Vinte e Dois: Fé

— Não, eu já falei. Pare de insistir nessa ideia, Sarah — Victor declarou irredutível e do sofá, onde estava sentado confortável assistindo televisão, eu pude ouvir quando soltou o ar pela boca, evidenciando sua impaciência. — É impossível sairmos daqui nessa chuva.

Cruzei os braços em frente ao busto e comecei a balançar a perna de modo frenético.

— A chuva já está passando — exagerei, e bastou alguns segundos encostada na viga da porta da varanda para constatar o contrário da minhas palavras. Os pingos continuavam grosseiros molhando a terra e o vento gélido parecia cada vez mais forte.

Já fazia mais de duas horas que chovia sem parar em Nova Canaã. Eu buscava manter a esperança de voltar para Santa Fé ainda naquele dia assim como foi planejado. Entretanto, para minha frustração, a noite já havia chegado e Victor se mostrava cada vez mais decidido a permanecer na casa de seus avós até o dia seguinte.

— Vamos embora, por favor — murmurei com a voz manhosa, mas isso não convenceu Victor.

Ele continuou focado no jogo de futebol acirrado na tela a sua frente.

— Já pensou no quanto será desagradável atolar o carro e sermos obrigados a ficar confinados com uma bebê de sete meses no meio do nada até que alguém se compareça em vir nos resgatar? — questionou pertinente, sem dar muita atenção para o meu drama.

Victor estava certo, mas eu não quis dar o braço a torcer.

— Você precisa ser assim tão pessimista? — rebati e virei-me a tempo de flagra-lo revirando os olhos.

— Não é pessimismo. Estou sendo realista. Será impossível chegar a Santa Fé com o tempo assim — declarou e após levantar-se, caminhou até estar parado diante de mim. — Além do mais, antes de ir se recolher, minha avó já deixou tudo preparado. Pare de reclamar e relaxe, pois voltamos amanhã.

Um completo desespero tomou conta de mim, fazendo até mesmo minha respiração ficar irregular.

— E se acabarem as fraldas de Mabel? E se as roupas que eu trouxe sujarem? E... E se ela ficar doente? Como a levaremos ao hospital? — questionei em choque. — Ah, Victor! É melhor irmos embora agora, vou arrumar nossas coisas — declarei e estava prestes a sair do meu lugar, quando o rapaz a minha frente segurou meu braço na altura do cotovelo.

Os olhos dele se fixaram nos meus e ele apontou o indicador em minha direção.

— Eu não vou colocar a vida de vocês duas em perigo, Sarah. Nem pensar. Assumo a responsabilidade de qualquer problema, inclusive ir a pé procurar por alguma farmácia aberta se preciso, mas ficaremos aqui — Apontou para o chão, afirmando sua escolha de modo autoritário. — Já avisei ao Coelho e à dona Socorro sobre o imprevisto e também combinei com o doutor Murilo de pegar o plantão noturno do PS infantil amanhã.

Afastei-me dele, arfei e permaneci algum tempo com um bico descontente nos lábios e aos poucos fui me convencendo. Logo depois a tensão nos meus ombros começou a se dissipar aos poucos até eu me dar por vencida completamente.

— Tudo bem, você tem razão — admiti, sentindo um gosto amargo na boca.

Vic piscou de um jeito charmoso.

— Ótima escolha. Sempre a considerei uma mulher inteligente — elogiou, me dando os créditos de sua decisão. — Será bom passarmos algum tempo em família. Pensei até mesmo na ideia de irmos á igreja amanhã pela manhã, assim te apresento um primo meu.

— Certo — respondi desanimada e fui para o sofá onde me sentei preguiçosamente.

Após constatar que o meu aborrecimento perduraria durante algum tempo, Victor trancou a porta da frente e voltou para assistir os últimos minutos do jogo. Quando o apito final soou, ele perguntou se eu gostaria de ver algo e eu neguei, então ele desligou a TV e pedindo licença foi em direção aos quartos. Antes de deixar a sala definitivamente, ele resolveu virar-se e me deixar á par de seus planos.

— Bem, eu vou tomar um banho rápido — informou. — Pedi a vovó para emprestar um pijama a você, caso queira se banhar depois de mim. Está tudo sobre a cama.

— Ok — murmurei e quando o vi sair, aproveitei para segui-lo até metade do caminho.

Nos separamos, ele entrou no banheiro e eu fui para o quarto onde encontrei minha bebê dormindo sobre a cama entre dois travesseiros grossos, paradinha na mesma posição na qual foi deixada minutos antes.

Deitei na cama e perdi algum tempo observando Mabel e pensando sobre minha própria vida.

Eu precisava ser sincera comigo mesma. Apesar de ter gostado, e muito, de ter sido recebida com tanto amor por dona Rita e Seu João Carlos, minha vontade era voltar para casa o mais rápido possível e extravasar todos aqueles sentimentos, através do choro no confinamento do meu quarto.

O problema era Victor.

Não, não.

O problema era o fato de eu estar confusa, sem saber se amava aquele homem ou estava apenas cedendo ao meu instinto natural de querer dar um pai e uma família perfeita a minha filha.

Aquilo era demais para minha cabeça, que aliás estava latejando devido ao acúmulo de dilemas para serem considerados.

E certamente passar mais tempo com o lindo Victor não me ajudava em nada, muito pelo contrário, pois eu apenas colocava mais lenha na fogueira do meu débil coração.

"Eu preciso ser sábia, Senhor. Não posso agir como antes, nem ser obstinada contra as tuas leis estabelecidas. Ponha os meus desejos debaixo do teu domínio e controle meus impulsos pecaminosos. Eu te imploro, Jesus" orei ao Deus da minha Salvação, sentindo a alma angustiada e perdida.

Permaneci conversando com o Senhor,  elencando mentalmente algumas medidas cabíveis para me impedir de errar como o fiz no passado. A primeira delas foi pedir uma ajuda Dele para comprovar se a mudança de Victor era verdadeira ou não. Eu não descartava a possibilidade de estar diante de um lobo vestido de cordeiro, e necessitaria ter meus olhos bem abertos, caso os planos de Victor fosse apenas me enganar outra vez. Depois teria de vigiar quanto a proximidade entre nós, tratando-o igualmente como um irmão em Cristo. Seria difícil, e com certeza eu deveria ser muito forte. Entretanto, minha consideração por Victor apesar de real, jamais ficaria a frente do meu amor pelo Senhor Deus.

— Pode ir lá, eu já acabei — o tema das minhas preces me deu um susto com sua aparição repentina. Fui rápida em desviar meus olhos quando senti meu coração palpitar só de notar o quanto ele ficava lindo com os cabelos molhados, usando um conjunto de moletom preto. Ele percebeu minha agitação e pra minha sorte atribuiu isso a outro fator. — Não se preocupe, ficarei aqui olhando Mabel.

Mantive a cabeça baixa, pois seria muito vergonhoso se ele constatasse minhas bochechas ruborizadas.

— Tem certeza? — questionei inquieta.

— Vai lá — delegou e quando voltei a mirá-lo, ele enxugava seus fios rebeldes com a uma toalha de algodão.

Assenti e não pensei duas vezes em erguer meu corpo da cama, pegar as roupas separadas por dona Rita e sair do quarto, do contrário fazer uma besteira seria inevitável, principalmente sentindo aquele cheiro maravilhoso de homem limpo tomando conta do quarto.

Passei um tempo considerável debaixo daquela água quente. Parte de mim aproveitava o tempo de paz e silêncio para relaxar e descansar os músculos tensos, porém a outra só queria mesmo evitar o encontro com o belo Victor novamente, mesmo isso sendo impossível.

Fechei o registro, sequei meu corpo e na hora de colocar o pijama, foi impossível não rir. Dona Rita pareceu ter achado aquela longa camisola de seda bege de mangas também compridas, no guarda-roupa de alguma rainha inglesa muito velha. Era conservador e modesto. Ainda assim, por respeito a minha dignidade decidi recolocar meu vestido casual e trocar de roupa apenas na hora de dormir.

Ao retornar para o quarto tive a gratificante imagem de Vic sentado na cadeira perto da janela, apoiando sua bíblia sobre a escrivaninha de madeira. Ele parecia concentrado na leitura, enquanto fazia anotações em um caderno e mesmo assim, notou quando entrei no cômodo.

Imediatamente o rapaz começou a organizar suas coisas, talvez almejasse sair logo dali.

— Desculpe, você deve estar querendo ir dormir.  Já estou de saída — ele informou afoito. 

— Está estudando o quê? — argui curiosa e depois de guardar meus pertences em um canto qualquer, aproximei-me daquela mesa de madeira iluminada por uma luminária a fim de inspecionar de perto o que o homem estava fazendo.

Victor coçou a nuca, deu breve olhadelas em direção a entrada do quarto e abriu novamente a bíblia na página onde estava.

— O livro do apóstolo João — revelou e ao notar como aquela simples informação não me sastifez, ele resolveu ser mais específico. —
Estou no capítulo três, versículo dezoito e dezenove: "O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más.  Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras. — Ele fez uma pausa. — Esse texto mexe muito comigo.

Uni as sobrancelhas e com interesse, apoiei um braço sobre a escrivaninha.

— Por que? — inquiri, ansiosa para saber o motivo das divagações do médico.

Victor pensou um pouco e parecia formular alguma boa resposta na mente. Quando namoravamos, eu jamais o ouvi citar algum texto bíblico durante nossas conversas, isso talvez fosse devido aos assuntos tratados entre nós. A maioria girava em torno de coisas fúteis como festas, passeios e brigas sem sentido. Seja como for, eu demonstrei meu interesse por ouvi-lo, de maneira exacerbada e talvez isso o tenha constrangido.

— Bem, o Senhor mostra como só existem duas maneiras de viver. Ou somos os escolhidos que estão prostrados diante do Filho de Deus para adorarem e se submeterem ao seu senhorio, ou vivemos como nossos primeiros pais, escondendo os pecados, fingindo não haver um Deus e ignorando o fato da existência não se limitar ao aqui e agora — explicou com a voz inconstante e me pegou de surpresa com suas palavras profundas — Somos tão egoístas, Sarah. Vivemos procurando um meio de obter vantagem e recompensas, queremos nos exibir como os melhores, os perfeitos e bonzinhos. — Fez uma pausa. — Mas esquecemos como até mesmo as melhores obras das nossas mãos são podridão e imundice diante de Deus. Por isso, quando estamos diante de Cristo... — Ele engoliu em seco e fechou os olhos por alguns momentos. — Diante da sua Luz somos desmascarados. Nosso pior é tirado do esconderijo. É por isso que não poucas vezes os homens ao encontrarem com o Messias rangiam os dentes consumidos pela raiva e vontade de matá-Lo. Não queriam ser confrontados.

Era lindo ouvir Victor demonstrar tanto temor e conhecimento das Escrituras.

— Ninguém gosta de ser confrontado — comentei e ele concordou. — Nosso ego é frágil demais.

— Mas é necessário, eu garanto — rebateu convicto e eu assenti. — Jesus mostrou a depravação total pulsando por todo o meu corpp e somente após reconhecer minha incapacidade para me salvar sozinho, eu entendi o quão necessário era o sacrifício Dele.

Senti um nó se formando em minha garganta. Aquele assunto também mexia comigo, pois dizia respeito Àquele que mudou meu destino eterno.

— O amor de Cristo demonstrado na cruz é realmente impressionante. — Suspirei extasiada.

— Deus nos justificou através de Seu filho amado e nos trouxe para sua família. O justo pelos injustos. É amor demais, Sarah. — Ele sorriu em minha direção. — Hoje entendo o porquê nunca feliz antes de Cristo. Quem busca felicidade em coisas terrenas...

— Fracassa, é claro — completei, interrompendo o rapaz.

— E Glória a Ele por isso, pois o fracasso dos homens mostrou o quanto precisávamos de alguém realmente sem mácula ou pecado para nos salvar e não homens soberbos exalando seu falso poder pelos poros. Era necessário alguém cujo resplendor é mais ofuscante do que o sol para dissipar as trevas — sussurrou enérgico e exalou um suspiro. — E Cristo dissipou as minhas trevas. — Ele curvou a cabeça. — Eu louvo ao meu Deus por isso. Por ter entregue seu Filho por mim, pela obra Redentora e por humilhar todos os meus intentos com sua graça — orou em voz alta.

Fiz alguns instantes de silêncio, deixando-o meditar e orar um pouco. Enquanto isso, eu mesma fiquei pensando em como gostei de saber do interesse de Victor pelas Escrituras.

"Quem diria?" Pensei ainda impressionada e quando o vi fechar a bíblia, resolvi importuná-lo mais um pouco.

— Eu ainda não havia conhecido esse seu lado — confessei quando o vi fechando sua bíblia.

Ele franziu o cenho e pareceu alarmado com minha aparição repentina.

— Qual lado? — arguiu, me encarando com curiosidade.

Minhas mãos logo começaram a transpirar, evidenciando meus temores quanto a desenterrar fatos do passado.

— Ora, você nunca demonstrou interesse pelas coisas de Deus e rapidamente trocava de assunto quando eu comentava sobre alguma pregação — falei devagar, sendo cautelosa para não ofendê-lo com meu interrogatório.

Aquela acusação pareceu o incomodar e isso pareceu evidente quando ele se mostrou inquieto na cadeira.

— Eu não sou mais o mesmo, Sarah — enfatizou deixando o tom de voz mais grave. — Além disso um cristão deve ler a bíblia. Isso deveria ser tão natural quanto respirar.

Mordi meu lábio e meu lado cético falou mais alto.

— Você lê todos os dias? — sondei, mas tentei disfarçar minha incredulidade usando meu próprio exemplo. — Digo por mim, eu tenho bastante tempo livre e mesmo assim sinto dificuldades em manter frequência nos estudos bíblicos. Quem dirá você cuja jornada de trabalho pode chegar até doze horas.

Vic balançou a cabeça, abriu na primeira página de seu caderno e fez questão de mostrar as provas de sua dedicação. Um checklist comprovou como ele havia lido a bíblia inteira e ao continuar folheando ele mostrou suas devocionais escritas até chegar ao ponto onde estava anteriormente.

— Uau! Eu queria ser assim — murmurei, boquiaberta, tentando disfarçar a ponta de culpa pela preguiça que muitas vezes me fazia negligenciar minha vida espiritual. — Senti até vergonha agora.

Ele riu um pouco do meu exagero.

— Não, não sinta. Suas responsabilidades com a nossa filha são importantes e devem tomar todo o seu tempo — confortou-me de um jeito fofo. — Você deve lembrar como sempre fui disciplinado com minha rotina. Isso não mudou muito.

Balancei a cabeça em afirmativa.

— É, eu bem me lembro das nossas discussões. Você nunca queria me levar ao cinema no horário da academia, nem respondia minhas mensagens quando estava estudando, mesmo se o céu estivesse desabando — relembrei e fiz Victor rir. — Estou errada?

Ele crispou os olhos, sorriu e acabou admitindo a verdade.

— Você pode estar certa, porém, para sua informação, hoje sou bem mais flexível. Trocaria um dia na academia para levar Mabel ao cinema sem pensar duas vezes — garantiu com um teor de orgulho engraçado. — As coisas saem do nosso controle, mas não do de Deus. A vida fica até mais leve quando entendemos isso.

— Concordo e fico feliz por ver suas mudanças — comentei exaltando as novas qualidades notáveis do rapaz. — É bom ver seu empenho não só com o trabalho, mas também com o Senhor.

Vic uniu os lábios e olhou para os lados.

— Você também mudou pra melhor. Embora ainda seja meio chata e turrona — gracejou cauteloso, mas isso não o livrou em nada do meu punho indo em encontro ao seu bíceps. Ele  fez uma careta e massageou a área atingida. — É melhor a gente imitar nossa bonequinha e irmos dormir também. Já está tarde e não quero correr o risco de ser alvo da sua ira novamente.

Revirei os olhos e acabei rindo do seu drama.

— Tudo bem — concordei, me afastei dele e peguei no guarda-roupa cobertores e travesseiros. — Tome, não quero te ver pegando uma pneumonia.  

Após guardar suas coisas, Vic ficou de pé, puxou o capuz do moletom e após dar um beijo em Mabel, finalmente atendeu aos meu chamado.

— Obrigada por cuidar do meu bem-estar. Trate de manter-se aquecida também — pediu quando já estava prestes a sair do quarto. — Eu te chamo pela manhã.

Nos despedimos, fechei a porta, troquei de roupa e deitar ao lado de Mabel, abraçando-a contra meu corpo.

Antes de pegar no sono, minha mente logo divagou nos momentos anteriores.

"Quando eu imaginaria Victor falando de Deus daquela maneira tão fervorosa?" Refleti em completo choque.

Minhas dúvidas acerca da conversão do meu antigo amor eram cada vez menores.

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