Capítulo 1
8 de junho de 2012, sexta-feira
A janela dava vista para a rua abaixo – vazia e imunda ―, em meio às trevas. O silvo da brisa gritava ameaças, desconfortos, ludibriações.
Aquele era de longe o pior lugar para qualquer um viver, no entanto, era o que restava aos socialmente abandonados. Não era que faltassem lugares na cidade onde morar, era só que os preços abusivos obrigavam os desafortunados a submeterem-se a tais condições de vida. Prédios irregulares, prestes a despencar; má distribuição de energia, água ou qualquer saneamento; e até mesmo a vizinhança era brutal.
Além disso tudo, ainda haviam as lendas. O medo do desconhecido sempre foi a melhor forma de controlar os miseráveis.
― Não sei o que você vê de tão interessante lá fora. É só um monte de merda.
A mulher parada em frente à janela com olhar distante voltou-se para a outra, deixando os ombros caírem com um suspiro. Evelyn era o cúmulo do descuido, sempre indo e vindo a qualquer hora, e qualquer perigo mencionado era motivo de piada.
― Um dia você vai se arrepender por ignorar os avisos.
― Bom, enquanto eu não vejo o que realmente acontece com os meus próprios olhos, eu vou continuar fazendo o que eu quiser. Ninguém vai me obrigar a ficar presa em casa. ― ela aponta. ― Ainda mais numa sexta à noite.
A outra mulher suspirou e balançou a cabeça. Ela nem mesmo sabia por que gostava tanto de Evelyn. Ou sabia.
As duas se conheceram por acaso em um evento literário no leste do Estado. Mourana, como leitora compulsiva, e Evelyn, claramente, como uma vendedora entediada. Havia sido há três anos, quando Evelyn ainda morava com os avós e era minimamente responsável ― por obrigação. Mas agora, quando havia se mudado para Nevoeiro, Mourana era quase como sua tutora. Apesar de a outra não ouvi-la na maior parte das vezes.
Mourana caminhou até o balcão e debruçou-se no mesmo, ficando de frente para Evelyn, que a encarou carinhosamente. Ambas, apesar de diferentes em todos os aspectos, eram muito próximas, e apenas não viviam juntas porque Evelyn estava morando com o namorado pouco confiável. Garoto esse que Mourana detestava, e odiava tê-lo a visitando, pois ele sempre reclamava de tudo e bagunçava tudo.
― Você poderia dormir aqui hoje. Sabe, para não ter que andar por aí tão tarde. ― Mou pediu.
Evelyn sacudiu a cabeça.
― Desculpe, ratinha, mas não vai dar. ― Mourana franziu o cenho com o apelido. ― Alex tá terrivelmente mal, por Marcos ter morrido semana passada naquele tiroteio. Eu preciso confortar o meu garoto.
Mourana evitou uma careta. Ela realmente detestava o namorado da amiga e os amigos do namorado da amiga, que pararam de tentar se envolver com ela depois de terem passado menos que cinco minutos próximos. Ninguém gostava, particularmente, de dividir um espaço com Mourana, afinal.
Ela assentiu e o silêncio se instalou até Evelyn desencostar do balcão e andar até o sofá de dois lugares, fazendo sua voz reverberar pelo cômodo e, possivelmente, ser escutada pelos vizinhos.
― Seus vizinhos têm tanta sorte, por você ser tão quieta. ― a amiga ironizou, olhando em provocação.
― É uma pena, porque eu não tenho a mesma sorte. ― lamentou Mourana.
Evelyn gargalhou, fazendo sua cachoeira de cabelos pretos e escuros balançar.
― O cara bêbado e a dançarina de flamingo andam causando problemas? ― perguntou.
― Nem me diga. ― Mourana suspirou. ― Ontem o bêbado resolveu que queria mudar a televisão de lugar. Eu não sei por que ele quis fazer isso, mas tudo o que eu escutei foi uma batida no chão, uma pancada e um grito. Hoje de manhã uma ambulância veio buscar ele, porque ele tinha um pé esmagado.
Evelyn riu.
― E Evandra aparentemente tem uma coreografia nova, porque o som das pisadas e a música chata não param nunca. ― reclamou Mourana, se jogando ao lado da amiga.
Evelyn se contorceu em seu lugar, rindo sem parar, e fazendo Mourana arfar uma risada contida. Era bom ter alguém que ria de algo que ela dissesse, quando normalmente olhavam-na feio e a ignoravam.
Nevoeiro era o fim do mundo.
― Você é ótima, Mou. Ótima mesmo. ― disse Evelyn limpando as lágrimas.
Mourana encolheu os ombros em agradecimento e suas bochechas coraram levemente.
Evelyn espalmou as mãos nas pernas e encarou a amiga avaliando-a, e Mourana suspirou prevendo o assunto seguinte.
― Ela tem ligado? ― perguntou a mais alta.
― Você sabe que sim. O tempo todo. Eu não atendo mais, minha única obrigação é com meus avós, e o que eu tenho, mando diretamente pra eles. Tudo o que ela quer é o dinheiro. Eu já não tenho o suficiente para mim, imagina pra sustentá-la. — desabafou a mais baixa.
Evelyn deu-lhe um olhar compreensivo.
― Você não é obrigada a dar nada pra ela, não perca seu tempo. ― aconselhou e lhe deu um abraço, antes de se levantar e ir em direção à porta. ― Estou indo. Amanhã eu trago sua blusa, prometo.
Não vai não, pensou Mourana com um sorriso. Evelyn fechou a porta e Mourana correu para trancá-la.
Seus ombros caíram enquanto ela voltava para contemplar seu lugar solitário. A sala minúscula, cabendo apenas o pequeno sofá em frente a uma estante com algumas tranqueiras, um balcão dividindo a sala da cozinha ainda menor, um quarto e um banheiro.
Uma brisa congelante atravessou as paredes finas e correu por seus braços a fazendo estremecer, levando-a a caminhar para o quarto, em busca do moletom. Nevoeiro era tão fria quanto seus moradores. Se ao menos ela pudesse sair daquele buraco.
Ela evitou olhar para a janela, compenetrada em uma mancha no forro.
Seu emprego como bartender rendia-lhe o suficiente para pagar as contas e não morrer de fome, mas alguns luxos eram dispensáveis: televisão, DVD, micro-ondas. Portanto, quando não estava trabalhando, ela tinha muito tempo de sobra. Às vezes, ela ia na cidade e se sentava numa praça, tomava um sorvete e via as pessoas passarem.
Não era uma vida ruim, tampouco uma vida boa. Ela só tinha que seguir em frente sem quaisquer expectativas ou otimismo.
•••
12 de junho de 2012, terça-feira
O cheiro pungente de bebidas grudava nas narinas e o tempo frio auxiliava na piora em suportar. Para Mourana, que precisava sentir esse cheiro por horas e horas seguidas, era quase imperceptível.
Ela juntou suas coisas e saiu da boate, seus colegas de serviço ficando para trás em meio às suas conversas, que nunca a incluíam. Para ser sincera, Mourana não entendia o porquê de as pessoas em Nevoeiro tratarem-na com tanta exclusão. Ela não possuía manias estranhas, nem era suja ou de má conduta, no entanto, mesmo assim, todos mantinham uma distância visível.
Claro, não todos.
Por sorte, ela encontrou um amigo que a pudesse oferecer um emprego. E tinham algumas outras pessoas também, nada que passasse do número dos dedos de uma mão.
Em meio à garoa fina, a mulher caminhou vagarosamente pelas ruas asfaltadas, o trânsito quase inexistente, mesmo para uma terça-feira de manhã. Eram quase seis horas, ainda assim, podia-se ver um número escasso de pessoas circulando.
Desde que se mudara para a cidade pequena, tudo o que Mourana podia citar eram estranhezas em relação ao local. Era populoso, porém quieto. O clima era chuvoso, mesmo que não nas cidades vizinhas. As pessoas eram arrogantes, sabidas e julgadoras. Ela sentia falta de usar uma roupa estampada e não ser encarada como se fosse um ser exótico. Se não fosse porque ela realmente precisava, este era de longe o último lugar em que ela queria ficar.
Sua caminhada de passos arrastados a levou por entre quarteirões e quarteirões em meio ao centro da cidade, não em direção a área reclusa onde vivia. Quem observava de longe poderia pensar que ela não tinha rumo.
E pensava.
Otton e Sombra a seguiam quase sem disfarçar, aproximando-se lentamente da mulher que parecia cada vez menos com a pessoa que procuravam. Eles duvidavam em seus corações, mas prosseguiam em sua perseguição.
Quando a mulher diminuiu os passos em frente a uma lanchonete, eles saltaram à sua frente.
Dizer que Mourana ficou surpresa seria eufemismo. Seu coração saltou, a taquicardia piorando, ao passo que ela ia analisando os estranhos. Estarem vestidos de preto não era fora do comum, mas por que eles transbordavam sensação de repressão? Isso a fez dar um passo para trás.
— Senhorita. — o mais alto disse aparentemente tentando soar amigável. — Você é Mourana Castelo?
Mourana intercalou o olhar entre os dois homens. Um possuía olhos ansiosos — completamente pretos, em íris e esclera, que podiam ser fruto de uma tatuagem ocular —, era ainda mais alto do que o outro e seus trajes pretos pareciam combinar com seu tom de pele retinto. O outro, de olhos intensos e sobrancelhas grossas, poderia, quem sabe, ser um príncipe em um filme de Bollywood, embora fosse um príncipe carrancudo.
Ela pensou se deveria confirmar ou não. Dificilmente assaltantes ou raptores seriam tão obvieis em suas abordagens e ainda, eles estavam em público.
— Você pode nos acompanhar por um momento? Gostaríamos de ter uma conversa consigo. — o homem mais alto não precisou de sua confirmação.
De qualquer maneira, por fim, Mourana estava sentada de um lado da mesa da lanchonete confrontando os olhares dos dois homens, analisadores, duvidosos e um pouco frustrados.
Mourana apenas se encolheu no assento.
— Você pode confirmar que é Mourana Castelo? — aquele que falou desde o princípio questionou.
Mourana assentiu lentamente, seus olhos ainda em um e outro.
— Sinto muito pela pergunta, mas precisamos confirmar sua identidade primeiro. O assunto que temos é de importância ímpar.
Mourana fez menção em abrir a boca, mas Otton a interrompeu.
— Por favor, me deixe explicar tudo primeiro, então a senhorita pode tirar quaisquer dúvidas que tenha.
Mourana suspirou. Afinal, o que ela estava sequer fazendo ali?! Ela poderia correr?
Bem, se considerasse a expressão do outro homem, cuja postura de guarda parecia prever sua fuga, era melhor apenas ficar e escutar.
— Eu me chamo Asafe, e este é Sombra. — Mourana apenas o encarou, as sobrancelhas franzidas. — Peço que leve em consideração tudo o que tenho a dizer. Vai parecer absurdo, mas eu dou minha palavra de que só estamos aqui, porque realmente necessitamos.
Mourana permanece imóvel, seus olhos transparecendo sua dúvida.
— Sombra faz parte de um tipo de espécie, que denominamos ordem. Ele é meio humano, entretanto, possui certas habilidades peculiares. — Asafe pausou para avaliar a expressão da mulher, imutável. — O ponto é: o povo de Sombra foi amaldiçoado, há alguns séculos, pelo que acreditamos ser um praticante de magia má. Os detalhes podem ser deixados para depois, o importante é que a maldição limita a perspectiva de vida de sua ordem, determinando que só possam chegar até os 30 anos de idade, quando estarão sujeitos a todos os tipos de situações perigosas e, então, serão levados à morte.
Mourana os encara através dos cílios, lábios entreabertos e uma interrogação gigante sobre sua cabeça. Ela não era uma cética, mas se — e um enorme SE — tudo isso fosse verdade, ela não estava certa de que gostaria de saber o resto da história. Não é como se ela estivesse livre de problemas também.
Otton continuou antes que ela pudesse se manifestar.
— Mesmo que soe piegas, a esperança do povo de Sombra é apoiada por uma profecia... — sua voz sumiu enquanto seu olhar se aprofundou, sempre observador. — Espero que considere a dificuldade que tivemos para chegarmos até aqui e abordá-la, e que certamente, como adultos, não viríamos apenas para perder o nosso e o seu tempo.
Mourana assentiu lentamente sentindo que precisava dar uma confirmação, mesmo não sabendo se entendia de fato.
— A profecia que se difundiu dizia que uma humana jovem, que carregasse a marca da morte, poderia libertar a tal ordem da maldição. Seria necessário apenas que fosse lida em voz alta uma passagem d'O Livro.
Então, Mourana franziu o cenho. Inspirou e arfou uma risada. Suas costas deslizaram contra o assento e seu sorriso repuxado a fez parecer como se estivesse tanto aliviada quanto exasperada. No fim, todo o falatório tinha sido finalizado.
— Mou? — uma voz cortou seus pensamentos.
Ela virou-se para a garçonete de aparência comum que se aproximou com um sorriso. Dizer que ambas eram amigas seria exagero, mas seu relacionamento não era complicado. Às vezes, Mourana vinha até a lanchonete apenas para que pudesse conversar trivialidades com a outra.
Ela acenou com uma mão, sentindo-se mais leve e sorriu de volta.
— Você tá bem? E Evelyn? Eu soube sobre Marcos, ela deve estar arrasada! Você sabe como ele foi assassinado?
Mourana juntou o dedo indicador com o médio e apontou-os contra a própria cabeça, imitando uma arma. O rosto de Flora se contorceu.
— Meu Deus! Mas também, ninguém disse que ele tinha que andar com aquela gente. — Mourana concordou com a cabeça, seu olhar significativo. — Você está vindo da boate? Gostaria de pedir um café?
Mourana concordou novamente e estava pronta para pedir, quando Flora percebeu os outros dois clientes. Sua surpresa não foi bem disfarçada.
— Ah, quem são esses? Seus colegas do trabalho? — Mourana não levantou a cabeça do cardápio e apenas acenou a mão sem dar importância. Visivelmente, eles não eram amigos, Flora não era sem tato, afinal. — Bom, sejam bem-vindos. Gostariam de pedir?
Ambos negaram, suas expressões conflituosas. Então, a garçonete anotou o pedido, depois que Mourana indicou as coisas no cardápio. Quando ela estava saindo, Mourana bateu na mesa para que ela se virasse e, então, fez mais alguns gestos de mãos, e Flora saiu mostrando um joinha.
Quando Mourana aquietou-se novamente no assento, os dois homens a encaravam: um em descrença arrogante, outro com inquietação.
— Eu posso parecer rude em perguntar, mas deixe-me tirar esta dúvida. A senhorita "fala"?
Mourana o encarou, esse homem de pose nobre e educado. Sua cabeça balançou.
Os dois homens exalaram.
— Que tipo de piada é essa? Tu acha que é engraçada? — aquele outro homem, Sombra, falou pela primeira vez.
Mourana juntou as sobrancelhas, ofendida e indignada. Ela tinha culpa?
— Acalme-se. — Otton murmurou para o outro antes de se virar para Mourana. — Eu poderia perguntar se você nasceu assim ou...
Mourana cruzou os braços. Se antes ela estivera receptiva e ouvinte, agora sua boa vontade esvanecera. Por que ela tinha que responder para aqueles estranhos que não podiam lidar com os fatos?
Ela não tinha!
Otton suspirou, percebendo como a situação se tornara. Suas mãos puxaram as lapelas do casaco numa tentativa de parecer mais confiável.
— Sombra está desesperado, por favor, peço que ignore sua brusquidão.
Mourana levantou uma sobrancelha, seu rosto juvenil e de bochechas gordas, dava a ela uma aparência de raiva superficial.
Otton encostou-se contra a cadeira. Que tipo de sorte ele encontrou? Quantas décadas ele passara a procura dessa pessoa, quanto esforço? Mesmo que ele não pertencesse aos Mestiços, ainda assim, estava frustrado. Ele apertou os dedos em punho.
— No fim das contas, estamos apenas desesperados. Eu tenho certeza de que não estou enganado quanto à senhorita e sei que você não está mentindo. De fato, deve haver uma razão para tal. — Otton engoliu em seco e levantou os olhos com sinceridade. — Nós iremos encontrar essa razão, mas, para isso, precisamos que a senhorita nos ajude.
Mourana olhou em seus olhos, levemente comovida.
— Nós, sinceramente, esperamos que você possa ajudar.
Abaixando a cabeça, Mou suspirou.
Não por causa de sua condição, mesmo antes do acidente ela não costumava negar ajuda a quem quer que fosse. Mas não seria muita tolice se dispor a ajudar por uma causa tão... surreal? Ponderando um pouco mais, ela pensou: e que mal faria tentar?! O que eu perderia?
Então, Mourana levantou a cabeça e ficou desconcertada com o olhar dos dois homens em si. Ela escreveu em um bloco de papel retirado de sua bolsa: “Quando?”
Otton leu e sua expressão mudou de aflita para brilhantemente esperançosa em um piscar de olhos.
— O quanto antes! — ele exclamou, sua voz um tom mais alto, porém ainda contida e suave. — Precisamos ir atrás de todas as pistas e falar com algumas pessoas. Não podemos mais perder tempo. Precisaremos focar no problema vinte e quatro horas por dia para que possamos terminar isso tudo logo. E ainda...
Mourana o interrompeu, suas mãos no ar balançando para ele. Otton parou abruptamente, surpreso. “O quê?” ele ia perguntar, quando Mourana escreveu: “24hrs por dia?? Por quanto tempo??”
Otton piscou desentendido e respondeu devagar.
— Não sabemos quanto tempo pode durar. Talvez meses, não sei.
Mourana arregalou os olhos. Ela não tinha esse tempo. Ela não tinha esse tempo livre! Como ficaria seu trabalho? Como ela ia se sustentar?
Ela soprou uma risada silenciosa de escárnio e acenou para Flora. Sua cabeça balançando de um lado para o outro, visivelmente contrariada. Ela escreveu: “Não posso. Eu não posso fazer isso. Encontre outra pessoa.”
Sombra endireitou a coluna, fazendo-se presente. Seu rosto estava nublado, de sobrancelhas franzidas e dentes a mostra.
— Como é que é?! — ele gritou. — Uma hora tu diz uma coisa e depois diz que não?! Que tipo de ser tu é?
Flora chegou à mesa e assustou-se com o tom de voz elevado. Seus olhos correram para a mulher pequena procurando por uma explicação, mas tudo o que recebeu foram alguns gestos de mãos. Ainda petrificada, Mourana a apressou, pedindo que saísse até que ela o fizesse.
— Responda. — Sombra insistiu. — Tu não vai apenas mudar de ideia agora.
Mourana, mesmo temerosa pelo ataque súbito, acenou firmemente. Ela bateu os dedos contra o que estava escrito no bloco de notas, dando ênfase à sua escolha e encarou os dois com olhos decididos.
— Por favor... Por favor, Mourana. Nós realmente precisamos da sua ajuda.
“Eu também preciso de ajuda, também preciso trabalhar! Não posso fazer isso”, ela escreveu.
Flora chegou quando Otton estava prestes a continuar implorando, trazendo uma embalagem ensacada com um copo fechado. Mourana levantou-se e entregou algumas cédulas rapidamente, correndo para fora da cafeteria.
Flora permaneceu congelada, suas mãos ainda no ar, o rosto assustado. Seu olhar caiu sobre os dois homens, acusatoriamente. Otton suspirou deixando os ombros caírem, Sombra travou o maxilar, seus olhos fumegantes.
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13 de junho de 2012, quarta-feira
Pisando ferozmente, Mourana andou a passos largos para longe da lanchonete. A brisa gélida batendo em seu rosto e bagunçando os cabelos escuros.
Ela não tinha certeza se podia descrever suas emoções como sendo de raiva e indignação. Não era para tanto. Mas ela podia dizer, com certeza, que estava atordoada. Algo do tipo... Bem, não acontecia sempre.
Ela bufou. Em que mundo ela tinha tempo de ser a salvação de alguém? De uma ordem? Ela mal conseguia se manter a salvo.
•••
15 de junho de 2012, sexta-feira
Alguns dias se passaram e o evento com os dois estranhos tinha sido completamente esquecido por Mourana. Tudo em sua mente eram pedidos de drinks, as batidas altas das músicas e em como ela conseguiria enviar dinheiro para Elisa.
Era início da noite e, quanto mais ela se afastava do centro da cidade, menos pessoas podiam ser vistas transitando. Mourana sabia perfeitamente quão inseguro era perambular quando já estava escuro, no entanto, ela ainda teve que resolver algumas coisas na boate e ir ao supermercado. Felizmente — ou não — as sacolas não eram tão pesadas, então ela não tinha que castigar seus braços por todo o caminho.
Cinco quarteirões depois, e a vista de casas imaculadas desaparecia lentamente, sendo tomadas por aquelas em estado de deterioração.
Quando Mourana chegou em Nevoeiro pela primeira vez, ela ficara tão confusa com o lugar... Era difícil explicar. Todos pareciam ter alto poder aquisitivo, todos pareciam tão bem-vestidos o tempo todo, todos olhavam para os de fora com desdém. E, ainda assim, quase metade da cidade era rigorosamente ignorada e evitada, como se não existisse. Embora existisse.
Era meio... engraçado?
Mourana se arrependeu então de não ter fones de ouvido... Ou um celular que suportasse arquivos de música.
Cantarolando em sua mente enquanto adentrava pela área morta, ela se distraiu enquanto desviava da sujeira e tragava o cigarro entre os dedos.
"Ei!" Um eco soou em sua mente. Ela franziu o cenho sem entender bem o que estava acontecendo, mas, por fim, resolveu ignorar.
— Ei! — o grito se aproximou. Mourana virou-se assustada para ver duas figuras masculinas se apressando para alcançá-la. Confusa, ela virou-se e continuou em seu caminho. — Mourana! Ei!
Agora, realmente assustada, ela parou e confrontou os dois homens diante dela. Suas aparências eram de alguma forma familiares, ou, talvez, o preto fosse usado demais em Nevoeiro.
— Senhorita Mourana, estávamos procurando por você. — o homem mais alto e esguio disse, olhando estranhamente para o pedaço de câncer em sua mão.
Mourana juntou as sobrancelhas. O que esses dois homens queriam com ela?
— Você se lembra de nós? Conversamos em uma lanchonete no início da semana.
Intercalando o olhar de um para outro, a mulher mais baixa, enfim, teve um lapso. Esses eram os caras que queriam que ela lesse alguma coisa. Ela riu em sua mente.
Os três continuaram se olhando, Mourana esperando que eles falassem. Quando ela levantou uma sobrancelha, eles pareceram perceber que ela não seria a primeira a perguntar algo.
— Precisamos de sua ajuda...
E, assim, ela virou as costas e voltou a andar, tragando profundamente e soltando a fumaça como em um arfar cansado.
Otton suspirou. Tinha sido uma guerra para apaziguar Sombra e fazê-lo ser prudente. Ele não culpava o outro homem também, não era ele quem estava prestes a ser morto a qualquer momento.
— Senhorita Mourana. — ele a seguiu, mantendo certa distância. — Nós estamos certos de que encontraremos uma maneira. De certo, há uma explicação para tudo isso.
— Você é nossa escolhida. — o outro homem disse pela primeira vez, sua voz contendo, superficialmente, sua arrogância. — Se os anciões disserem, depois de ti ver, que tu não é quem buscamos, então pararemos de procurá-la.
Mourana estancou. Ela, mais uma vez, virou-se para eles, seus braços visivelmente tremendo pelo peso das sacolas. Ela encarou firmemente os dois homens, seus olhos decisivos. Depois de negar com o queixo para cada um, ela foi embora. Eles não a seguiram.
Não naquele momento.
Dois dias depois, às três da manhã, enquanto ela batia duas bebidas em simultâneo em coqueteleiras, apenas o homem de olhos comuns apareceu. Mourana suspirou para si mesma e deixou que a outra bartender o atendesse. Dez minutos depois:
— Tu pode sequer pensar sobre isso?
Mourana hesitou apenas por um segundo diante da expressão persuasiva do outro. Por fim, ela ainda virou-lhe as costas.
No mesmo dia, assim que ela estava saindo da boate, o homem mais alto a esperava.
— Senhorita... — ele a seguiu, quando ela passou apressada por ele. — Senhorita, você pode apenas tentar?
Mourana não apenas não parou como apressou ainda mais o passo. Claro, se Otton quisesse alcançá-la não seria difícil, mas ele ainda se deixou ficar para trás com um suspiro de pesar.
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