Três: Amizade
Gabriela foi rápida ao descer as escadas de sua casa e chegar no portão de ferro onde eu a aguardava. Ela mal conseguiu girar as chaves na fechadura, pois suas mãos estavam tremendo, possivelmente de nervoso ou choque por me ver ali. Quando finalmente conseguiu, a garota morena se aproximou devagar, parou diante de mim e, enquanto seus olhos aflitos me analisavam eu notava as lágrimas já escorrendo pelas bochechas avermelhadas da garota.
— Minha amiga, você está aqui! — ela constatou talvez tentando convencer a si mesma e em seguida me abraçou com cuidado para não incomodar a bebê. — Oh, Sarah...
Não aguentei tanta emoção e cedi ao choro também. Estar diante de alguém extremamente especial e importante a quem não se via há muito tempo era de fazer o mais duros dos corações se derreter.
Ficamos algum tempo abraçadas até Gabi se afastar um pouco. Ela olhou para mim, deu um de seus sorrisos radiantes e secou as lágrimas abaixo dos óculos.
— Não pensei que nos veríamos novamente algum dia.
— É impossível deixar Santa Fé para sempre — comentei, sorrindo um pouco. — Posso tentar fugir, mas minha vida está aqui.
Gabi tocou meus cabelos e seus olhos finalmente caíram em Mabel acolhida segura em meus braços.
— Essa é sua filha?
Balancei a cabeça positivamente e a deixei contemplar Maria mais de perto. Quando fui embora Gabi foi a única para quem eu telefonei e contei sobre minha gravidez. Ela até ameaçou ir atrás de mim, mas quando dei a grande notícia já estava longe de Santa Fé.
— Maria Isabel é o nome dela.
Gabi lançou um sorriso cúmplice em minha direção e tanto para mim quanto para ela foi inevitável ter a mente inundada por infindas lembranças de nossas brincadeiras de faz-de-conta onde eu sempre escolhia ser a mamãezinha e batizava todas as bonecas da mesma maneira.
— Você é previsível, Sarah. — Ela riu.
— Era o nome da minha mãe. Eu queria honrar a memória dela se alguma forma — expliquei enquanto admirava minha filha.
Gabi ainda se mostrou um pouco chocada e enquanto ainda processava as recentes informações, algo atrás de mim chamou sua atenção.
— Suas amigas estão te chamando.
Virei na mesma direção e contemplei dona Socorro erguendo suas mãos e acenando em minha direção. Rapidamente me aproximei da van com Gabi ao meu lado e a apresentei as moças. Dona Socorro foi simpatia pura ao explicar como nos conhecemos e minha melhor amiga demonstrou carinho e gratidão pelo gesto dela em cuidar de mim.
— Sarah e Mabel estarão em boas mãos? — a senhora quis confirmar quando ela e as garotas já estavam prestes a ir embora.
— Sim, pode ter certeza — garantiu Gabriela sorrindo para mim.
— Então, agora podemos ir, dona Sô? Amanda está preocupada com a nossa demora — perguntou Anelise e ganhou uma resposta afirmativa.
Finalmente pude me despedir das três sentindo um estranho pesar no coração. De alguma forma eu tinha esperanças de que aquele não seria nosso último encontro.
Ficamos observando a van indo embora e só saímos da rua quando Gabi sugeriu:
— Vamos entrar, temos muito para conversar
Já estávamos subindo as escadas da casa quando lembrei de um detalhe importantíssimo.
— Seus pais estão aí?
Minha amiga sabia bem qual era a raiz daquela pergunta e deixou isso claro ao me encarar de um jeito triste. Os pais de Gabi eram muito próximos da minha família e se soubessem do meu paradeiro não pensariam duas vezes em entrar em contato com papai e eu não queria vê-lo de jeito algum, não depois do que eu fiz.
— Para sua sorte, eles viajaram para um acampamento de carnaval com a igreja e só voltam amanhã a noite — ela informou enchendo meu coração de alívio.
— Por que não foi com eles? Se bem me lembro, você amava esses eventos da igreja — perguntei curiosa.
— Estou trabalhando em período integral agora e minha chefe é uma chata, jamais me deixaria aproveitar um feriado tão grande — explicou em um tom engraçado.
Um pouco irônica, eu comentei: — Quem diria? Você agora está trabalhando e eu sou mãe solteira. A vida adulta nos cativou mais rápido do que previmos.
Gabi me lançou um olhar compadecido e já estávamos entrando na sala de estar quando, sem medo de ser indiscreta, ela perguntou:
— Onde você se meteu durante todo esse tempo, Sarah?
Suspirei e mesmo não gostando de falar sobre o passado, tinha plena consciência de que Gabriela merecia uma explicação quanto as minhas atitudes.
— Posso te contar tudo se me permitir acomodar Mabel em algum lugar.
A garota concordou no mesmo instante e me conduziu com ela pelos cômodos da residência até seu quarto.
Foi incrível o sentimento de nostalgia a tomar posse de mim quando entrei naquele cantinho tão familiar. Lembrei das brincadeiras, risadas e até mesmo os momentos de lágrimas compartilhadas com minha melhor amiga naquele mesmo lugar. Por certo, era bom estar de volta.
Gabi ficou com os olhos fixos em mim enquanto eu amamentava e cuidava de acalentar a menininha cansada da pesada rotina dos últimos dias.
— Eu ainda estou tentando entender a situação, mas confesso, é difícil ter te conhecido como uma menina bagunceira e agora te ver como uma mãe dedicada — minha amiga sussurrou quando a bebê já estava quase dormindo.
— Só deixei essa Sarah infantil depois de perceber que a verdadeira bagunça estava dentro do meu coração — confessei baixinho. — O Senhor usou o nascimento da minha filha para mostrar como eu passei uma vida inteira sem conhecê-lo verdadeiramente. Eu não tinha ninguém, precisei dele e ele estendeu sua mão.
Gabi me olhou com espanto e nada conseguiu dizer. Ela bem sabia como no passado minha relação com Cristo e a igreja eram meramente superficiais. No coração eu nutria uma falsa fé, cultivada apenas para agradar e encher meu pai de orgulho.
— Sua filha é linda — elogiou procurando quebrar o gelo.
Eu apenas sorri para ela e esperei em silêncio Mabel ser arrebatada em um sono profundo. Quando aconteceu, eu a deixei segura na cama e me declarei pronta para sair do quarto com Gabi.
Nós duas voltamos para sala, sentamos no sofá e eu fui direto ao ponto: — Pode perguntar tudo.
A amiga uniu os lábios e em meio a um suspirou, questionou: — Como você pôde ir embora daquela maneira, Sarah? Você abandonou seu pai e irmãos a quem tanto te amam e deixou apenas uma carta? Eles ficaram arrasados. Eu fiquei desolada.
Engoli em seco e senti o arrependimento bater com força em meu coração. — Eu fiz uma coisa horrível, talvez imperdoável.
— Nós podíamos ter te ajudado, Sarah — contestou. — Você não deveria ter ido embora.
Neguei com a cabeça, pois eu sabia da gravidade dos meus atos vergonhosos. Precisei de algum tempo em silêncio pedindo ao Senhor por coragem, só assim eu poderia revelar minhas motivações para abandonar a todos sem mais nem menos. — A mãe do Victor me ofereceu, em nome dele, uma quantia de dinheiro para que eu abortasse minha filha — comecei, sem coragem de olhar para Gabi. — E eu aceitei.
Minha amiga afastou-se um pouco, e eu vi quando ela lançou um olhar na direção do quarto buscando encaixar uma peça do quebra-cabeça faltando na história. — Mas...
— Eu desisti — esclareci acabando com qualquer chance de confuão na mente dela. — Mas, meu coração estava consumido pelo ódio de toda aquela família, por isso peguei o dinheiro e fugi.
— Sarah, você foi louca — constatou boquiaberta. — Eles não te procuraram? Não pediram o dinheiro de volta quando souberam que você não matou sua bebê?
Sentindo um gosto amargo na boca, eu revelei: — Eu não sei. Mas, fui guiada pelo desespero e medo.
— Você chegou a contar para o Victor sobre todo esse ocorrido? — questionou curiosa.
— Descobri a gravidez no dia do aniversário dele. Não me esqueço por nada, pois idiota como sou, fui atrás dele buscando dar a notícia e pedir por apoio, é claro. — Fiz uma pausa. — Eles estavam dando uma festa e Victor nem ao menos quis me receber. Fui atendida pela Suellen, irmã dele, e contei tudo para ela, pensando nela como uma amiga que ficaria feliz pela notícia, mas foi tudo um desastre. Nem mesmo um cachorro sarnento de rua seria tão destratado como eu fui naquele dia. E para piorar, depois disso a querida dona Raquel Ferraz me procurou na igreja para fazer aquela proposta imoral.
— E você aceitou pensando em abortar sua própria filha? — ela foi direta como uma faca no coração.
Eu umedeci meus lábios e com um nó gigantesco na garganta afirmei. — No dia da consulta com o médico responsável pelo procedimento, eu tive um sonho que me fez desistir de tudo e, com medo das consequências, comprei uma passagem para Santa Cruz e fui embora.
Ao término do relato, Gabriela se calou. Realmente, não havia palavras suficientes para descrever a pessoa horrível que eu era antes de Cristo, e mesmo sabendo das minhas mudanças consideráveis foi impossível relembrar de tudo aquilo e não cair num choro copioso. — Meu pecado quase matou meu bem mais precioso...
Minha amiga em um ato de compaixão tocou meu rosto e em seguida me abraçou com força. Choramos juntas por algum tempo até a garota manifestar todo o seu apoio trazendo uma mensagem do próprio Senhor para minha vida: — Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. — Não consegui responder, apenas chorar. — Tudo vai ficar bem, Sarah. Vou te ajudar, eu prometo.
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