Capítulo 12


17 de setembro de 2012, segunda-feira

Ao lado da multidão, Sombra caminhou pelo comprimento entre a pista de dança e a saída, procurando por qualquer suspeito que tivesse começado a confusão. Ele parou e observou como ― sem nenhuma razão aparente ― as pessoas continuavam correndo e gritando desesperadas, nem mesmo notando que não havia "nenhum" perigo ou que estavam correndo para lugar nenhum.

Sombra vasculhou com os olhos procurando por alguém que parecesse suspeito, mas todos os rostos eram os mesmos. Então, quem quer que tenha começado aquilo, só podia estar...

Sombra virou-se em direção à saída de emergência que havia sido aberta quando os gritos se iniciaram. Do lado de fora da porta só parecia haver a noite escura e cegante.

Repentinamente, a multidão mudou de forma.

No centro da evacuação se formou um buraco, como uma pedra numa correnteza e, deste buraco, surgiram formas humanoides.

Sombra cerrou os dentes e os punhos, contendo-se no mínimo.

Eram três criaturas masculinas: um homem-de-prata, um homem-peixe, e um adolescente de algodão-doce. Suas expressões desprezíveis e prepotentes. Eles certamente achavam estar em vantagem. Sombra queria cuspir ali mesmo.

O homem-de-prata parou diante de Sombra, deixando a multidão continuar imutável. Ele era uma cabeça mais baixo que o Bom Mestiço e, ainda assim, olhou para cima com o queixo soberano. Os outros dois atrás deles zombando em suas expressões.

― Caçador. ― o homem-de-prata cumprimentou.

Sombra levantou o próprio queixo quadrado, olhando para baixo nos olhos talhados do outro.

― Criatura. ― Sombra cumprimentou de volta, a contragosto.

Um brilho de raiva cresceu no rosto do homem-de-prata.

― Como sempre, a educação não se destaca nos que convivem entre humanos.

― Igualmente àqueles que vem do lixo de açúcar.

O adolescente de algodão-doce avançou para ultrapassar o homem-de-prata, e confrontar Sombra, mas o homem-peixe o segurou por um de seus palitos.

― O que fazem aqui? ― Sombra inquiriu. ― Se brincar com humanos se tornou um hobby de sua majestade de prato, então eu sinto em informar, mas esta dimensão não está à deriva.

― Minha majestade, Selana Branca, a primeira e única Rainha Doce de porcelana articulada, não é um prato. ― o homem-peixe balbuciou com seu bico.

― Eu adoraria fazer dela um prato barato.

O homem-de-prata grunhiu, e pulou na direção de Sombra, que agarrou diretamente o outro pelo pescoço e apertou. Apesar do que parecia, o homem-de-prata não era rígido, mas mole como carne humana. Sombra o levantou pelo pescoço e aproximou-o de seu rosto, lívido de raiva. Ele sibilou, cuspindo saliva:

― Eu tô pouco me fodendo pra merda da tua rainha. Enquanto vocês, bando de cú, protegem ela, ela almoça peixe e usa prataria. Se vocês são tão inúteis e não conseguem pensar por si, então, o que eu tenho a ver com isso? Agora, eu me importo muito se invadem o meu território e fazem o caralho a quatro. Aqui não é a merda da praça de vocês.

Sombra pausa, seus olhos avermelhados se voltam para os outros dois antes de continuar:

― Eu vou perguntar três vezes e, a cada pergunta não respondida, eu arranco um membro de um de vocês. ― o homem-de-prata, preso por Sombra, engasga e tosse, seu olhar não mais pretensioso. ― Qual a porra da intenção de vocês com isso? Qual é o plano e por quê?

Os três cidadãos do Reino Doce arregalam os olhos, temerosos. Eles sabiam de antemão que iriam encarar o chefe local dos Bons Mestiços, entretanto, acharam que seria fácil assustá-lo com o truque de teletransporte. Eles não conseguiam entender por que não havia dado certo.

― Eu devia começar com quem? ― a voz de Sombra os traz de volta de seus pensamentos pequenos e uma risada rouca e alta ressoa, arrepiando cada poro de seus corpos.

A risada circulou por cada canto da boate e atingiu cada ouvido, fazendo com que os seres hipnotizados saíssem de seus transes e parassem de correr, aos tropeços.

Sombra lançou uma olhadela para o lado quando Asafe se aproximou com ambas as mãos dentro dos bolsos, os olhos risonhos e afiados. Sombra voltou-se então para o homem-de-prata sob sua chave-de-braço.

— Tu tem dois segundos pra responder. — ele disse diretamente, fazendo o homem estremecer. — Um. Dois.

Um grito alto foi proferido quando Sombra bateu o homem para baixo violentamente, fazendo suas pernas baterem contra o chão e quebrarem-se. O homem-de-prata chorou. Os outros dois docendentes tentaram correr na direção da saída, mas foram barrados por uma força invisível — Otton.

— Hm, acho que eu cometi um pequeno erro. — Sombra falou, olhando na direção do homem-de-prata. — Parece que eu quebrei não um, mas dois membros. Eu não posso ser tão injusto com vocês.

O adolescente de algodão-doce, cuja pele macia e em nuvem tremia descontroladamente, se atreveu a perguntar: — V-você vai aumentar as chances?

Sombra riu.

— Não seria ainda melhor quebrar dois de vocês também? — os dois docendentes arfaram. — Vamos para a segunda chance: qual é o plano e por que Selana está fazendo isso?

O homem-peixe gaguejou.

— Essa não é a mesma pergunta de antes.

— Um.

— NÃO É A MESMA PERGUNTA.

— Dois.

Sombra estendeu uma mão em direção a Otton, que prontamente lhe entregou um copo com líquido. Ele se aproximou a passos firmes dos dois, enquanto os mesmos tentavam recuar para longe, mas eram incapazes de se mover. Sombra parou em frente ao adolescente e derramou em duas vezes o líquido no montante de açúcar que era seu quadril e peito, deixando os palitos expostos como esqueletos. Suas pernas de palito cambalearam, enquanto o menino gritava e despencava diretamente no chão. O homem-de-prata, e o homem-peixe gritaram em uníssono, sofrendo pelo garoto cuja cabeça e palitos foram os únicos a restar.

— SEU MONSTRO! CAÇADOR DE MERDA! — o homem-peixe berrou na direção do Bom Mestiço, saliva pulando de sua boca circular e suor mucoso escorrendo por suas escamas.

— Próxima chance. — Sombra parou em frente ao homem-peixe, sua expressão imutável. — Qual o plano e com quem Selana está aliada?

Os olhos do homem-peixe se arregalaram instantaneamente. Ele engoliu em seco.

— Um.

— ESPERA, ESPERA. Eu.... eu digo, eu digo. — ele gaguejou em voz muito alta. — Sua majestade esteve sem grandes preocupações ultimamente e esteve planejando causar um pouco de bagunça no reino humano, porque ela sabia que seria caótico.

Sombra lhe lançou um olhar.

— Você está me dizendo que ela só tá brincando?

O homem-peixe balançou a cabeça fazendo seu corpo ― sem pescoço — balançar freneticamente. Sombra manteve uma aparência pensativa por um segundo antes de puxar as duas barbatanas do homem-peixe para fora de seu corpo.

O homem-peixe caiu para trás surpreso e com dor, seus olhos vermelhos de choque.

— MENTIROSO! FILHO DA MENTIRA! — o homem-de-prata gritou do chão. Sombra virou para ele. — Ele já respondeu e você fez isso com ele do mesmo jeito! Assassino! Caçador!

Sombra se aproximou dele a passos lentos.

— Tu espera que eu acredite nesse tipo de desculpa pobre? — Sombra suspirou uma risada. ― Então, sua rainha quer brincar no meio de um acordo diplomático? Que piada.

O homem-de-prata gritou quando seu estômago foi chutado pelas botas pesadas de Sombra.

― Eu juro, eu juro! ― o homem-de-prata falou. ― Sua Majestade senta em frente ao seu espelho translúcido e se diverte com o desespero dos humanos.

― Isso não parece uma história pra dormir? ― Sombra perguntou em direção a Otton, seu sorriso zombeteiro em um rosto rígido de raiva. ― Então, sua rainha, uma ninguém, que sequer tem acordo com qualquer dimensão, tem o poder de simplesmente sentar e aproveitar um show?! Será que ela é tão burra ao ponto de achar que ficaria impune?

O homem-de-prata cuspiu a saliva engatada em sua garganta antes de murmurar: ― Minha rainha não é uma ninguém.

― UMA NINGUÉM! ― Sombra esbravejou de volta, seus olhos cheios de sangue. ― Uma criatura ridícula e maníaca que me faz querer vomitar.

O homem-de-prata lhe lançou um olhar de baixo, suas palavras de ódio guardadas no peito.

― Sua rainha não possui poder nenhum, nem força nenhuma. ― Sombra se agachou diante do homem docendente ao chão. ― Ou eu devo começar a acreditar que ela, misteriosamente, pode observar a Terra por um espelho mágico do buraco onde ela tá enfiada? Ou eu devia crer que ela agora é capaz de praticar magia pra fazer portais? É isso?

O homem-de-prata desviou o olhar do Bom Mestiço.

― Nós dois sabemos quem está compactuando com isso. Diga claramente ou eu vou deixar Otton derreter você como a porra de uma vela.

O homem-de-prata estremeceu visivelmente ao lançar um olhar para a figura completamente preta de pé atrás do Bom Mestiço, um isqueiro de prata em mãos. Ele voltou para encarar os olhos vermelhos e sanguíneos do caçador. Eles não deveriam ter encontrado tanto infortúnio. Não estava mesmo nos planos. Ele amava demais sua majestade ao ponto de matar, mas ainda tinha parentes e seres importantes para ele. Matar era uma coisa, morrer...

― Do C-Cin-Cinzaral... ― ele gaguejou, tomando toda a sua força para isso. ― Um reino do Cinzaral fechou os olhos de minha rainha e a corrompeu com desejos gananciosos.

― Fale direito! ― Sombra o cortou, impaciente.

O homem-de-prata tremeu e tomou alguns goles de ar antes de continuar.

― O reino sombrio... o reino tomado por cinzas e desgraça. ― a voz do homem tremeu. ― A governante louca convenceu minha majestade de tais insanidades.

Sombra olhou para Otton, pensativo.

― Tu tá falando de...

― Luz Sombria. A governante que rouba a magia dos súditos.



Mourana observava do sofá, enquanto Sombra dava voltas no centro do escritório de Otton, andando de um lado para o outro sem parar.

Sua mente já havia se estabilizado e sua memória estava em perfeito estado, ao ponto de ela se sentir constrangida em seu íntimo. Mas o que havia para se envergonhar, eles eram adultos. Certo?

...

Certo.

Asafe, de sua poltrona, observava com olhos límpidos o Bom Mestiço atravessar todos os cantos de sua sala, gastando o tecido de seu tapete importado.

― O que tanto há para pensar? ― ele não pôde evitar de questionar depois de quase meia-hora observando.

Sombra não o respondeu de imediato, mas pelo menos parou com seus pés. A junta de seu dedo indicador se mantinha batendo contra seu queixo em profunda contemplação. Mourana achava que era uma visão muito engraçada.

― O que uma governante do Cinzaral iria querer usando o suporte de uma rainha docendente para atacar o mundo humano? ― Sombra abriu os braços amplamente. ― Não faz o menor sentido.

Mourana acenou com a cabeça.

― Certamente há uma razão para tal. ― Otton disse, como se fosse óbvio.

Mourana acenou com a cabeça.

― Tanto o Cinzaral quanto o Reino Doce não têm ligação com a Terra. O que seria vantajoso aqui?

Mourana acenou com a cabeça.

― Sombria e Selana, duas rainhas insanas resolveram então se divertir às custas do desespero humano? Também me parece pouco provável. ― Otton falou. Embora ele parecesse interessado em continuar com o assunto, sua expressão não parecia pensativa num todo.

Mourana acenou com a cabeça.

― Você também tá maluca? Tu sequer sabe quem são Sombria e Selana? ― Sombra disparou, incomodado com as ações fora de ordem da "escolhida".

Mourana arregalou os olhos para a pergunta súbita. Verdade fosse dita, ela mal estava escutando os dois falarem, seu cansaço falando mais alto.

Otton cobriu a boca com o punho escondendo uma risadinha pela expressão confusa da mulher. Sombra bufou.

― Senhorita Mourana, você, por acaso, está com o livro sagrado consigo? Quem sabe possamos perguntar algo para ele. ― Asafe disse, pensando em distrair um pouco a atmosfera.

Mourana balançou um pouco, sem muito espírito, mas ainda alcançou sua jaqueta, que Asafe havia trazido, e retirou o livro de capa azul de dentro do bolso interno. Ela olhou para Asafe, e depois na direção de Sombra, que virara as costas para ela.

Ela abriu o livro.

Depois de folhear e passar pelas páginas já ocupadas por figuras, ela, enfim, chegou a uma em branco. Segurando o livro com as duas mãos ela tentou perguntar para o livro com seu pensamento: o que elas planejam?

E ela esperou que funcionasse.

Asafe inclinou-se na cadeira, expectante. Sombra se jogou na cadeira em frente à escrivaninha e observou sem muita esperança.

A expressão de Mourana mudou.

De repente, um ponto vermelho apareceu entre as folhas. Parecia quase como um pedaço de papel perdido, mas este começou a crescer aos poucos. Mourana aproximou a página de seu rosto, tentando enxergar qualquer figura. Então, o ponto vermelho recebeu uma quantidade de luz. Mourana encarou intrigada, parecia... Era uma gota? Uma gota de quê?

Então, a gota começou a escorrer miolo abaixo e, quando Mourana achou que pararia na borda da folha, a gota vermelha desceu diretamente para o seu colo, manchando sua camisa branca como se fosse sangue.

Mourana levantou de abrupto, suas mãos tremendo. Seus olhos não conseguiam desviar da página e cada forma vermelha que se movia a perturbava mais e mais. Quando seus braços mal podiam aguentar os tremores, o líquido vermelho explodiu diretamente em seu rosto.

O livro foi jogado ao chão como se carregasse uma praga e as mãos de Mourana correram para limpar seu rosto, cabelo e roupas. Havia sangue por todo lado e sua visão era vermelho vívido, pulsante, como se ainda corresse nas veias. Ela abriu a boca para gritar, mas não havia som. O grito ficou preso na garganta, a sufocando. Ela caiu de joelhos, seu rosto arranhado por suas mãos que esfregavam sem parar.

Através do zumbido de seus ouvidos ela pôde ouvir chamarem seu nome, mas ela não queria ouvir. Ela queria fugir, se esconder, nunca mais olhar para nenhum rosto.

Sua mente estava invadida, contaminada. Ela não conseguia limpar.

Não conseguia limpar o sangue.

Suas mãos não conseguiam puxar os olhos que não desejavam mais ver qualquer coisa.

Ela não conseguia

Ela não

Conseguia

Não conseguia



A boate estava fechada.

Depois que os homens de prata, peixe, e algodão-doce foram mortos, os seres que estavam em transe simplesmente conseguiram ultrapassar o portal e o looping acabou. Todos saíram sem olhar para trás, como se nada tivesse acontecido. Asafe olhou pelo local mais algumas vezes antes de deixar isso para depois.

Os funcionários restantes foram dispensados, e Asafe fechou a boate, levando Mourana, e Sombra para sua casa logo ao lado.

Ele deixou o corpo desacordado de Mourana no sofá da sala de paredes vermelhas e iluminação suave, não acreditando que ela demoraria a acordar.

― Então, o livro realmente fala com ela. ― Sombra comentou, jogado em uma poltrona e olhando preguiçosamente em direção a uma estante cheia de livros.

Otton, de pé, ergueu uma sobrancelha para ele.

― Havia alguma dúvida sobre isso antes, Mestiço?

Sombra deu de ombros.

― Por que eu deveria acreditar? Não foi muito fácil ela aceitar esse mundo? Você não suspeita de nada?

Otton não respondeu de imediato. Ele retirou o terno, deixando apenas a camisa de linho preta por baixo, acentuando seu corpo malhado, de peito largo e cintura fina. Ele jogou o terno a sua frente e deixou o mesmo sumir no ar.

Ele puxou uma respiração.

― Eu compreendo que você não confie, mas também não há razões para desacreditar. Eu já falei sobre o ocorrido com o pai dela e a experiência anterior com nosso mundo. Eu também não duvido de que, durante sua criação, algumas coisas foram inseridas aos poucos em sua vida para deixá-la mais suscetível.

― São suposições. Mesmo que eu ache ela fraca demais, não quer dizer que esteja falando a verdade.

Otton suspirou.

― Sombra. ― ele chamou, numa advertência suave. ― Não cabe a nós julgar suas virtudes e boa vontade ou a sua integridade. Nós só precisamos que ela se conecte a esse mundo e faça o que precisa fazer. Seu passado não é importante, sua força não é importante. Nós somos aqueles que devem fazer tudo, porque somos nós que temos o que perder.

Ele fez uma breve pausa para olhar o corpo desacordado e pequeno.

― Ela tem vivido no mundo humano, mesmo que tenha tido um vislumbre do nosso mundo. Ela não quis procurar sobre isso ou saber da verdade, não procurou por isso por anos. Mesmo assim, aceitou fazer isso por uma causa que ela nem conhece. Você está julgando, mas quem está mais perto da morte é você. Você devia estar de joelhos e agradecendo o fato dela não ter causado problemas e por ser uma pessoa fácil de conviver.

Sombra não encarou Otton. É claro que ele sabia que era ele quem estava desesperado, precisando de ajuda. Embora, entretanto, ele não gostasse da ideia de ser salvo por uma humana tão fraca e assustada. Mesmo no mundo dele as heroínas tendiam a ser fortes, determinadas, curiosas e sempre prontas para lutar. Mas Mourana... ela não parecia nem um pouco com uma pessoa importante, podendo muito bem ser facilmente esquecida.

Ainda assim, ele precisava dela tão desesperadamente. Precisava, por sua vida e pela vida de seu povo. Ele precisava dela, porque ela havia se tornado uma amiga com quem gostava de dividir as coisas e brincar enquanto caminhavam.

Ela era ridícula e, de alguma forma, muito especial.

― Sombra. ― Otton o chamou, querendo trazer sua atenção de volta. ― Eu tenho vivido por muito tempo, muito mais do que você ou seus antepassados. Eu não gostaria de julgar suas atitudes e pensamentos, até porque não é do meu interesse, mas se você continuar procurando autoridade em tudo, vai deixar passar muitas coisas importantes na sua vida. Nem todos viveram sob regras e cresceram como soldados. Lembre-se disso.

Às sete da manhã, Asafe terminou de pôr o café da manhã na mesa de jantar que ficava ao lado da sala de entrada. Não importava se ele era imortal, seu corpo não podia ser negligenciado. E havia Sombra também. Os dois tomaram café, conversando sobre os planos da viajem ao Reino das Fadas antes de voltar à sala e esperar Mourana acordar. Porém, assim que adentraram a sala, encontraram uma cena um pouco peculiar.

Mourana continuava deitada, imóvel, mas seus olhos estavam abertos, encarando o teto, sem parecer realmente ver alguma coisa.

Sombra se apressou e agachou-se ao lado do sofá, chamando por Mourana, como se tentasse fazê-la acordar.

A mulher não piscou e não parecia tê-los ouvido também.

― Vamos sentá-la. ― Otton disse em um suspiro, antes de se aproximar e ajudar Sombra a sentar a mulher cuidadosamente.

Eles a deixaram se apoiar no encosto do sofá, mas ela ainda não reagia.

― Não há nada na mente dela. Não escuto nada. ― Sombra disse depois de tentar ler seus pensamentos e encontrar simplesmente um vazio ecoante.

Otton pegou o pulso da mulher e tentou deixar seu poder vasculhar por algo que estivesse errado em seu corpo. Ele não encontrou nada.

― Ela não tem nenhum feitiço ou bloqueio em seu corpo. Não sei o que está acontecendo.

Ambos os homens encararam a mulher, esperando alguma coisa acontecer. Os olhos vítreos dela piscaram pela primeira vez, muito lentamente. Eles esperaram. Seus lábios se separaram com dificuldade, secos e grudados. Mas nada saiu.

― Por favor, pense em algo. O feitiço de legenda ainda está ativo. ― Asafe disse, ansioso por alguma reação dela.

Mourana rolou os olhos até encontrar os olhos de Asafe. O peito de Asafe, pela primeira vez em séculos, se apertou.

Por que há tanto sangue? ― a legenda apareceu, quase translúcida.

Asafe engoliu em seco.

― Eu tenho um pequeno favoritismo por essa cor, sinto muito.

Sombra bufou. Mourana voltou a encarar a sua frente como se sua consciência ainda não tivesse voltado.

Tem muito sangue. ― a legenda surgiu de novo, um pouco mais forte. ― Eu não consigo entender tudo. Há coisas hoje e há coisas distantes. Alguém tem que morrer, alguém tem que nascer, alguém tem que renascer. Eu não entendo...

Otton encontrou os olhos de Sombra. Ela estava... profetizando?

Otton levantou rápido e correu em direção à estante diante dele, pescando um diário e, rapidamente, abrindo em uma folha em branco. Ele escreveu as palavras de Mourana.

― Há mais alguém? Precisamos de tudo isso para quebrar a maldição? ― Asafe pergunta forçando sua voz a parecer calma.

Mourana balançou a cabeça levemente, quase como se tivesse apenas sentido uma brisa correr.

Não para... Um homem. Um homem controla os monstros. Ele... ― ela parou, as informações em sua mente bagunçadas e soltas, difíceis de alcançar. ― No Reino das Fadas... um livro... não? Um livro? Uma carta? ― ela franziu o cenho, confusa. ― Um livro e uma carta?

― A passagem que precisa ser lida vem de um livro que cita uma carta? ― Asafe questionou.

Sombra observou, sua mente tentando organizar as informações e juntar com as pesquisas que ele fez tão ativamente.

Mourana virou para Asafe com um olhar confuso.

Não... a passagem... eu... preciso ler um livro.

― E a carta?

Carta? ― Mourana pareceu ainda mais confusa.

Asafe se manteve paciente.

― Você precisa ler um livro, e a carta precisa ser encontrada? É isso?

Mourana vasculhou em sua mente, as informações flutuando e difíceis de pegar.

― Livro. Livro de... livro de cântico.

― Um livro de cântico do Reino das Fadas? Seria então um livro de culto aos deuses, esse seria O Livro, então?

Livro de cântico poli... poli...

― Politeísta. Um que cultue todos os deuses juntos.

Mourana assentiu com a cabeça.

― Então, precisamos realmente ir à Biblioteca do Reino das Fadas. Não há muitos livros que cultuem todos os deuses, não deve ser muito difícil de encontrar. ― Sombra disse, sua fala apressada.

A carta...

A atenção de Otton e Sombra foram chamadas novamente. Eles lembravam agora. Em uma das profecias modernas, era citado que precisavam de uma carta de arrependimento. Mas se um livro de cântico havia aparecido para Mourana, onde cabia essa carta?

― O que tem a carta? Precisamos dela agora? ― Sombra perguntou.

Mourana desviou o olhar perdido para ele. Ela pareceu pensar um pouco, até balançar a cabeça por fim.

Não, agora não. No futuro...

― Então, não precisamos nos preocupar com isso. Pode ser que você tenha visto problemas dimensionais muito à frente. Precisamos, agora, focar em quebrar essa maldição. ― Sombra concluiu. Ele se voltou para Otton. ― Então, precisamos viajar, trazer uma cópia de cântico sagrado e ler... onde? Podemos só ler?

Os dois homens se voltaram para a mulher. Mourana voltou a encarar o espaço à frente, sem dizer nada. Eles esperaram, esperançosos que ela voltasse a si.

— O... momento... Vou saber... O momento.

Os homens suspiraram ao ver a legenda lenta e hesitante. Eles estavam começando a ficar um pouco preocupados.

— Certo, já sabemos o que temos que fazer. Você está bem? — Sombra perguntou antes de Otton, o deixando levemente surpreso, mas mais suspeito.

Mourana deixou sua cabeça pender para a frente, seu cabelo solto, ocultando o rosto. Ela tomou uma respiração profunda antes de ficar de pé abruptamente.

Os dois homens também levantaram.

Eu vou embora.

— Acalme-se, senhorita. Você precisa se acalmar primeiro.

Mourana se distanciou deles por alguns passos. Ela começou a gesticular apressadamente.

Eu não posso fazer isso. Não posso mais ajudar vocês. Eu...

— O quê? — Sombra exclamou, parecendo mais confuso do que raivoso. — Como assim? O que houve?

Não consigo fazer isso, não sou a pessoa que vocês precisam. Vocês pegaram a pessoa errada.

Asafe observou atentamente, enquanto a mulher balançava suas mãos trêmulas, os olhos pouco lúcidos, mas temerosos. Ela tinha visto mais do que queria dizer.

— Senhorita, você não precisa fazer nada. Nós vamos cuidar de tudo para você ficar segura. Só precisamos que esteja lá quando a hora chegar. — Asafe tentou trazer um pouco de calma para a mulher.

Mourana passou a mão pelos cabelos, piscando e tentando se manter composta.

Não sou a pessoa certa. Vocês precisam procurar de novo. Eu não sou forte o suficiente pra vocês.

— Como você pode ser a pessoa errada? — Sombra a questionou, seus braços cruzados enquanto argumentava. — Tu é a única pessoa que já conseguiu ver os Invisíveis e destruir eles. Eu nunca vi alguém com o tipo de poder que você tem. Um assobio? Um assobio que parece mais vindo dos céus do que de ti mesma? Como tu pode dizer que não é forte, quando é capaz de algo assim, algo que ninguém nunca fez?

Mourana abriu e fechou a boca várias vezes, sem conseguir encontrar um contra-argumento. Ela estava ciente de uma ou duas habilidades próprias, mas isso ainda não fazia dela uma pessoa extraordinária. Duas linhas finas de lágrimas escorreram pela sua bochecha e ela virou para andar em círculos, discutindo consigo mesma.

Otton e Sombra trocaram um olhar. Otton suspirou e sentou-se no sofá. Ele não estava tão surpreso com a reação da mulher também.

Sombra descruzou os braços, e se aproximou de Mourana.

― Vamos, eu vou te levar em casa. Tu descansa primeiro e depois nós pensamos melhor sobre isso. ― ele disse, sua voz estranhamente mais calma do que o normal, sem zombaria ou raiva. Mourana parou de andar, o olhou através dos cílios com olhos de cachorrinho. ― Okay?

Com alguma hesitação, Mourana, cansada, concordou. 

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