Basile - I
A história de hoje prova que o destino, apesar de ser muitas vezes irônico, a maioria das vezes (quase sempre) é simplesmente aleatório, e dessa aleatoriedade saem as coincidências mais impressionantes de todas — que também são um mistério por si só.
Em 2001 nasceu em Bourdeaux, na França, Basile Lachance Bélanger. Filho único de uma família pobre em uma cidade pobre. Fruto do amor de um casal aparentemente estéril, que conseguiu conceber sua existência depois de três anos de tentativa, esforço e esperança.
Desde que nasceu, Basile (assim nomeado em homenagem ao seu avô, de mesmo nome) demonstrou ser um bebê extremamente inteligente, as vezes até demasiado; com três meses de idade aprendeu a falar e com cinco a caminhar. Sua criatividade e genialidade afloravam com cada dia passante e seus pais o chamavam carinhosamente de "gêniozinho".
PS: Considero uma das melhores partes da onisciência saber os pensamentos de pessoas tão extraordinárias. Ouvir os pensamentos daquele bebê enquanto seu cérebro se desenvolvia cada vez mais rapidamente e os dias passavam foi uma experiência simplesmente indescritível.
A vida do jovem Bélanger até seus quatorze anos pode ser dividida em três eventos importantes que marcaram o início de três períodos diferentes. O primeiro foi aos três anos de idade, pouco depois de entrar para sua primeira escola em Bourdeaux para crianças híper-dotadas.
Estava sentado estudando os livros de física que havia recebido em sua primeira semana de aula e percebeu que havia esquecido sua caneta sobre o armário perto da porta quando foi receber seu pai do trabalho. Lia sobre as leis de Newton(que eventualmente se tornaria seu maior ídolo) em seu livro e, ao olhar para a caneta longínqua, pensamentos estranhos passaram pela sua cabeça; "o que realmente me impede de alcançar a caneta desta distância?" Ele se concentrou em seus pensamentos e imaginou a caneta movendo-se em sua direção por dentro de um tubo no ar e, aos poucos, a caneta começou a se mexer.
Nesse dia, aos quase quatro anos de idade, Basile Bélanger descobriu suas habilidades telecinéticas.
Sua vida desde então se baseava em desenvolver seu dom telecinético — em segredo — e estudar, principalmente física, a matéria pela qual mais era apaixonado. Adorava saber como o mundo funcionava e suas leis; "se eu souber exatamente o que é o nosso mundo e como funciona, desde suas fundações, o que vai me impedir de criar meu próprio mundo um dia?"
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O tempo foi passando como sempre faz, o que nos leva até o segundo evento marcante de sua vida, sua entrada na faculdade de metafísica no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, aos dez anos.
Ser um gênio não era a coisa mais saudável para uma criança de dez anos (ou qualquer idade). As expectativas dos outros e a pressão incubida eram esmagadoras, mas para o menino Bélanger, ver o sorriso de seus pais e a expressão de orgulho esboçada em seus rostos ao ver seu pequeno milagre, tão jovem, aplicando-se para uma das melhores universidades do mundo, e a melhor da Suiça, com tão pouca idade, era suficiente para fazer com que Basile desse o máximo de sí.
Viajaram os três de carro da França até a Suiça, uma viagem de quase dois dias(quatro, contando a volta); apesar de muito calorosa e amorosa, a família do garoto ainda era bastante pobre e estavam apostando nele tudo que tinham agora.
Quando chegaram na universidade no dia da prova, acompanharam o menino até a porta da sala e o observaram travar e engasgar com a própria saliva enquanto ele encarava os outros participantes, todos adultos, preparados e mal-encarados, como se estivessem prontos pra guerra. Estava em um ambiente completamente alien e tremia de nervosismo dos pés à cabeça.
"Vai lá e destrói, meu gêniozinho," foram as palavras que o encheram de coragem e o fizeram parar de tremer, vindas de seu pai seguidas de um cafuné e um abraço caloroso da mãe. Nesse dia ele aprendeu o quão preciosa era sua família, e seu elo se fortaleceu ainda mais. O garoto passou com notas máximas em todas as matérias.
Esse evento marcou em sua vida o início de um período de estudos intensos. Se formou em dois anos e logo depois adquiriu seu doutorado, especializando-se em matéria escura. Foi considerado por diversas revistas científicas da época como o maior prodígio dos últimos tempos, com uma mente quinhentos anos adiantada de seu tempo e foi capa da revista People, que o nomeava o "cientista com o futuro mais brilhante".
Entretanto, apesar de suas numerosas pesquisas e insights no mundo acadêmico, Basile Lachance Bélanger nunca havia aceito propostas de entrevistas nem discursos, mesmo tendo sido convidado por diversas emissoras de televisão e rádio do mundo todo e muitas universidades prestigiadas. Seu sonho era que seu primeiro discurso fosse o mais bem-recebido e revolucionário para a comunidade científica da época, onde revelaria o resultado de seu mais importante projeto — até o momento — uma maneira de detectar, estudar e possivelmente manipular a matéria negra.
Enquanto isso, sua capacidade telecinética cada vez mais superava seus limites. Com o passar dos anos foi evoluindo desde mover canetas até fazer flutuar carros e caminhões (e inclusive parar um trem em movimento em seus trilhos, uma vez).
Percebeu que ao invés de mover objetos cada vez maiores e mais pesados, seria mais eficiente controlar coisas menores com mais precisão. Começou abrindo garrafas d'água e latas de sardinhas, enroscando parafusos e completando tarefas simples e básicas de casa, e foi evoluindo até conseguir desmontar e remontar completamente eletrodomésticos e eletrônicos, desde que conhecesse sua estrutura.
Eventualmente seu controle sobre a matéria foi alcançando tamanhos mais extremos, até chegar no nível molecular; foi aí que o garoto percebeu o horizonte quase sem fim que sua habilidade poderia alcançar. Poderia controlar pessoas de dentro para fora, manipular toda a estrutura de seu DNA, acelerar regeneração de feridas e curar diversas doenças — coisa que estava bastante disposto a fazer — e, manipulando com extrema maestria partículas, transmutar elementos e objetos sólidos. Quanto mais conhecimento adquiria e quanto mais entendesse sobre as leis do universo, com mais eficiência poderia manipulá-lo com sua telecinese e com a ajuda dessa mesma, poderia fazer experimentos que ninguém jamais conseguiria e manipular ainda mais o mundo à sua volta.
"Com esse poder e meu conhecimento, eu realmente posso melhorar a vida das pessoas, eu posso fazer a diferença... eu juro que um dia vou tornar o mundo um lugar melhor," sonhava o rapazinho.
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Finalmente havia chegado o dia fatídico, e o mundo esperava ansiosamente pelo discurso que o garoto daria na universidade de Cambridge sobre suas novas descobertas. Um evento exclusivo altamente divulgado pela comunidade científica. Todos estavam curiosos para ouvir o que o garoto chamado de "cientista do futuro" tinha para revelar sobre a matéria escura, que ainda era bastante misteriosa na época.
Faltavam cinco horas para o discurso, mas o pequeno já estava na universidade se preparando. Tinha um roteiro com dezenas de páginas contendo tudo que deveria dizer e se tremia todo de nervoso. O avião de seus pais estava atrasado e o garoto estava preocupado por eles, precisava ouvir aquelas palavras que uma vez o acalmaram e o encheram de coragem, era tudo o que precisava num momento como aquele.
E esse foi o terceiro evento marcante que consistiu sua vida até os quatorze.
Estava sentado na frente do espelho treinando suas falas quando resolveu descansar e pegar seu celular para mandar uma mensagem a seus pais, mas acabou se deparando com um site de notícias com o seguinte cabeçalho urgente: "avião vindo de Bourdeaux rumo à Inglaterra cai hoje após ser alvo de ataque terrorista".
As horas passaram rapidamente e, de repente, faltava apenas meia hora para o início do discurso e vários professores da universidade rodeavam o menino Basile. Eles sabiam da notícia e estavam ansiosos, mas dissimulavam, resolveram não comentar nada pois não queriam abalar o psicológico do garoto em um momento tão importante, nem imaginavam que ele já havia se inteirado de tudo. Estava chocado e seu coração chegava a doer enquanto batia frenéticamente, mas ele se segurou.
"Meus pais estariam orgulhosos de mim agora. Tenho que aceitar, tenho que aceitar, tenho que aceitar, tenho que aceitar," pensava repetidamente, "é o que eles iriam querer." E segurava as lágrimas com esses pensamentos.
O momento chegou.
No palco já estava há um tempo um professor dando um discurso introdutório, que logo pronunciou as palavras aguardadas. "And now, ladies and gentleman, we at the university of Cambridge have the pleasure of hosting the first ever public speech of the Scientist of the Future, doctor Basile Lachance Bélanger." Os aplausos eram ensurdecedores. Todos estavam ansiosos para ouvir as palavras do garoto de treze anos que supostamente mudariam o rumo da ciência moderna com as descobertas que sua mente centenas de anos avançada traria.
Ele subiu no palco com seu ritmo lento, aproximou a boca do microfone e observou aquele mar de gente. Todas as cadeiras ocupadas e diversas pessoas em pé, dezenas de fotógrafos e câmeras que transmitiam ao vivo o evento para diversos outros lugares do globo. A pressão era demais. O menino sentiu pterodáctilos em seu estômago e engasgou. Lembranças de seus pais começavam a brotar na sua mente a cada segundo de silêncio. As pessoas, curiosas, começavam a sussurrar e cochichar, mas o menino não escutava nada. Nada, até...
"Vai lá e destrói, meu gêniozinho,"
as palavras de seu pai ecoaram em sua cabeça; se curvou para o lado e vomitou ali mesmo.
Todos ficaram perplexos enquanto observavam boquiabertos o menino sofrer repentinamente e, após uns segundos, com as mãos no estômago, começou a chorar e gritar e tossir desesperadamente, e finalmente as lágrimas começaram a escorrer. Foi aí que os seguranças interviram, correram até ele e com o maior cuidado do mundo o retiraram do palco.
Os convidados olhavam uns para os outros eufóricos, perguntando-se o que havia acontecido; e o que no início era pena e preocupação foi se escalando em algo cada vez mais escuro.
"A pressão?"
"Coitado, até vomitou."
"Nervosismo, será?"
"Então o gênio do futuro não aguentou o tranco."
"No fim ele é só uma criança."
"Isso que dá dizer que o futuro da ciência está nas mãos de um garotinho."
"Tanto estardalhaço pra nada."
O menino estava na enfermaria da universidade com os dois seguranças e diversos professores, todos preocupados e confusos. Um deles trouxe um copo d'água para o garoto, enquanto um dos seguranças o abanava com um caderno.
"Me deixem sozinho um momento, por favor," pediu o menino Basile com a voz baixinha e, após pouca relutância, saíram todos dali.
Ele se sentou de baixo de uma mesa com o rosto afundado nas pernas e as mãos sobre os joelhos. Memórias de sua família fluíam pela sua mente e escorriam em forma de lágrimas. Lembranças dele abraçando sua mãe enquanto fazia os sanduíches de presunto para seu lanche; de passar horas vendo seu pai pintar quadros o pouco que sabia, mas adorava. Ele chorou, chorou, soluçou e chorou mais. Aquele sentimento simplesmente não parecia ser real, nem aquela situação.
Ele não se aguentou e gritou em desespero tudo que seu pulmão conseguia aguentar, gritou toda a dor que estava sentindo e toda a dor que haveria de sentir. Seus gritos aflitos podiam ser ouvidos agudos ecoando pelos corredores da universidade, e logo, altos e poderosos estouros saíram seguidamente de dentro da enfermaria.
Todos que esperavam ali fora entraram rapidamente, preocupados com o que poderia ter acontecido, mas encontraram apenas o menino de pé no centro da sala agora vazia. Todos os móveis haviam virado pó e flutuavam ao redor da criança, preenchendo a sala. Camas, lençóis, cortinas, armários, remédios, papéis, recipientes de vidro... tudo pó.
Eles admiraram aquela cena impossível, assustadora e estranhamente bela, enquanto se olhavam com expressões confusas.
O garoto já não chorava mais. Limpou suas lágrimas com a manga direita do terninho que usava e em meio a soluços, disse: "já estou melhor, obrigado. Me desculpem, mas não estou em condições de falar em público hoje. Se me permitem..."
Ele saiu dali e foi embora sem mais palavras.
O escândalo que foi o resto dessa convenção e a revelação para o mundo de que os pais do menino foram vítimas do terrorismo são histórias para outro dia.
Essa criança pode ser considerada como o maior acidente do destino, um verdadeiro glitch na Matrix. Um gênio com uma mente quinhentos anos avançada de seu tempo, um mestre telecinético capaz de manipular o mundo ao seu redor com o poder da mente e, depois daquela fatídica experiência, um dos raros seres vivos que acendeu a Faísca do Destino.
Basile Lachance Bélanger é, sem dúvida, a maior, mais perigosa e, possivelmente, mais importante coincidência no quase infinito vaso do destino.
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