Capítulo 3

Você já percebeu o quanto a nossa vida é programada? Segundos, minutos, horas, dias, meses e anos destinados a um fim comum.

Respirar. Comer. Caminhar. Dormir. Ver. Ouvir. Falar. Reproduzir. Sentir.

Uma repetição mecânica que permite a sobrevivência de cada ser vivo. Há um ponto convergente no calendário biológico de toda criatura existente. Uma curva incontrolável e inevitável na trajetória de nossas vidas. Uma data de validade.

A morte.

A única previsibilidade na vida de todos os indivíduos. Em algum momento, ela chega mesmo que não estejamos preparados para seu aparecimento. Na maioria das vezes, a consideramos prematura e devastadora.

No entanto, a morte é simplesmente uma parte do ciclo, não a vilã da história. Nós damos a ela importância considerável para se tornar um mito temido. Caso não ocorra, o círculo permaneceria eternamente incompleto.

Apesar de termos plena consciência de sua inelutável chegada, mantemos um cotidiano como se nossos pés fossem permanecer para sempre sobre a terra ao invés de nos prepararmos para estar sob ela; nada além de grãos de pó ao vento.

Talvez essa crença seja proveniente de nossos ancestrais. Fadas e lupinos foram abençoados (ou seria amaldiçoados?) com uma longa existência. A magia que flui em nosso mundo os sustenta para que eles ocupem o cargo de guardião de todo ser vivo e para garantir o equilíbrio natural.

Em alguma curva da história, esse papel não foi bem desempenhado porque o mal se infiltrou em nosso plano terreno. A corrupção ganhou muitos adeptos e é por isso que me encontro onde estou: sentada em uma sala de hospital esperando.

O constante "bipe" do monitor torna impossível não julgar minha própria conduta até esse instante. Em um passado que parece cada vez mais distante em minha memória, a morte parecia uma dádiva para mim, desejada e aguardada. Agora, apenas a sua menção me aterroriza.

Ao fitar a pele pálida de John, chego à conclusão de que o amor poderia ser o malfeitor da minha própria história. Foi ele quem perfurou minha armadura, deixando-me completamente vulnerável.

As veias negras dentro de uma cicatriz profunda que se espalha por todo o lado esquerdo do peito do príncipe e invade a parte inferior da sua bochecha, me lembram que nenhum poder foi capaz de curá-lo dos donos da magia negra, somente estagnar os efeitos. As memórias daquele maldito dia em que ele me seguiu, apesar de confusas, passaram a ser material para meus piores pesadelos. 

Sangue. Tudo ao meu redor estava vermelho. Minhas roupas, minhas mãos, meu rosto, meu cabelo. Eu não sabia mais por quanto tempo estava voando.

A energia pulsando em meus membros era quase impossível de manter sob controle. Uma pequena parte de mim se perguntava se o mundo sobreviveria se eu a expulsasse para o espaço.

Você precisa se acalmar, garota.

A voz de Lykaios em minha mente quase me fez perder o controle das asas. Perdida em meu ódio e desespero, bloqueei a ligação com meu lobo. Afinal, nenhum de nós foi capaz de proteger a John.

Quando abandonei a segurança das nuvens, o acampamento lupino foi se aproximando a uma velocidade vertiginosa. Ao chegar ao solo, a força do impacto abriu uma pequena cratera na terra e os gritos começaram. No entanto, eles não passavam de ruídos em meus sentidos sobrecarregados. Um pequeno zumbido dentro do caos da minha cabeça.

Meu olhar se fixou na velha estrutura hospitalar e minha determinação se renovou. Não ousei desviar minha atenção para nenhum outro ponto, muito menos para o corpo sem batimentos em meus braços.

Ao me aproximar do hospital, meu poder se rebelou e estilhaçou os vidros das portas, assim como as arrancou das dobradiças. As pessoas bradavam comigo, mas suas palavras eram ininteligíveis.

-DÁRIO! -Gritei com todas as minhas forças e em uma voz que não reconheci.

Segundos depois, o médico lupino, um homem alto, com sua longa barba negra e grande estrutura, irrompeu pelo corredor principal. Quando seus olhos encontraram os meus, pude decifrar duas emoções: surpresa seguida pelo medo.

Desviando levemente meu foco de Dário para um espelho sobre a recepção sobrevivente a minha chegada, compreendi a razão do seu temor. Eu era um monstro. De alguma forma, a tentativa de Lírida, minha própria tia, de matar uma das pessoas mais importantes na minha vida, ativaram outro maldito poder dentro dos meus genes.

Meu corpo estava mais alto e musculoso, meus cabelos mais compridos e cheios, meus olhos não passavam de globos brancos, meus dentes estavam pontiagudos e as tatuagens que indicavam minha linhagem de fada Venatrix pareciam se mover sobre minha pele em um tom de púrpura. Para fechar a abominável imagem, grandes asas com largas penas cinzas claras pendiam das minhas omoplatas.

Ignorando a anomalia a qual me tornara, foquei meus olhos baços no médico. Felizmente, Dário havia se recomposto e estava dando ordens aos demais para preparar a ala emergencial. Seguindo-o, depositei cuidadosamente o corpo de John sobre a maca.

-Conserte-o. -Ordenei aproximando minha face da de Dário, rosnando como um animal selvagem.

-Acalme-se! O que aconteceu, Scarlett? -Ele perguntou, não dando sinais de desconforto com a minha aproximação.

Uma dor aguda subiu por minha garganta tentando me asfixiar ao lembrar tudo o que havia ocorrido. Mais uma vez, o destino me mostrara como as pessoas podem trair sua confiança e quebrar seu coração.

-Lírida. Ela está dominada pela magia obscura. Não sei como isso aconteceu, mas minha tia não é mais confiável. -Falei, empurrando para baixo minhas emoções e tentando conter a amargura ao pronunciar a palavra "tia". -Você pode me interrogar depois de salvar a vida de John. -Ordenei.

Afastando-me, Dário focalizou toda a sua atenção no príncipe. Não consegui captar tudo o que estava se passando. As lágrimas bloqueavam minha visão enquanto meus ouvidos não captavam nenhum batimento cardíaco proveniente do corpo no leito.

-Scarlett, você precisa retirar a magia obscura dele como vez com Roama, caso contrário, não conseguiremos nem tentar salvá-lo. -Dário solicitou, perfurando a bruma da minha angústia.

Minhas mãos tremem. O dia em que salvei Roama, uma lupino que conheci como Juliette, parece outra vida. Naquele momento, minha magia não estava completamente descontrolada.

-Não sei se consigo. -Sussurrei.

-Você não tem escolha. -Ele argumentou.

Os enfermeiros se deslocam para longe de mim enquanto me aproximo de John. As lágrimas que tentei segurar caíram sem interrupção por minha face quando vi a extensão da lesão em seu peito. Músculos e ossos dilacerados.

Sua própria magia estava batalhando para curá-lo, mas o veneno de Lírida era mais forte. Respirando fundo, coloquei minha mão dentro da ferida e deixei meu poder fazer o trabalho instintivamente.

Salve-o!

Comandei silenciosamente à energia que me restava. Meu fogo acendeu, queimando até a última gota de magia obscura e, quando não havia mais nada, ouvi o som mais precioso do mundo: o bater do coração de John.

Meus joelhos cederam e me choquei contra o chão. Meu corpo involui de tamanho e minhas asas se retraíram para dentro das minhas costas.

Meu cérebro não registrou quando um enfermeiro me colocou gentilmente em uma cadeira nem o tempo que eles levaram para remendar o príncipe. Meu organismo estava esgotado, meu poço de magia quase vazio. Quando voltei a plena consciência, Dário estava balançando meu ombro.

-Vou ser sincero com você, não sei se o príncipe sobreviverá a isso. Demos o nosso melhor, no entanto, não sabemos quando e se ele saíra do coma. -Ele disse com um ar cansado.

Desviando meus olhos do médico, encontrei John enfaixado com muitos tubos e fios saindo do seu corpo. A mínima ideia de que ele não retornaria à vida fez todo o meu ser tremer. A culpa do seu estado atual era minha. Foi eu que decidi ir atrás da minha mãe no reino de Pélagus sem saber se a carta que recebi era verdadeira.

A simples lembrança de que também falhei com a minha mãe me faz colapsar. Um uivo de dor sai da minha boca e o que resta do meu poder enlouquece. Sem saber o que estou fazendo, arremesso para fora a todos e levanto uma barreira entre mim e o mundo que somente me trouxe dor. Segurando meus joelhos até meu peito, tentei me fazer o menor possível para desaparecer da miséria na qual me encontrava. A exaustão me alcançou e me entreguei à escuridão. 

Os dias se transformaram em um borrão depois disso. Eu não sabia há quanto tempo estava nesse abrigo somente com a minha péssima companhia na maior para das horas.

Meu coração dói ao lembrar o quanto negligenciei ao meu lobo e com toda a solidão que isso me trouxe. Na verdade, o quanto ignorei a qualquer um. Ainda posso senti-lo em minha mente, tentando me alcançar. No entanto, assim como não consigo mais me conectar com minha magia, sinto que não sou digna de ter o conforto de Lykaios. Minhas atitudes irresponsáveis haviam nos colocado nessa situação.

Meu pai e a família de John tentaram me tirar do meu casulo, mas nada ainda foi capaz de dissipar essa grande camada de culpa incapacitante que me cobre. A auto-aversão se tornou minha companheira constante. A ideia de que sou um monstro não sai da minha mente em nenhum minuto sequer.

Até agora, permiti somente a entrada de Dário para que ele possa avaliar o príncipe. Quando ele tentou me chamar para a razão, eu o expulsei novamente. A razão não é nada mais do que uma bela porcaria.

Delicadamente, escovo os cabelos de John da sua testa. Apesar da cicatriz, ele ainda continua lindo. Sua magia o tem mantido nutrido, ainda que pálido, mas não conseguiu despertá-lo.

-Volte para mim, John. -Sussurro pela milionésima vez.

O som de rachadura chega aos meus ouvidos um pouco antes do tremor acometer o meu casulo. Agarro os braços da minha cadeira para me manter no lugar enquanto a parede dura de terra e hera se parte ao meio.

Minha magia pulsa para entrar em ação, assim como sinto Lykaios lutar contra a gaiolo na qual o aprisionei, mas não libero a ambos. Quando a poeira abaixa, deparo-me com uma princesa vermelha de raiva.

Cecília marcha para dentro da sala e, ao me alcançar, acerta-me com um tapa no rosto que faz meu pescoço virar. A dor é uma mudança drástica para o entorpecimento abençoado que passou a me dominar. Logo em seguida, sou envolvida em seu abraço esmagador de ossos.

Meu corpo se contrai em seu aperto. Vê-la desperta sentimentos com os quais não quero lidar. Não quero sentir novamente. Não quero pensar na realidade fora daqui, por mais que isso seja egoísta.

-Nunca mais se afaste assim, Scarlett. Eu estava completamente desesperada do lado de fora dessa prisão. Você precisa acordar! Não vamos sair daqui sem você. -Cecília fala em meu ouvido.

Sobre seu ombro, vejo Luke entrar. Seu rosto sério amolece um pouco ao notar o estado de John. Quando estou prestes a me arrancar dos braços de Cecília, porque o toque faz minha pele formigar, um novo rosto surge na entrada e me faz congelar.

-Novic? -Sussurro, incrédula ao fitar o sorrisoque acreditei jamais voltar a ver. 

Oi, gente! Mais um capítulo saindo! 

Gostaram? 

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Tenha uma excelente semana :)

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