Capítulo 1 - Quem é você?
Hagar
Eram quase oito da noite quando Hagar finalmente fechou seu notebook, sentindo os ombros tensos após um longo dia de trabalho. Tudo o que desejava era o conforto de sua cama e a paz do silêncio, longe das exigências do escritório. Enquanto olhava pela janela, observando a cidade de São Paulo se iluminar sob o manto noturno, um leve suspiro escapou de seus lábios.
O breu da metrópole era acolhedor de uma forma única, tão diferente do céu estrelado de sua cidade natal no interior. Aquela escuridão, pontilhada pelas luzes dos prédios e faróis, parecia ser um reflexo do que ela havia vivido: um turbilhão de desafios e recomeços.
Hagar ainda se lembrava da última vez que olhou para sua casa de infância e sentia o peso das escolhas que precisara fazer. Tinha apenas 18 anos quando foi forçada a assumir sua sexualidade e isso abalou as estruturas rígidas de sua família um tanto quanto conservadora, pediu demissão do trabalho e teve que tentar a vida na cidade grande, no centro de São Paulo. A porta que se fechou atrás de si naquele dia marcou o início de uma jornada solitária, mas também libertadora.
Era até engraçado comparar sua realidade antiga com o que vivia hoje. Antes de sair de casa, trabalhava em uma escala 12x36 em um restaurante dentro de um shopping conhecido da cidade. Fora dali, gostava de estar com seus amigos, jogar vôlei e ir à academia. Na escola, nunca foi tão popular; por isso, seus amigos eram poucos, mas muito companheiros.
A rotina de hoje era muito diferente. Já tinha sua estabilidade financeira e trabalhava quase de forma compulsiva. Foi promovida em alguns cargos, estava prestes a terminar a faculdade e tentava, a todo custo, manter sua vida fitness ativa. Quando chegou a São Paulo, no início dos seus 19 anos, descobriu que a vida não era a bolha do interior a qual estava tão acostumada. Seus primeiros meses na cidade foram vividos conhecendo sua sexualidade, que, até então, tinha sido pouco explorada.
E São Paulo tinha muito a oferecer a uma jovem lésbica. Viveu tudo o que havia sido privada de viver. Conheceu baladas e barzinhos LGBTQIA+, se envolveu com algumas mulheres mais velhas, ainda que fosse muito jovem para algumas situações. Mas não apenas isso: também se descobriu profissionalmente.
Agora, aos 25 anos, ela havia construído uma vida com suas próprias mãos. Tinha o cabelo curto, um estilo despojado que refletia sua praticidade e confiança, e uma habilidade única de transitar entre diferentes universos. Tanto fazia se estivesse vestida para a academia ou em um terninho alinhado combinado com Adidas Samba para um dia de trabalho lotado de reuniões, sem tempo para pausas. Sua maior força estava em sua autenticidade.
E, principalmente, Hagar gostava muito do seu tempo de solitude: viagens tranquilas e filmes de carros. Sempre teve a personalidade muito forte, e isso se mostrava evidente em seu estilo.
Quem olhava para uma garota tão jovem não imaginava o quanto sua trajetória tinha sido complicada.
Assim que chegou à cidade, teve que morar por sete meses em uma república para mulheres, onde conheceu sua atual melhor amiga. Em 2019, decidiram dividir o aluguel. Durante todo esse período de descoberta pessoal, profissional e sexual, Hagar esteve longe da sua família. Exatamente dois anos se passaram sem nenhum contato.
Ela ainda morava com sua melhor amiga, Clara, que era onze anos mais velha e tinha três gatinhas: Fumaça, Cervejinha e Julieta. Um verdadeiro lar sapatão, com duas mulheres de personalidades bem distintas. Clara amava baladas eletrônicas, livros de vampiros e séries românticas, nada comum à personalidade de Hagar, mas isso apenas fazia com que as duas se completassem no dia a dia.
Pegou sua latinha de energético sobre a mesa, café não era sua bebida favorita, mas ela tinha sempre um energético à mão para aguentar a rotina de academia, trabalho e faculdade.
— Finalmente saindo? — Isabele interrompeu seus pensamentos, chamando-a de uma mesa próxima.
Hagar virou-se e viu Isa, uma visão que, em qualquer outro dia, ela talvez tivesse evitado. Isa era... magnética. Havia algo no brilho dos seus olhos, no jeito como ela se movia, confiante, que sempre desestabilizava Hagar, mesmo que ela jamais admitisse. Seus cabelos longos e castanhos pareciam sempre perfeitamente arrumados, e o batom vermelho que ela usava era quase uma assinatura, marcando sua personalidade ousada e autoconfiante.
— Sim, até os workaholics decidem curtir uma sexta às vezes — respondeu Hagar, forçando um sorriso casual, embora a proximidade de Isa a deixasse inquieta.
As intenções de Isa sempre ficavam muito claras. Desde que começou a trabalhar com ela, Hagar fingia não entender os flertes escancarados, pois aprendeu que o melhor era manter sua vida pessoal e profissional separadas.
Só namorou uma única vez. Depois disso, nenhum dos seus rolinhos foi para frente, e não por falta de tentativa das garotas com quem ela se envolvia. Ela estava em uma fase que gostava de definir como "indisponível emocionalmente".
Hagar sempre gostou de rolês de casal sem expectativas, e, quando qualquer envolvimento ficava mais sério, ela fugia na primeira oportunidade. Nunca por maldade, mas por alguns traumas que ficaram do seu primeiro relacionamento, que não foi muito saudável.
Ela não fazia questão de esconder isso de ninguém com quem se envolvia. Sexo casual funcionava muito bem.
— Nesse caso, vamos tomar um drink. Você não pode me negar isso. — Isa se levantou com uma expressão que era quase um desafio, começou a recolher suas coisas, sem sequer esperar por uma resposta. Era típico dela: assumir que o mundo, e Hagar, seguiriam seu ritmo. — Tivemos uma semana do cão. Você precisa de uma bebida tanto quanto eu.
Hagar hesitou, algo que Isa notou imediatamente, aquele sorriso intrigante brincando em seus lábios. O convite parecia inocente, mas havia algo no tom de Isa que fazia sua mente trabalhar rápido. Ela tentou pensar em uma desculpa, qualquer coisa que a livrasse daquela interação carregada de uma tensão que ela fingia não perceber.
— Isa, não sei se isso é uma boa ideia — disse, já pronta para sair dali. O dia foi cheio, e sua cabeça estava a mil por hora.
— Qual é o problema, Hagar? É só uma bebida. Não mordo... a menos que você peça. — interrompeu Isa, inclinando a cabeça com aquele sorriso provocador que Hagar já conhecia tão bem. — Ou você está com medo de mim?
O flerte era descarado, como sempre. Hagar soltou uma risada curta, uma tentativa de desviar a atenção do calor que subia por seu rosto. De poucos amigos, mas sempre muito engraçadinha, Hagar fazia amizades com facilidade. Por isso, sempre tinha companhia para viajar ou sair para beber um drink ao final do expediente. Sabendo que não poderia evitar aquilo por muito mais tempo, decidiu ceder. Afinal, não havia nada demais em um happy hour após uma longa e estressante semana de trabalho.
— Medo? De você? Nem um pouco.
Isa se aproximou, seus olhos brilhando com um misto de diversão e desafio.
— Ótimo. Então vamos.
— Tudo bem, como dizem, se não pode vencê-los... junte-se a eles.
Quando chegaram ao bar, Isa parecia estar em seu ambiente natural. Ela comandava a atenção com uma facilidade que fazia Hagar se sentir muito consciente de si mesma, então Hagar se deixou envolver pela energia vibrante do lugar. O som suave da música, o riso das pessoas ao redor e o aroma convidativo dos coquetéis recém-preparados criavam uma atmosfera quase mágica. Isa era uma presença magnética, chamando a atenção de todos ao redor, mas parecia totalmente concentrada em Hagar.
— Aqui está. — Isa entregou um copo a Hagar e ergueu o seu. — Um brinde...
— A quê? — perguntou Hagar, arqueando uma sobrancelha.
— A uma sexta-feira bem aproveitada. — Isa sorriu, mas havia algo mais naquele sorriso. Algo que parecia dizer que ela estava pensando em aproveitar mais do que apenas a bebida.
— Saúde, então. — Ela ergueu o copo, tocando levemente o de Isa.
Enquanto bebiam, a conversa fluiu de forma surpreendentemente natural. Isa falava sobre sua paixão por arte, viagens e fotografia, enquanto Hagar, relutante no início, revelava pequenos fragmentos de si mesma.
— Então, me diga — começou Isa, enquanto entregava um drink a ela. — O que você faz além de trabalhar tanto e fingir que não percebe quando alguém flerta com você?
Hagar quase engasgou com a bebida, mas recuperou-se rapidamente.
— E se eu simplesmente preferir manter a vida pessoal longe do trabalho? — retrucou, tentando esconder o sorriso que ameaçava escapar.
Isa riu, um som leve e encantador.
— Justo. Mas hoje é sexta-feira. As regras podem ser quebradas, não acha?
Enquanto elas bebiam Hagar sentiu algo que não sentia há muito tempo: leveza. Sequer lembrava a última vez que saiu para jogar conversa fora ou beber um drink com uma garota legal.
— Às vezes, acho que você é um mistério maior do que qualquer relatório que já analisei — Isa apoiou o queixo na mão, olhando diretamente para ela. — Sabe, você é um enigma, deixa escapar só o suficiente para manter as pessoas curiosas. É de propósito?
Hagar riu, mas desviou o olhar.
— Talvez. Ou talvez eu só prefira evitar complicações.
Isa inclinou-se para frente, diminuindo a distância entre elas.
— Quem disse que mistérios precisam ser complicados?
A voz dela era baixa, quase um sussurro, e Hagar sentiu um arrepio percorrer sua espinha, então apenas sorriu.
— Talvez seja porque eu prefira assim.
Isa estudou-a por um momento, seus olhos brilhando com uma mistura de curiosidade e algo mais.
— Me diga, Hagar, por que você finge não perceber quando eu flerto com você? — Isa perguntou de repente, pegando-a de surpresa.
— E quem disse que eu não percebo?
Isa arqueou uma sobrancelha, claramente se divertindo.
— Então você percebe. Isso torna as coisas mais interessantes.
Hagar sentiu o rosto esquentar, mas manteve a compostura.
— Interessantes, talvez. Fáceis, nem tanto.
O sorriso de Isa se alargou, e ela inclinou-se ainda mais, até que seus rostos estivessem próximos o suficiente para que Hagar sentisse o perfume dela.
— Eu nunca disse que gostava de coisas fáceis.
O silêncio que se seguiu estava carregado de tensão. Hagar sabia que aquele momento era perigoso, o bar parecia desaparecer ao fundo, e por um breve momento, apenas elas existiam naquele espaço. A noite prometia ser mais do que apenas uma sexta-feira comum.
— Então, o que você faz para se divertir quando não está enterrada no trabalho? — Isa perguntou, o olhar curioso fixo em Hagar.
— Academia, filmes e viagens — respondeu Hagar com um sorriso. — Mas, honestamente, minha rotina não me deixa muito tempo para diversão.
Isa riu, um som leve e contagiante.
— Você definitivamente precisa mudar isso. A vida não é só trabalho e responsabilidades, sabe? — Isa levantou o copo em um brinde.
— Às sextas-feiras bem aproveitadas e às surpresas que elas podem trazer!
Hagar ergueu seu copo com uma leve hesitação, mas o sorriso de Isa era contagiante e sincero. Havia algo no jeito como Isa a olhava que deixava Hagar ligeiramente desconfortável, mas não de uma forma ruim.
— E então, Hagar, o que realmente te faz feliz? — Isa perguntou, sua voz um tom mais baixo, quase como um segredo.
A pergunta pegou Hagar de surpresa. Ela não sabia se era o drink ou o olhar insistente Isa, mas algo dentro dela se agitou. Há quanto tempo não pensava nisso? A felicidade parecia algo abstrato, uma ideia distante em meio à rotina frenética e às muralhas emocionais que havia erguido ao longo dos anos.
— Acho que ainda estou tentando descobrir — respondeu, finalmente, depois de uma longa pausa.
Isa sorriu de um jeito que era ao mesmo tempo compreensivo e provocador.
— Então talvez seja hora de começar. Quem sabe hoje não é o dia para isso?
Isa inclinou-se levemente, deixando sua presença ainda mais próxima de Hagar, e com um sorriso provocante, arriscou um toque suave na mão de Hagar.
— Você é mais interessante do que deixa transparecer, sabia? — disse Isa, sua voz carregada de intenção.
Hagar desviou o olhar por um segundo, tentando conter o sorriso que ameaçava surgir. Antes que pudesse responder, Isa completou:
— A gente devia se ver mais fora do trabalho. Não como colegas, mas como... algo mais.
Hagar contornou o ar de provocação, com sua melhor habilidade social "fazer palhaçadinhas" para levar aquela noite da forma como ela gostaria. A conversa continuou, e a noite passou mais rápido do que Hagar esperava. Ao saírem do bar, o ar fresco da noite de São Paulo era um contraste revigorante com o calor que sempre era trazido pelo álcool. Isa, puxou Hagar para um abraço, e deixou um beijo suave no canto da sua boca.
— Foi uma boa noite, não acha?
Hagar sorriu, algo genuíno desta vez.
— Sim, foi. Obrigada por insistir.
Enquanto cada uma seguia seu caminho, Hagar não podia deixar de refletir sobre como pequenos momentos podiam trazer significados inesperados. Talvez Isa estivesse certa. Talvez fosse mesmo hora de redescobrir o que a fazia feliz.
De repente, o celular de Hagar vibrou. Uma mensagem no WhatsApp de um número que não estava salvo apareceu na tela: "Hagar, precisamos conversar. Por favor, retorne."
O sorriso de Hagar desapareceu. Aquela mensagem mexeu com ela, trazendo de volta memórias que preferia manter enterradas, mas que inevitavelmente voltavam para assombra-la sempre que as coisas estavam indo bem.
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