Vinte: Viagem

Não havia maior frustação do que perder algo importante minutos antes de uma longa viagem. 

— Por que as coisas somem quando mais precisamos dela? — perguntei e descontei a raiva na porta de um dos armários de mantimentos, batendo sua portilhola com força.

Segui com minha busca minuciosa e revirei cada canto daquela cozinha, sem obter êxito algum. Para piorar a situação, Maria Isabel contribuía com minha irritação, pois não parava de berrar em meus ouvidos e se recusava ir no colo de qualquer pessoa além de sua inesquecível mãe.

Era um daqueles dias onde nada fluía.

— Já olhou em tudo no quarto? — questionou dona Socorro em busca de trazer alguma luz a minha péssima memória.

Arfei frustrada e soltei um urro, como uma adolescente rebelde.

— Sim, revirei tudo atrás daqueles sapatinhos idiotas e só encontrei apenas um deles. Victor já mandou mensagem avisando estar chegando e eu nem mesmo troquei meu pijama ou arrumei meus cabelos — reclamei chorosa e tentei inutilmente controlar os fios rebeldes querendo escapar do meu coque mal feito. — Além de tudo isso, Mabel não dormiu direito e não quer me dar um segundo de alívio. Ela já está linda e arrumada, mesmo sem um sapato, e eu aqui nesse estado deprimente.

Em seguida, sem desistir de inspecionar todos os lugares possíveis, abaixei com cautela e me apoiei nos joelhos a fim de verificar se o objeto da minha busca havia caído debaixo da mesa, mas acumulei mais uma tentativa falha a minha lista.

Quando me reergui, flagrei Dona Socorro unindo os lábios e me dando um de seus olhares inquisitivos.

— Quer saber qual minha opinião? — questionou, mas não acredito que ela teria se importado se eu me negasse a ouvir suas impressões. — Você está agindo como mamãe neurótica porque se sente ansiosa em relação a viagem com o doutor Victor. Estou errada?

Ergui as sobrancelhas e apoiei uma das mãos na cintura.

— Isso não é verdade — neguei, mas o tom fino de minha voz acabou revelando muito mais do que eu gostaria. — Estou em pleno estado de espírito. — Forcei-me a respirar fundo e esboçar um sorriso pra lá de falso.

A senhora fez um bico e não pareceu engolir minhas desculpas esfarrapadas.

— Passe a bebê pra cá e vá se arrumar — mandou, e foi ágil em se aproximar para pegar Maria, sem se importar com os incessantes berros dela. — Já lidei com momentos assim muitas vezes na minha vida. Agora vá, Sarah! E não se preocupe com o sapatinho, posso pedir para Karen procurá-lo.

Meu coração doeu ao ouvir minha filha usar seus novos talentos e balbuciar "mama", como se pedisse por auxílio enquanto eu deixava a cozinha e seguia para o quarto. No entanto, ceder a manha dela significava correr o risco de ser vista como louca ao visitar a família de Victor com pijamas.

Procurei ser veloz no banho e no escolher de vestimentas para aquela ocasião especial. Optei por um modelito simples, sem muita pompa. Um vestido florido de alça, cardigã e rasteirinha eram suficientes para mim.

Enquanto penteava minhas mechas marrons recém-lavadas em frente ao espelho, lembrei do quanto já fui cuidadosa com a aparência. Queria andar sempre impecável e gastava horrores com cosméticos sem fim. Entretanto,  o nascimento da minha filha me fez deixar muitas coisas de lado. Sim, posso ter sido um pouco negligente, confesso, porém era inútil desejar estar bonita apenas para ficar em casa ninando, amamentando, trocando fraldas. Eu pensava ter enterrado minha vaidade, mas o batom em meus lábios provou o contrário.

Não entendia meu próprio modo de agir e questionava aquela mudança de atitude repentina.

Seria Victor o culpado de reaver minha  vontade de estar bonita outra vez?

A mente insensata comportou-se de modo sagaz ao trazer luz ao dia anterior quando dividi momentos especiais com Victor.

Toquei minha face e fechei os olhos, ainda sendo capaz de sentir os dedos dele roçando minha pele com carinho e me permiti ser deixada levar pelas recordações dos inúmeros momentos mágicos semelhantes àquele compartilhados com meu antigo amor. A contração no ventre foi imediata e quando tornei a realidade notei as bochechas vermelhas como dois tomates maduros.

O que está acontecendo comigo, meu Deus? pensei aflita e agradeci quando algumas batidas na porta do quarto me fizeram deixar aquelas divagações malucas de lado.

Quando abri a porta, vi o cerne das minhas preocupações se materializar em minha frente, segurando nossa filha nos braços. Mabel usava os dois sapatos, sinal de que uma boa alma havia solucionado meu problema de mais cedo.

Engoli em seco e precisei segurar o ar alguns instantes ao ver Victor tão injustamente bonito, usando uma camisa social azul e calças jeans.Também notei a diferença em sua barba mais rente à pele em comparação ao dia anterior.

— Bom dia — saudou sorrindo com certo ar de nervosismo. Os olhos afiados dele me analisaram de cima à baixo e eu seria uma grande mentirosa se negasse a expectativa por ouvir um mísero elogio dele.

Balancei a cabeça com o intuito de espantar aqueles pensamentos malucos.

— O que veio fazer aqui em cima? — investiguei e ao lembrar da bagunça no quarto logo atrás de mim, fechei a porta delicadamente.

Não queria ser vista como a mãe relaxada que eu era.

— Bem, cheguei agora a pouco e decidi vir checar se você já estava pronta — informou e eu me senti lisonjeada. — Claro que no meio do caminho encontrei essa mocinha aqui chorando e precisei interferir, usando meus super-poderes de pai. Advinhe qual minha tática para acalmá-la? — perguntou olhando para a filha com orgulho paterno exagerado.

Alisei meu vestido e balancei os ombros, revelando não saber aquela resposta.

— Por acaso não deu nenhum doce para ela, né? Não faz bem na idade dela e...

Ele soltou uma risada e eu me dei conta que certamente o rapaz sabia daquilo, afinal era quase um pediatra por completo. 

— Eu cantei — revelou animado e depositou um beijo na cabecinha da bebê. — Ela gosta da minha voz, quer ver só? — Levantou Mabel em frente ao seu rosto e disposto a provar seu ponto a todo custo, gesticulando e entoando conforme a letra: — Nas conchinhas lá do mar, nas estrelinhas do céu, no universo infinito, sim, comigo Deus está. Quem quiser pode escutar, no cantar de um sabiá. No sussurro do vento e no chuá das ondas do mar.

Ao término da canção e inúmeros rodopios e movimentos de sobe e desce no ar feitos pelo pai, Mabel gargalhava, deixando todo o seu comportamento manhoso de lado.

Foi inevitável me alegrar com aquela cena. Victor estava arfante e mereceu minhas sinceras palmas em retribuição ao seu esforço.

— Costuma agir assim com seus pacientes? — perguntei e ao notar minha lenta aproximação, ele ficou tenso e fez um movimento quase imperceptível para trás. 

— Você se surpreenderia com a quantidade de brinquedos que coleciono em meu consultório — brincou nervoso e a maneira com a qual evitava olhar para mim, me magoou um pouco.

— Nós já vamos? — sondei e ele assentiu com a cabeça. Em seguida começou a fazer o percurso em direção às escadas.

Soltei o ar pela boca de maneira pesarosa e fiquei muito confusa com aquele comportamento arredio do homem. Nem mesmo parecia o mesmo Victor por quem fui tratada com tamanho zelo há pouco tempo.

Frustrada, adiantei o passo e alcancei o médico quando ele já se preparava para descer os primeiros degraus.

Do andar inferior eu ouvi a gargalhada familiar de Josué e imediatamente lembrei de algo que precisava perguntar ao Victor.

Chamei atenção dele dando alguns puxões em sua camiseta. Ele estremeceu com o meu toque e esbocei um leve sorriso, achando graça por vê-lo agir como um gato arisco.

— Você resolveu suas pendências com o Josué? Não quero precisar lidar com os vocês agindo como dois meninos desobedientes outra vez — investiguei preocupada, pois no dia anterior antes de ver qual havia sido a resolução da conversa entre os dois encrenqueiros, precisei voltar para o casarão com Mabel e resolver uma urgência envolvendo fraldas sujas, descobrindo logo depois que tanto Victor quanto Coelho haviam partido sem se despedirem.

O médico virou-se em minha direção e percebi seu esforço para segurar o riso. Talvez eu estivesse me preocupando a toa.  

— Claro, Sarah. Coelho concordou em me perdoar se eu o acompanhar no estande de tiro em minha próxima folga — informou e a preocupação só de pensar em Victor com uma arma ficou visível em meu semblante. — Homens não são como as mulheres, Sarah. Nós nos acertamos assim, na força bruta.

Virei a cabeça de um lado para o outro, evidenciando meu descontentamento. Se eles brigassem outra vez, eu seria capaz de usar a tal força bruta para enfiar juízo na cabeça deles pelo nariz.

Após passar na sala de televisão e pegar a bolsa de Mabel, acompanhei Victor até o lado externo do Instituto e fiquei com Mabel na varanda quando ele pediu licença para ir até o carro emprestado de Josué e assim verificar os últimos detalhes referentes a viagem. Também cuidei para não esquecer nada de importante na bolsa da bebê.

— Vai almoçar com a família do futuro marido. Quanto avanço, hein — comentou Josué sugestivo, me pegando de surpresa com sua repentina aparição. Ele manteve distância e apoiou-se na cerca de madeira que rondava as extremidades da varanda.

Senti o coração palpitar, não somente pelo susto, mas também pelas insinuações do rapaz.

— Não seja bobo — rebati, enquanto recontava as fraldas, fazendo os cálculos se estava realmente levando a quantidade necessária para aquele dia. — Mabel é quem está indo conhecer a família do pai. Além do mais, já estive na presença dos avós de Victor e os considero boas pessoas.

Ele crispou os olhos e umedeceu os lábios, meio hesitante de falar.

— Use o tempo da viagem para decidir de uma vez o seu futuro, Sarinha. A Mabel precisa crescer em uma família estruturada — aconselhou e nossa conversa foi interrompida por Victor me chamado para irmos embora, estando apenas a alguns metros de distância da varanda.

Levantei-me do banquinho, soltei o ar preso nos pulmões e ao passar por Josué segurei sua mão com firmeza.

— Meu grande amigo, Josué... — Sorri com carinho. — Ore por nossa viagem e cuide das moças por mim.

— Pode deixar! E saiba que vou sentir falta dessa coisinha linda do tio. — Ele apertou as bochechas de Mabel e eu sorri com ele.

Depois de me despedir das moças e aceitar o abraço de Dona Socorro fui encontro de Victor no carro. A viagem não seria tão longa, mesmo assim eu insisti em ficar atrás onde a nova cadeirinha de Mabel estava instalada.

Poucos minutos depois, já seguíamos em direção a cidade dos avós de Victor. Havia um clima estranho entre nós e eu não sabia explicar bem o porquê. Desde quando chegara ao Instituto, ele vinha agindo como se quisesse me evitar a todo custo.

— Você está esquisito novamente — comentei rompendo o silêncio, após flagrar o terceiro olhar de soslaio dele pelo retrovisor.

— Impressão sua — desconversou, voltando sua atenção para a estrada.

Cruzei os braços em frente ao busto. 

— Se pretende continuar me tratando dessa maneira, penso que seja melhor voltarmos — murmurei irritada.

Victor se mostrou tenso e preocupado, e fez proveito de um farol vermelho para voltar-se para mim. Notei de imediato a tristeza marcando alguns pontos específicos de seu belo rosto.

— Não diga isso, Sarah. O problema não é com você e sim com essa nuvém de problemas pairando sobre minha cabeça — confessou.

Olhei para baixo e senti um nó se formando em minha garganta após pensar em várias hipóteses, especulando sobre quais aflições incomodavam Victor e chegar a uma triste conclusão.

— Estamos sendo um fardo pra você?

Minha pergunta gerou nele um grande espanto e ele se apressou em negar com cabeça.

— Não diga absurdos, pelo amor de Deus — repreendeu-me em um tom duro e ateve-se a dirigir o carro outra vez. — Tenho pensado em vocês duas o tempo todo. Preciso dar um jeito de tirá-las daquele instituto.

O alívio foi imediato por um lado, mas a tensão pairou novamente sobre os meus ombros ao saber dos planos do doutor.

— Estamos bem no Instituto. Ninguém nos faz mal lá. Pelo contrário, fomos muito bem tratadas — garanti e acariciei a barriga da bebê balbuciante ao meu lado.

— Não duvido disso, Sarah. Mas, você pretende morar ali para sempre? — questionou e eu precisei refletir um pouco sobre aquilo.

— Não sei se Josué lhe disse, mas a mãe dele é costureira, trabalha em um ateliê improvisado em sua casa. Ele se prontificou a falar com ela por mim e bem, caso eu consiga um emprego, poderia ter algum dinheiro pagar o aluguel de alguma casinha simples — informei e pela careta Victor não aprovou meu plano.

— E pretende deixar Mabel numa creche nas mãos de desconhecidos e separá-la dos seus cuidados? — investigou em um tom nada amigável. — Não posso permitir uma coisa dessas.

Sorri debochando um pouco da atitude dele.

— E qual sua sugestão? Não posso ficar no Instituto, não posso trabalhar. Devo procurar algum lugar debaixo de alguma ponte? — caçoei e isso deixou Victor ainda mais irritado.

Ele arfou e fez um bico.

— Você me irrita — declarou rabugento. — Agradeço a todos por terem as acolhido, entretanto vocês duas tem a mim agora, e eu sou capaz de sustentá-las. Por isso, darei um jeito

Um tremor passou pelo meu corpo ao ouvi-lo falar com tamanha convicção. Aquelas eram as exatas palavras que eu gostaria de ter escutado quando descobri a gravidez e me vi sozinha no mundo. Não pude negar sentir os olhos marejando. 

— Faça como achar melhor — pedi e ele manejou a cabeça em afirmativa.

Retornei a encostar no banco estofado e enquanto observava através da janela aquele belo céu azul fazendo cenário para as campinas verdejantes em redor da estrada pela qual seguíamos, me deixei ser levada por meus pensamentos tolos, nutrindo falsas esperanças em relação ao motorista a minha frente. 

Eu precisava ocupar a cabeça, se não enlouqueceria ou sufocaria com meus próprios sentimentos.

— Pode ligar o rádio, por favor — pedi e Victor foi direto com o dedo indicador apertar o botão de ligar.

A música tocando na estação escolhida aleatoriamente me causou uma grande nostalgia e vontade de rir ao notar o doutor revirando os olhos.

Eu possuía um amor inexplicável por aquela boyband desde meus treze anos e isso, durante meu namoro com Victor foi motivo de muitas discussões irracionais que naquele instante me levaram a rir.

Quando ele ameaçou mudar de estação, eu soltei um grito e me adiantei em puxar o braço musculoso dele para trás.

— Nem pense nisso!

Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu com minha reação.

— Ora, você ainda não desistiu desses desocupados? — arguiu inconformado.

— Eles não são desocupados, são artistas — defendi com unhas e dentes. — E é claro que não desisti. Um amor de fã não se apaga com facilidade.

— E mesmo depois de tanto tempo eles permanecem sem saberem da sua existência, fã — contestou, só para me ver nervosa, mas eu não deixei barato.

— Não importa! Ainda gosto muito deles. Aliás, para a sua informação, se Mabel fosse um menino, certamente ganharia o nome do baterista da banda — provoquei só para ter o prazer de ver aquela fenda se formando na testa dele. — Max.

— Você não teria essa coragem — desafiou em tom de zombaria. — Estaria condenando meu filho a ter aquele cabelo longo e esquisito. Nem pensar.

Abri a boca em completa indignação.

— É o charme dele! Se você fosse tão bom na bateria poderia dizer alguma coisa do cabelo dele. Não, não aceito suas ofensas!

Nós começamos uma discussão engraçada semelhante àquelas do passado. Tomei partido de minha banda favorita e zombei do ciúmes dele até não poder mais.

— Finalmente já chegamos em Nova Canaã. Eu morreria se precisasse ouvi-la descrever outra vez como você sonhava em se casar com o tal Max — desdenhou mau humorado e para raiva dele, eu ri. — Aceite seu destino querida, você enviou aquela carta aos quatorze anos pedindo ele em casamento e foi rejeitada, não é?

Victor tinha razão e eu dei risada por lembrar de como fiquei chateada por ter sido desprezada na época.

— Deus deu a todos os membros da banda esposas boas e muitos filhos. Se quer saber, eu já me contentei com a condição de apenas fã. — Sequei uma lágrima dos olhos, após gastar todo o meu estoque de gargalhadas.

Victor fez uma careta, também se divertindo com as minhas brincadeiras.

— Eles são azarados por não terem lido a sua carta. Você também daria uma excelente esposa — elogiou fazendo minhas bochechas queimarem. — E curioso, agora que estão todos em um matrimônio seguro, eu posso até apreciar a música.

— Desculpe, eu não pretendia despertar seu ciúme assim tão cedo. Ontem já foi o suficiente — zombei e notei quando ele engoliu com dificuldade.

— Foi bom você ter falado isso, pois precisamos conversar — alertou transformando todo o tom cômico em sério.

Victor aproveitou o fato de ter estacionado com o carro em frente a uma bela casinha e após soltar o cinto de segurança me encarou fixamente.

— Já chegamos? Espere, você não vai me mandar descer do carro e voltar para Santa Fé a pé só porque eu daria o nome de "Max" se tivéssemos um menino, não é? — questionei engraçadinha e ele negou rapidamente.

— Sim, chegamos, mas antes de entrarmos, eu gostaria de te pedir perdão — começou me causando estranheza com sua inusitada atitude. — Ontem quando estávamos sozinhos, eu toquei você de maneira inapropriada. Fui levado pelo meus impulsos e agi como o antigo Victor. — Soltou um suspiro e olhou para baixo. — Tenho grandes dificuldades de enxergá-a apenas como a mãe da minha filha. Mas eu te prometo, Sarah, não vou mais tratá-la como se fosse minha propriedade, muito menos farei qualquer coisa para desrespeitá-la outra vez. Você é minha irmã em Cristo e deve ser tratada com toda a pureza e respeito.

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