de seu subconsciente — e que muitas vezes eram aliviados com substâncias criadas pelo próprio Sarkan.
Certo dia, rumores surgiram sobre o grande clã dos Azai, guerreiros nômades ancestrais que viajavam pelo mundo desde séculos atrás, dotados de grande força física e técnicas marciais milenares, perdidas no tempo. Evidentemente, Sarkan se animou com as notícias, e foi em busca do terrível clã para matar seu tédio mais uma vez, e levou consigo o Papa como única e fiel companhia.
Foi árdua a batalha do famigerado estilo marcial dos Azai e seus grandes mestres, contra toda a fúria e poder do grande Imperador Sarkan. Batalha essa que durou horas a fio, e pouco a pouco, os mestres Azai foram caindo um a um, até os únicos resquícios do poderoso clã não serem mais que troços de corpos, poças de sangue e um pequeno garoto em estado de choque. Bishop era o responsável de instalar o Link nos sobreviventes dos massacres de Sarkan, e foi o que fez ao se aproximar do pequeno com lágrimas nos olhos e conectar o cristal na mão direita dele, enquanto implorava: "viva, por favor, viva!"
Quem diria que, quase três décadas depois, essa mesmo garoto fosse ser a fonte de tanta turbulência no grande império construído com o passar do milênio. Império que, aos olhos do imperador, era como um tabuleiro de xadrez, um laboratório, e um brinquedo para satisfazer suas necessidades e desejos.
~ ㊙️ ~
Mao. O nome já ecoava pelo continente junto com o vento através das bocas do povo, após suas grandes conquistas. A destruição de vários pelotões do exército, e também uma das consolidadas e principais bases militares, a de Ek Chuak, e seu infame general Bakulu, que agia sob ordens diretas do próprio Sarkan.
Dois meses depois, fora a vez de Bishop de perecer. O gentil Papa aceitou seu destino como um karma necessário, e em seus últimos momentos, pediu perdão pelas diversas atrocidades que ele mesmo havia cometido, e misericórdia divina pela maldade de seu criador, que fora simplesmente outro corrompido pelo próprio poder, conhecimento e potencial.
"Não pode ser!" Sarkan gritou e estourou o copo de cristal em sua mão sem nem perceber, assustando o gato que deitava em seu colo, "Bishop está morto?!" Sua reação foi de choque e surpresa ao receber a notícia. Um humano capaz de superar e matar Bishop, sua criação mais definitiva, em posse do mais poderoso Link, sua mais inovadora invenção? "Heh," um sorriso foi esboçado em seu enorme rosto coberto pela sombra, barba e bigodes negros, "Mao. Esse homem deve ser realmente incrível, então," e riu. "Não vejo a hora dele chegar aqui para finalmente darmos as caras! Será um encontro e tanto." Seus grandes e descomunais punhos cerravam no ar, e apenas sua intenção emanava uma aura agressiva e inquieta, que fez o nekomata pular de seu colo e sair dali.
Sarkan não tinha ideia que este homem, Mao, era o mesmo garoto do clã dos Azai, mas imaginou que fosse o sobrevivente de algum dos povos que arrasou.
E o homem já estava de caminho ao castelo de cristal. O fatídico encontro dos dois, que determinaria o futuro da humanidade, estava prestes a acontecer.
Ambos estavam ansiosos.
E já faltava pouco.
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