Trinta e Seis: Sujeição
Abri meus olhos ao ouvir aquele choro esganiçado e não foi surpresa alguma ser acordada por uma bebê irritada pela terceira vez naquela madrugada. Todas as mudanças de rotina, de casa e de convivência que aconteceram durante a semana mexeram com a cabecinha dela.
Adaptações nunca eram fáceis e tal como Mabel, eu também lidava com meus próprios dilemas.
Contrariando minhas expectativas, voltar para o minha antiga casa estava sendo mais difícil do que o esperado. Não por conta da minha família, é claro, afinal, eles faziam exatamente de tudo para me deixar confortável e mostrar até nos pequenos detalhes o quanto eu e Mabel éramos amadas e importantes. E também não que eu não me sentisse assim com as mulheres do instituto, mas era diferente. Na verdade, meu tempo no instituto foi até mais confortável, pois, de certa forma, cada uma cuidava de sua vida. Eu, porém, voltei para as asas de meu pai e isso gerava certo desconforto e até atritos entre nós dois de vez em quando. Enfim, minhas lutas para acostumar e aceitar o amor sem medidas oferecido por todos ao meu redor, eram diárias. Mas, aos poucos, com a graça de Deus, tudo entraria nos eixos.
— Filhotinha, está precisando de ajuda? — ouvi a voz gentil de meu pai soar do outro lado da porta de meu quarto.
Ainda sonolenta e enquanto tentava ninar e acalmar a bebê em seus acessos de sono e raiva, eu fui até a entrada do cômodo e me senti culpada quando dei de cara com papai e contemplei seu rosto amassado e as olheiras profundas de quem não dormia há séculos.
— Desculpe, papai, eu não quis te acordar outra vez.
Ele ergueu suas sobrancelhas e eu rapidamente captei o sentido naquele gesto. Seu Flávio já havia pedido mais de uma vez que eu parasse de pedir desculpas pelas coisas que não aconteciam realmente por minha causa, mas eu sempre falhava ao querer justificar tudo .
— Quem não gosta de acordar todos os dias antes do sol nascer com o canto dessa mocinha? — Papai aproveitou a proximidade e depositou alguns beijinhos na cabeça da neta agitada. — Não se preocupe, querida.
— Queria que fosse fácil não me preocupar — murmurei com um pouco de ironia. — Mas dou graças a Deus por tudo e sei que é questão de tempo até ela se familiarizar e eu poder ter uma noite de sono ininterrupta.
— Oh, meu amor. — Ele acariciou meus cabelos bagunçados. — Já sei. Deixe sua ovelhinha comigo e vá dormir um pouco.
Sorri emocionada pelo cuidado dele comigo.
— Está tudo bem, papai. Eu já ia mesmo levantar para preparar o café. Mas não dispenso se o senhor quiser olhá-la enquanto isso. Assim adianto tudo antes de ir ao instituto — contei e aproveitei a chance de entregar a bebê ao meu pai. No processo reparei no modo como sorriso de seu rosto diminuiu um pouco. — Dona Socorro quer ver Mabel e nós também combinamos de estudar a bíblia juntas. Não é legal?
— Sim, querida, é claro, mas...
— O senhor ouviu isso? — desconversei fazendo alguns instantes de silêncio. — Meu estômago está roncando. Eu estou faminta e não devo ser a única. Vou colocar a água para ferver e pedir ao Davi para buscar pão. Já venho.
Ele me olhou um pouco sério e tocou meu ombro quando tentei sair.
— Sarah, não adianta se fazer de desentendida — ele começou e eu deixei cair meus ombros, prevendo quais seriam as próximas falas dele. — Eu apoio sua amizade com as moças do instituto, em especial dona Socorro que te ensina tanto, mas já falei, não acho seguro você cruzar a cidade de ônibus com a bebê para ir visitá-las.
Encarei-o desanimada e pedi a Deus que não me deixasse ser tola naquele instante.
— Mas, papai, nunca nos aconteceu nada e eu sempre andei de ônibus com Mabel para todos os cantos. O senhor não percebe que está exagerando? — questionei calmamente. — Fique tranquilo
— Posso estar exagerando, mas você não acompanha os noticiários? — contrapôs com certa urgência. — O Instituto fica em uma área rural que você atravessa sozinha até alcança-lo. Qualquer pessoa mal intencionada pode abordá-las naquela estrada de terra e machuca-las sem ser notada. Como posso ficar tranquilo assim?
— Papai, eu sei me cuidar e...
Minha voz se perdeu ao flagrar a real preocupação contida nos olhos dele. A última vez que estive no Instituto, acabei extrapolando o horário de voltar para casa e ainda me esqueci de atender as ligações dele. Isso só não gerou um conflito gigantesco, pois fui exortada por dona Socorro a me submeter a autoridade conferida por Deus ao meu pai para zelar por minha vida. Então, quando cheguei, não hesitei em pedir perdão, me comprometendo a não agir daquela mesma forma novamente.
Respirei fundo e não consegui pensar em um argumento válido para confortá-lo. Sendo assim, só me restou uma opção.
— O que o senhor sugere que eu faça? — sondei, lutando comigo mesma para ter um coração disposto a me sujeitar a qualquer decisão que ele tomasse.
O sorriso discreto voltou aos lábios dele.
— Vou resolver alguns assuntos na igreja e você pode esperar meu retorno lá pelas quatro ou então eu peço a Davi ou Victor para levarem vocês no horário de almoço — sugeriu e apesar de atrasar um pouco meus planos seria bom reencontrar Vic. — E eu posso buscá-las na volta. Certo?
— Tudo bem, pai — concordei, coçando a cabeça. — Assim eu posso aproveitar as horas vagas na manhã e ir comprar um presente para uma amiga e... — Fiz uma pausa. — Quer dizer, eu posso ir?
Notei os olhos dele ganhando um brilho diferente e fiquei ansiosa quando ele, propositalmente, fez um certo suspense.
— Claro, querida. — Ele riu um pouquinho. — Mas só depois de preparar um cafézinho para nós.
Após papai estabelecer suas condições, eu pedi licença e fui cuidar dos assuntos domésticos.
Enquanto preparava a refeição e arrumava a cozinha, eu orava e agradecia ao Senhor por mudar algumas de minhas atitudes contrárias à bíblia. Mesmo através da dor, Deus, com sua graça sem fim, estava me aperfeiçoando dia após dia, transformando e tirando de mim aquilo que o desagradava.
Ao finalizar tudo chamei papai e Davi. Fiquei feliz quando o primeiro anunciou que obteve êxito em fazer Mabel dormir um pouquinho. Nós oramos e compartilhamos a refeição matinal juntos. Meu irmão nem ficou por muito tempo na mesa conosco e logo precisou sair para trabalhar, deixando-me apenas com Seu Flávio que ficou ali conversando comigo sobre o tema de seu próximo sermão no domingo. Ele costumava me falar muito da igreja e dos membros com quem eu cresci e convivi por muito tempo antes de partir. Seu objetivo, claramente, era despertar saudades em meu coração e assim me convencer a retornar aos cultos com ele. Eu, no entanto, preferia aguardar um pouco antes de encarar a congregação e por isso na primeira chance, cortei o assunto, pedindo permissão a ele para sair conforme havíamos combinado. Além de me dar seu aval, posteriormente, o homem preocupado fez questão de deixar a mim e a Mabel no centro comercial da cidade, mesmo sendo obrigado a esperar até que eu me aprontasse e realizasse os cuidados necessários com a bebê.
Levei o dobro do esperado para decidir qual presente compraria e me aproveitei do fato de papai ter sido generoso, permitindo que eu também escolhesse algo para mim e sua netinha em nome dele. Quando finalmente acabei, fui surpreendida pelo horário, notando que segundo as mensagens recebidas em meu celular, Victor logo passaria em casa para me buscar. Apressada, eu praticamente corri em retornar e chegando, dei um jeito de adiantar o almoço.
Não muito depois de eu, surpreendente, ter dado conta de cuidar de todas as minhas tarefas propostas, ouvi o soar da campanhia e o latido dos cachorros anunciando a chegada de Vic. Sabendo da pressa que ele tinha em voltar do trabalho, eu sequer esperei por Davi que costumava vir para comer comigo, peguei minhas coisas e fui com a bebê ao encontro de nossa carona.
— Então você cruzou mesmo a cidade para vir nos buscar — foram minhas primeiras palavras ao sair pelo portão e dar de cara com o belo médico encostado no capô de seu carro. Assim que nos viu, ele veio logo tirar a bebê dos meus braços para apertá-la.
— Pois é, um passarinho me contou que você aceitou sem reclamar a oferta dele de te arrumar uma carona — ele contou alegre entre os beijos estalados nas bochechas de sua pequena e minha reação foi de pura vergonha. — Você está me enchendo de orgulho.
Revirei os olhos e mordi meu lábio.
— Não exagera, doutor. — Olhei para os lados. — E então? Pronto para ir? Dona Sô já me avisou para não demorar, pois Coelho vai participar do nosso estudo também. Isso me deixou tão feliz! Sinto saudades dos meus treinos com aquele palhaço.
Vic fez uma careta, me fazendo rir.
— Está vendo como é sua mãe, filha? Nem mesmo pergunta se o seu pai, um homem trabalhador, está bem, mas fica toda animadinha pra ver aquele guardinha — ele brincou e eu abri a boca, incoformada com a ceninha de ciúmes dele. — Sou desvalorizado na nossa família.
"Nossa família" aquelas palavras fizeram meu coração acelerar.
— Não fale assim, Sr. Dramático. É claro que eu te valorizo. Mas você vem quase todos os dias nos ver, não me dá tempo para sentir saudades — Suspirei e toquei o braço dele. — E é bom mesmo continuar assim. Você é um grande exemplo pra nossa filha e não só ela como eu, te queremos por perto sempre.
Victor me olhou com mais intensidade e deu algumas batidas leves em minha mão.
— Assim você me constrange — Ele ironizou mais uma vez. — Ande, deixe-me levar a senhorita até seu destino.
Em seguida nos acomodamos no veículo, partimos e durante o caminho fomos interagindo. Ele me contou sobre sua rotina no hospital, expondo sua felicidade por saber que logo conseguiria concluir a residência pela qual tanto lutava. Eu o incentivei como pude, revelando minha admiração pelo amor dele demonstrado a seus pequenos pacientes. Também aproveitei para confessar minhas dificuldades com a bebê e as mudanças tão bruscas e rendemos o assunto até chegarmos ao nosso objetivo.
— Você tomou a decisão certa em voltar, Sarah — elogiou nos momentos antes de eu descer. — É bom ver como tudo está entrando nos eixos.
— É a graça de Deus — repondi rapidamente e suspirei profundamente. — É incrível como o Senhor muda tudo, não é?
Vic também refletiu por alguns instantes e assentiu.
— As mudanças ainda não acabaram, muitas coisas ainda virão pela frente — ele murmurou mais para si mesmo do que para mim. — Se Deus quiser.
Sem entender muito bem aquelas palavras, eu resolvi interrompê-lo em suas divagações dizendo que precisava ir. Agradeci pela carona e esperei ele se despedir da bebê e ir embora para que eu entrasse no casarão do instituto.
— Olha só quem está de volta — fui recebida logo de cara por Coelho vindo da cozinha comendo uma maçã. Eu o abracei rapidamente.
— Sentiu minha falta, não é? — Acertei o braço dele com um soco fraco.
— Bem, de você, mais ou menos — Ele zombou e resolveu deixar sua fruta de lado para bancar o tio babão com Mabel. — Agora, dessa menininha aqui, eu senti como se alguém tivesse levado minha alegria embora. É! O tio Coelho estava com saudades desse sorriso! Estava sim!
— Traidor. — Fiz um bico fingindo estar magoada. — Vou procurar por alguém que fique feliz por me ver também e...
Mal acabei de terminar a frase quando vi Karen descer as escadas correndo apenas para me abraçar, seguida de Anelise e Fabiana. Elas ficaram bem animadas, querendo saber novidades minhas e também logo trataram de me atualizar a respeito dos últimos acontecimentos no Instituto. Depois, todas as outras moças também vieram me cumprimentar e acabei dando por falta de Luana entre elas.
Continuei tagarelando sem parar, mas a festa não durou muito, já que dona Socorro veio logo me tirar dali a fim de começarmos nosso estudo. Claro que minha presença acabou estimulando as outras moças a participarem dos nossos momentos de crescimento espiritual. Foi muito bom aprender sobre o Senhor e desfrutar da comunhão cristã, mas, confesso que durante toda a exposição feita pela minha sábia senhorinha favorita, eu só consegui pensar onde Luana estava.
— Karen, você viu a Lu? — resolvi perguntar após o fim do estudo.
A moça mal abriu a boca para falar, quando eu vi o vulto de minha amiga passando rápido pela sala onde estávamos, segurando Arthur, indo em direção aos quartos. Sem pensar duas vezes, eu me levantei, peguei o presente que havia comprado para o menininho e fui atrás dela.
— Lu? — chamei após bater na porta de seu quarto.
Fui ignorada nos primeiros momentos, mas após minha irritante insistência, ela acabou abrindo a porta.
Reparei logo no estado triste dela. Olhos inchados, bochechas fundas e um semblante abatido.
— O que foi, Sarah? Eu não tenho tempo para falar agora e...
— Eu sei que falhei com você — cortei-a logo de cara. Seria tolice da minha parte perder a chance de me retratar. — Deixei meu orgulho nos afastar e peço perdão por ter sido uma péssima amiga.
— Não, Sarah...
— Me escute, por favor. Nós acabamos de estudar a carta de Paulo aos colossenses e lá ele diz que devemos nos perdoar mutuamente caso um tenha motivo de queixa contra o outro — Eu engoli em seco. — Então, quero te pedir perdão e mostrar meu arrependimento por qualquer ofensa consciente ou inconscientemente que cometi contra você.
— O problema não é você, Sarah — Lu confessou com pesar e fixou os olhos no chão. — Nós tivemos nossos desentendimentos, mas a culpa foi minha. Eu tenho descontado em todos minhas lutas e... — Ela fez uma pausa e os olhos foram enchendo de lágrimas. — A situação é delicada e só algumas pessoas sabem.
— Se não quiser contar, não tem problema, mas quero que perceba minhas intenções de estar ao seu lado, independentemente da circunstância — declarei convicta. — Confie em mim.
Lu assentiu e depois de um longo suspiro, me convidou para entrar em seu quarto e sentou-se comigo em sua cama, mostrando-se disposta a finalmente se abrir comigo. Isso foi um motivo de grande alegria para mim.
— Há algum tempo fui levar Arthur para uma consulta no posto de saúde — ela começou com a voz embargada. — Por conta das ameaças de Leandro, eu sempre vivi com medo de me afastar muito do Instituto, por isso, como de costume pedi ao Coelho e a dona Socorro para irem comigo. Tudo estava tranquilo, mas eu não esperava que justo naquele dia, eu fosse encontrar meu ex-marido. — Ela olhou para baixo e eu, mesmo assustada, segurei a mão dela, oferecendo suporte. — Quando me viu, aquele traste não pensou duas vezes e veio ao meu encontro para me humilhar.
— Leandro te machucou? — Engoli em seco.
— Coelho não o deixou se aproximar. — Ela riu um pouco. — Mas ainda assim, ele gritou suas ofensas, e... — A pausa foi maior e a voz foi ficando fina. — Diante de todos os pacientes ali, ele anunciou que durante seus casos com as mulheres com quem saia, adquiriu HIV e deixou implícito que eu estava infectada também e...
Ela rompeu em um choro angustiante que me cortou o coração.
— E-eu não fiz o pré-natal quando estava grávida, Sarah... Nunca quis saber de nada e fico pensando... E-eu fiz tantas coisas erradas, amamentei meu filho e se for verdade, eu infectei ele também!
Acariciei as costas dela e suspirei.
— Como você tem tanta certeza que Leandro não inventou? — interroguei.
— No momento do surto, ele jogou o papel do exame e foi embora. Movida pelo pânico, eu peguei o envelope, levei para Victor e ele confirmou o diagnóstico — explicou e abraçou Arthur com mais força. — Ele ficou comovido e quis me ajudar. Pediu que eu fizesse o teste rápido, mas eu não quis...
Uni as sobrancelhas e a encarei.
— Por que? Prefere ser consumida pela dúvida à matar suas suspeitas de uma vez?
Ela pensou um pouco e engoliu em seco.
— E-eu confesso que estou apavorada — ela disse com a voz tomada por emoções. — E-e se for verdade? Eu posso ser uma bomba prestes a explodir, Sarah!
Cocei minha cabeça e refleti um pouco sobre toda aquela situação. Luana estava enfrentando uma grande luta e precisava de apoio para tomar a decisão certa.
— Lu, você precisa descansar no Senhor. Pode ser verdade ou não. Você nunca vai saber se não for atrás dos exames. Além do mais, caso seja positivo, você e Arthur precisarão de tratamento e adiar apenas colocará a saúde dos dois em risco. É isso que quer?
Meu argumento foi válido o suficiente para colocar a moça para refletir. Ela demorou, mas acabou balançando a cabeça negativamente.
— É tão difícil...
Eu a abracei lateralmente.
— Eu sei que não é fácil, mas derrame suas fraquezas no Senhor e descanse na Soberania dele. — Toquei o rosto úmido dela. — Por favor, faça o teste.
Ela me encarou e por fim assentiu.
— Tudo bem, eu farei.
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