Dezenove: Ciúmes
— E no sétimo dia Deus descansou, ou seja, Ele se alegrou com a sua obra criada — finalizei a história e fechei o livretinho colorido quando já não podia mais manter a atenção de Mabel e Arthur em mim. O filho de Luana estava muito mais interessado em seus brinquedos e a minha pequena, sem dúvidas, preferia saborear e rasgar as páginas do livro ao seu conteúdo. — Gostaram da história? — fui ignorada pelos dois bebês distraídos em seus próprios mundinhos lúdicos. — Pois é, vocês são um público difícil de agradar, mas sou uma mamãe previnida, eu já esperava por isso, então trouxe um suborno — Fiz suspense e tirei da bolsa de Mabel uma vasilha repleta de deliciosas frutas tropicais cortadas, e fui bem sucedida em recuperar a curiosidade dos pequenos. — Muito bem, crianças.
Enquanto Mabel e Arthur devoravam parte do piquenique, eu aproveitei o tempo para contemplar toda aquela beleza natural ao meu redor. Notei como o sol beijava a copa das árvores e me deliciei com o perfume exalado pelas flores da estação. Além de tudo, havia um lindo lago, sobre o qual os passaros traçavam o rasante de seu voo e cuja superfície abrigava elegantes cisnes, patinhos e tartarugas. Tanto esplendor fez meu coração se encher de gratidão pelo fato de pertencer a um Deus tão criativo e caprichoso em suas obras.
— Pronto. Eu trouxe água para todos nós. — Luana entregou para mim uma das duas garrafinhas as quais segurava em suas mãos. — Graças a Deus achamos essa árvore, hoje está muito quente.
— Realmente. — Abanei meu rosto e aproveitei a deixa para saciar minha sede. — Mesmo assim a ideia de vir a esse parque foi brilhante. Eu já estava cansada de ficar sem fazer nada no Instituto. — Relaxei as costas no tronco logo atrás de mim.
— Deve ser bem entediante quando Coelho não vem te ver, não é, espertinha? — ela questionou e ergueu suas sobrancelhas de modo sugestivo.
— Provavelmente aquele bobalhão deve vir no fim dessa tarde — expliquei sem muito interesse e segurei Mabel quando ela pediu por meu colo. — Mas apenas para deixar claro, Josué não vem apenas para me ver.
— Ora, e qual seria o problema se você fosse a razão das visitas dele? — A expectativa contida nos olhos de minha amiga, não passou despercebida por mim nem mesmo depois dela me dar as costas a fim de jogar uma bola para Arthur chutar do jeitinho desengonçado dele. — Você e o Coelho são perfeitos um para o outro.
— Lu, não comece — pedi, buscando finalizar aquela conversa o mais rápido possível.
Ela olhou-me de soslaio.
— Analise bem, os dois são jovens, Josué é um homem bom, empregado e responsável e você também já é uma mulher madura. — Virou o corpo completamente em minha direção e fez um gesto com a mão, esperando de mim alguma reação frente aos seus argumentos tão bem colocados. — Seria perfeitamente aceitável se vocês casassem e ele assumisse a paternidade da bebê.
Mordi o lábio com força, inspirei o ar profundamente e o soltei bem lentamente, usando todos os recursos disponíveis para não perder a calma.
— Essa é sua ideia brilhante, Luana? — escarneci. — E quanto ao Victor, pai da minha filha? Já pensou como seria desagradável entregar um convite de casamento a ele e dizer: "Sim, vou me casar com o seu melhor amigo, e tem mais não o quero como pai da Mabel. Suma daqui!" — ironizei e o seu bico de criança mal criada só evidenciou o rumo nada agradável daquela conversa.
— Como você pode ser assim, hein? — Ela bateu com a palma na testa. — Depois de tudo que o doutor Victor te fez, você ainda sente pena dele? Se um homem te abandonou uma vez e voltou, ele o fará novamente, confie em mim. — Apontou com o indicador em direção ao próprio peito. — Veja o meu exemplo, Sarah — aumentou o tom de voz. Ela queria me fazer ouvi-la a qualquer custo. — Perdi a conta de quantas vezes perdoei o Leandro e ele sempre me traía na primeira chance. Sua história não será diferente, se continuar dando espaço para o seu estimado médico ser mais do que o pai da Maria.
Sacudi a cabeça, sem conseguir acreditar em meus próprios ouvidos.
— Esse é o motivo de toda a sua raiva para comigo nos últimos dias, Luana? — perguntei baixo, ainda chocada com o ressentimento dela. — Porque eu estou confiando em meu antigo amor ao invés de dar uma chance para um novo?
Ela deu de ombros, voltou suas energias para o filho e quis mostrar uma indiferença que só durou alguns minutos, pois depois de algum tempo, a garota se aproximou e tocou meu ombro.
— Sou sua amiga e não quero vê-la sofrendo ainda mais — disse e eu reparei nas lágrimas transbordando as órbitas dos olhos dela.
Arfei, deixando claro o meu cansaço com aquele assunto.
— Tudo bem, Lu. Você pode até estar certa, mas eu sei muito bem quem era o Victor de dois anos atrás. Ele é uma pessoa completamente diferente agora — justiquei meus atos. — Ainda não confio nele cem por cento, mas conheço bem o poder de Cristo para mudar a vida de uma pessoa.
Com o dorso da mão, ela enxugou uma lágrima sorrateira e concluí que talvez toda aquela implicância estava mais relacionada com a própria Luana do que comigo.
— Existem lobos vestidos em pele de cordeiro misturados ao povo de Deus. Eu não me deixaria enganar — advertiu, sem fazer questão de evidenciar sua intolerância com o doutor.
Assenti com a cabeça e só acabei concordando porque, sinceramente, eu não queria mais discutir.
— Quer saber? Mabel já aproveitou bastante desse passeio ao parquinho e está na hora de voltarmos para casa. — Levantei-me do gramado e comecei a organizar os itens de Mabel novamente na bolsa.
Esperei até Luana estar pronta para retornar comigo ao instituto, mas quando ela guardou todos os pertences de Arthur, não pensou duas vezes antes de sair andando empurrando o carrinho o mais rápido possível a fim de colocar uma distância considerável entre nós.
Fiquei de coração apertado com aquela situação, mas não podia fazer nada para mudar os preconceitos de Luana. Não era fácil pra mim precisar lidar com meus próprios dilemas acerca de Victor, imagine convencer outras pessoas quanto a veracidade de sua mudança de caráter.
Acabei respeitando o espaço e o momento de ira da moça e aproveitei o silêncio durante o caminho para ninar a bebê exausta de suas atividades hiper-energéticas.
O parque não ficava tão longe, por isso não demoramos muito tempo até estarmos de volta ao casarão. Ao chegarmos, com o tempo livre, eu fui direto para o meu quarto acomodar Mabel, mergulhada em seu sono profundo, ao meu lado na cama. Demorei mais tempo no cômodo, me beneficiando da tranquilidade para meditar na palavra do Senhor e me alimentar espiritualmente. Ao findar o devocional, orei e sem prever meu próprio cansaço acabei pegando no sono, agarrada a minha filha e acordei somente no finzinho da tarde, início da noite.
— Eu sei, mãe, mas eu não posso mais adiar a conversa com as meninas. O bazar beneficente é daqui duas semanas. Chame a Sarah, por favor — a voz de Amanda foi a responsável por me despertar.
Sentei na cama devagar para não acordar Mabel. Desnorteada, eu massageei meu pescoço dolorido devido ao fato ao pouco espaço na cama.
— Já estou indo — murmurei sonolenta enquanto ainda ouvia o burburinho das duas mulheres a uma parede de distância de mim.
— Viu só? Sarah leu nossos pensamentos — dona Socorro brincou. — Estamos na sala de TV, querida.
Balbuciei um "ok" e mesmo zonza, perdi algum tempo admirando como minha ovelhinha ficava linda dormindo tão tranquilamente. Com dó, preferi não acordá-la mesmo sabendo do risco dela perder o sono durante a noite e querer me alugar. Tomei-a em meu colo com cuidado e logo após saí do quarto, fechei a porta cautelosamente desci as escadas.
Eu estava seguindo para o lugar da reunião marcada por Amanda quando passei pela antessala e reconheci duas vozes muito familiares soando da varanda. Quando me aproximei da entrada principal do casarão, acabei ouvindo um pedaço de uma conversa tensa entre Josué e Victor. Dei mais um passo a frente, apoiei uma das mãos nas vigas da porta e estiquei meus pés na tentativa de espiar sem ser notada.
Contemplei Josué de pé, com a postura rígida como uma pedra, expressão séria e as mãos paradas em sua cintura. Ele estava diante de Victor que também se mostrava tenso com seus braços cruzados no peitoral e uma das mãos apoiadas no queixo.
— Não, eu te dou minha palavra, irmão. Por que eu faria uma coisa dessas? — Coelho dizia, enquanto balançava a cabeça negando, com indignação, algo dito anteriormente pelo médico a sua frente.
Victor soltou uma risada forçada, se adiantou até o amigo e apontou o indicador para o peito dele. Nenhum dos dois parecia feliz com a conversa.
— Eu não sei, por isso estou te perguntando. Preciso compreender bem a situação e saber se estou lidando com um amigo ou um traidor — completou a sentença entredentes, cerrando o punho.
As palavras de Victor me intrigaram muito e eu só não cedi a curiosidade de ir perguntar o que estava acontecendo entre os dois naquele instante, porque queria ouvir um pouco mais.
— O soco do irmão da Sarah deve ter afetado sua inteligência, só pode — Josué manteve-se firme em sua posição, e apesar de irritado, logo seus ombros relaxaram e seu semblante se entristeceu. — Mas se não quer acreditar em mim, fique aí com sua paranóia — ele estava prestes a sair de cena, e para não pagar de xereta, eu resolvi me aproximar deles. Logo que coloquei meus pés na varanda, fui recebida com olhares aflitos da parte dos dois. — Oi Sarah. Está aí faz tempo? — Josué forçou um sorriso ao me ver e estranhamente recuou.
— Não, cheguei agora pouco — respondi, revezando olhares confusos entre os homens parados e tensos a minha frente. — Por que vocês estão com essas caras?
Josué franziu a testa, colocou as mãos no bolso da calça jeans e encarou o amigo.
— Vamos, conte a ela, doutor Victor — desafiou com um pouco de escárnio na voz.
Victor fuzilou o amigo com os olhos e aquilo me surpreendeu sobremaneira. Ele então tomou ar, e pareceu procurar na mente alguma resposta convincente.
— Apenas problemas corriqueiros de homens — ele respondeu, sendo até um pouco frio comigo.
— Vocês não pretendem partir para agressão, não é? — sondei, pois o comportamento estranho deles, aliado aos punhos cerrados e a postura defensiva sugeriam que ambos estavam prestes a entrar num ringue a qualquer instante.
— Não se preocupe, Sarinha. Ninguém aqui vai perder a calma a esse ponto — garantiu Coelho e para atestar sua palavra e amizade, ele transpassou com um de seus braços, os ombros do rapaz ao seu lado, dando-lhe um abraço lateral. — Afinal não queremos dar mau testemunho, principalmente para as crianças. Certo Victor?
— Sim, é claro, amigo — Victor deu ênfase fora do normal a última palavra e desferindo leves batidinhas na mão de Josué, se afastou e veio em minha direção e tocou a cabeça da bebê apoiada em meu ombro. — Por que trouxe Mabel para cá?
— Eu não queria deixá-la sozinha lá em cima — informei, podendo respirar com mais calma ao ver Victor relaxando os musculos e voltando a razão. — Ela deve acordar daqui a pouco.
— Posso ficar com ela agora? — Pude notar a raiva esvaindo dos olhos de Victor, dando lugar a chateação. Mais um pouco atrás observei Coelho, tão miserável quanto e temi ver amizade dos dois acabar.
Elevei uma de minhas mãos ao antebraço do médico enquanto procurava na mente alguma boa solução para ajudar os dois se acertarem.
— É melhor você esperar a bebê acordar sozinha, do contrário, será um escândalo sem fim. Caso desperte antes, venho trazê-la até você. Não será agradável se Amanda for interrompida na reunião por um choro sem fim — decidi e pelo modo como soltou o ar com força pelo nariz, ele não gostou nada, porém acabou concordando. — Use o tempo de espera e acerte suas pendências com o Josué — instruí, me afastando dele a fim de tomar meu caminho original. Já estava perto da antessala novamente quando apontei o dedo em direção a Josué e fiz uma advertência: — Quero ver tudo mais calmo entre vocês dois quando eu voltar.
A reunião já estava acontecendo quando entrei na sala de televisão e Amanda basicamente explicava como seria o tal bazar beneficente da igreja. As moças ficaram animadas em poder reverter o esforço com trabalhos manuais em lucro para elas e também para o próprio instituto. Eu era a única a não ter muitas coisas para expor em decorrência da minha pouca habilidade com atividades manuais, mas me comprometi a ajudar com o necessário quando a líder passou a distribuir as tarefas específicas quanto a organização e limpeza da igreja. Ao término da reunião até eu me senti muito incentivada a dedicar as energias àquele evento tão estimado e me coloquei a disposição para confeccionar artigos para a decoração.
— Amanhã cedo vou viajar com o Victor, mas não vou perder um minuto sequer quando voltar — garanti, me envolvendo no bate-papo com aquelas sentadas próximas a mim.
Dona Socorro arregalou os olhos e deu um baita sorriso. — Ora, então vocês estão mesmo se acertando? Conte-me tudo! — perguntou curiosa e eu dei de ombros, tentando inutilmente fugir do assunto. A senhorinha era mais esperta e acabou usando suas perguntas e suposições infindáveis para me convencer a falar.
Cocei a cabeça intrigada.
— Não é nada demais, dona Sô. Victor e eu estamos nos esforçando pelo bem da nossa filha. É apenas isso — garanti com veemência e não fiquei surpresa com o olhar torto de Luana em minha direção. Ela ainda estava bem descontente comigo.
— Isso é bom, Sarah. Deus os abençoe — desejou Fabi com muita sinceridade e eu sorri para ela.
— Falando em Victor, peço licença para ir checar onde ele se meteu com minha filha— eu avisei, relembrando do momento da reunião quando os berros de Mabel começaram, e em seguida Victor apareceu na sala para pegá-la conforme as minhas instruções.
Saí da sala de televisão e segui o som de gritos e correria vindos da parte externa do casarão. As pistas me levaram aos fundos do Instituto, onde me deparei com uma cena bem inusitada. O cercadinho utilizado costumeiramente na sala de jantar, estava em uma parte mais afastada do gramado. Mabel se encontrava no inteiror do objeto, sentada e distraída com a porção de brinquedos ali disponíveis, enquanto um pouco mais a frente, Victor, Coelho, Estêvão, marido de Amanda e até seu Héber, o porteiro disputavam uma partida de futebol, pra lá de acirrada.
Planejei em minha cabeça um sermão gigantesco para o pai daquela criança deixada ao relento, mas no fundo acabei rindo da situação. Como mãe, eu jamais agiria daquela maneira, dando jeitinho para cuidar da bebê e ao mesmo tempo jogar seu amado futebol.
Decidi sentar ali mesmo no gramado que se tornou o espaço reservado para a torcida, no caso Mabel, e esperei a hora de questionar Victor quanto suas ideias.
Depois da minha indignação ter passado, eu voltei a prestar atenção ao jogo.
Os rapazes pareciam estar se divertindo com seus passes arriscados e gols muito comemorados. Isso me deixou muito contente, pois imaginei que o desentendimento entre Victor e Coelho havia acabado e eles voltariam com a cumplicidade de outrora. No entanto, a paz não durou muito.
O clima começou a ficar tenso quando Coelho tentou roubar a bola de Victor e o empurrou com força, quase o derrubando no chão. O médico, é claro se irou bastante com aquela atitude de Josué e ao se reerguer voltou para prestar contas, empurrando o ombro do amigo com brutalidade. Depois disso a discussão recomeçou e senti as bochechas esquentando, só de pensar na atitude infantil e idiota dos dois.
— Ah Mabel, fique aí, pois a mamãe vai pegar seu papaizinho pela orelha e enfiar juízo na cabeça dele — murmurei, levantei do chão e fui correndo com o coração na mão, até o local onde a confusão acontecia.
— Se está tão convicto disso, pode me acertar agora mesmo, então — incitou Josué, dando leves batidas em seu próprio rosto, mostrando qual local seu oponente deveria acertar. — Vamos, você não está tão certo das suas opiniões?
— Não vou te acertar até ouvir a verdade da sua boca — rosnou Victor e seu rosto rosto parecia vermelho como uma bomba prestes a explodir a qualquer minuto. — Eu confiei em você, Josué! — Ele gritou, se aproximou e segurou na gola da camiseta de Josué com força. — Fale a verdade de uma vez.
Quando Josué colocou uma de suas mãos no pulso do médico, eu senti um tremor passando pelo meu corpo, pois lembrei imediatamente de uma de nossas aulas de defesa pessoal, onde ele mesmo havia me ensinado um golpe como aquele para deixar o oponente incapacitado e com um membro quebrado.
— Pelo amor de Deus, parem com isso! — ordenei aflita e fui corajosa em me meter no meio deles para tentar separá-los. — Chega disso, Victor! — Ele continuava encarando Josué, mesmo contra os meus pedidos. Eu fiquei aflita, com medo daqueles dois brutamontes destruírem um ao outro e precisei apelar ao ponto fraco de um deles. — Que belo exemplo de pai você está dando pra nossa filha, hein! — ironizei com escárnio e fui certeira. Bastou ouvir o "filha" para convencer Victor a largar Josué e voltar o corpo completamente em minha direção. Não pensei duas vezes e aproveitei o fato do encrenqueiro ter baixado a guarda e segurei firme em sua camisa xadrez com objetivo de puxá-lo com todas as minhas forças para o mais longe possível daquela bagunça.
Para minha sorte, Victor acbou facilitando meu trabalho e se colocou ao meu lado quando minhas forças para contê-lo e mantê-lo perto de mim se exauriram.
Caminhamos envoltos por um silêncio desconfortável até o local onde eu estava com Mabel anteriormente. Eu fui rápida em me posicionar na frente do médico e senti pena ao ver seu cabelo bagunçado e as roupas completamente desalinhadas.
Meu plano inicial foi esperá-lo começar a desabafar, mas o oposto aconteceu. Victor cruzou os braços e sequer ousou me encarar. Aquele descaso me encheu de vontade de acertar eu, alguns bons socos nele.
Depois de algum tempo, eu o flagrei, tentando me analisar discretamente.
— Pode começar a se explicar, mocinho — mandei aproveitando muito bem minha deixa.
Ele franziu o cenho e soltou o ar pelo nariz.
— Não há nada pra explicar. Aliás, eu já disse antes, é uma situação para ser resolvida entre eu e o Coelho — respondeu todo nervosinho. — Você não deveria se meter em assunto de homem.
Dei uma risadinha e revirei os olhos. Victor poderia ganhar destaque no Guiness, pois falar tantas asneiras num só dia, era um recorde digno de ser notado.
— Bem, se eu não me metesse nos seus assuntos de homem, certamente você acabaria levando uma surra do Coelho, e tem mais, seria com razão, porque você tem agido o dia todo como uma criancinha!
Victor mordeu o lábio inferior com bastante força e voltou a ficar tenso novamente.
— Eu é quem daria uma surra naquele cara metido a lutador de beco — defendeu sua honra, e eu me segurei para não rir e irrita-lo ainda mais. Como ele poderia pensar aquilo de seu próprio amigo, sem levar em conta as habilidades e domínio das artes marciais? — Você também só o defende, não é? Não me dá nem um pingo de crédito. É só Coelho para cá, Josué pra lá, estou farto dele.
Crispei os olhos e precisei só de alguns segundos para assimilar uma coisa com a outra.
— Olha, você pode pensar o contrário, mas eu sou bastante esperta, Victor e te conheço muito bem. Sei quais situações despertam sua ira e te induzem a bancar o macho alfa, como fez com seu melhor amigo. — Apontei o dedo indicador em direção àquele bico enfeitando o belo rosto dele. — Aproveite meu bom-humor e confesse qual o problema.
Victor não cedeu aos meus pedidos logo de cara. Ele me deixou de lado por alguns instantes, foi até o cercadinho e como se nada de grave estivesse acontecendo brincou com Mabel. Cansada daquela cena, eu me adiantei até ele e insisti irritantemente no meu propósito de fazê-lo abrir seu coração e mostrar o que o incomodava tanto. Quando estava prestes a entregar os pontos e voltar com Mabel para o casarão, ele resolveu ser sincero comigo.
— Recebi uma bronca hoje por não estar totalmente concentrado na minha residência. Faltam apenas dois meses para acabar e se eu não passar nas avaliações do doutor Murilo, vou precisar começar tudo de novo — ele contou aflito. — Por conta disso eu vou precisar me dedicar mais as minhas atividades no hospital e passar menos tempo com a Mabel.
Sendo manteiga derretida, eu não consegui evitar alguns sentimentos de compaixão. Mesmo assim era inaceitável vê-lo descontar suas frustações em quem nada tinha a ver com os problemas da nossa família complicada.
— Isso não é desculpa para querer bater no Josué — rebati, mas acariciei seu braço, tentando não despertar a fúria do macho alfa novamente. — Aliás, se isso te preocupa, pode ficar tranquilo e faça seu trabalho da melhor forma, pois eu estarei aqui cuidando da nossa filha.
— Sarah, eu sou um homem e lido todos os dias com a vida de muitas crianças, mas tenho uma responsabilidade ainda maior agora como pai da Maria Isabel. — Olhou-me firmemente, tentando me fazer entender seu ponto. — Isso pesa em meus ombros, sobretudo por saber como minha filha e a mãe dela estão morando em um lugar qualquer com desconhecidos porque não têm uma casa, enquanto eu posso reclinar a cabeça todas as noites em uma cama cara, no conforto da minha casa chique — Ele arfou exausto. — Qual imagem Maria Isabel terá de mim quando crescer? Um pai omisso e fraco? Certamente ela vai preferir o Josué a mim, assim como você.
Minha boca se abriu, mas as palavras simplesmente não saíram. Eu pensava que estaria pronta para ouvi-lo, mas o tremor de meus joelhos testemunhavam contra isso.
— Victor...
Ele coçou a barba e gesticulou com a mão, como se quisesse lançar tudo dito anteriormente no mar do esquecimento.
— Ignore minhas palavras, Sarah. Esse último plantão foi longo e me deixou exausto, por isso estou falando essas besteiras e criando confusões — resmungou e se afastou brevemente. — Ando precisando de umas férias.
— Pois é, então minhas suspeitas estão certas — murmurei intrigada e observei a dúvida na expressão do rapaz. — O ciúmes sempre ficou estampado em seu rosto.
Victor se indignou e voltou a andar de um lado pra o outro como uma barata tonta.
— Que coisa! Não é nada disso, Sarah — ele negou e fez o meu coração disparar quando voltou de supetão, tomando o espaço entre nós ao segurar com força em meus ombros. — Só fico pensando como seria péssimo se Mabel enxergasse outro homem como pai. Alguém com mais disponibilidade para passar a tarde com ela e a mãe dela, ao invés do médico sempre ocupado.
— Isso — desenhei uma linha imaginária em volta dele —, é ciúmes, Victor. — esclareci o óbvio. — Você está preocupado com a possibilidade de Josué tomar o seu lugar na vida de Mabel — deduzi e pelo modo como ele se mostrou atormentado bagunçando os cabelos com as mãos, eu realmente acertei o palpite.
Fui pega de surpresa quando ele deslizou suas mãos pelos meus braços e segurou minhas mãos, fazendo todo meu corpo tremer.
— E há chances dele tomar o meu lugar? — ele perguntou sério. — Você gosta do Josué?
Engoli em seco e meu silêncio parecia torturar Victor aos poucos.
— Sim, eu gosto dele, afinal é meu amigo.
As mãos sorrateiras dele voltaram a passear pelo meu corpo e dessa vez tomaram rumo pelos meus braços até chegaram a minha face. Eu quase esqueci como respirar ou pensar em como aquela intimidade não era boa pra nós dois.
— Quais são seus sentimentos pelo Coelho, Sarah? — esclareceu, sendo mais claro. — Eu preciso saber.
Umedeci os lábios e senti vergonha pelo modo intenso com o qual eu era observada e ainda pior por precisar admitir algo tão sério. Mas, eu o fiz. Tomei coragem para me perder naqueles olhos azuis cintilantes e confessar:
— Somos amigos. Apenas bons amigos. E não há chances dele tomar o seu lugar na vida de Mabel. — Toquei e entrelacei meus dedos aos dele. — Ou em meu coração.
Se Victor entendeu a implicação das minhas palavras, eu não sabia, mas eu sorri quando o vi soltar o ar preso em seus pulmões como se tivesse aliviado um enorme peso de seus ombros. Nós ficamos em silêncio apenas trocando olhares intensos e discretas carícias. Eu sentia o mundo tremendo, assim como minhas mãos, e seria muito descuidada se eu permanecesse ali tão perto de alguém a quem eu um dia amei tanto e não sabia se continuava a amar. Tentei dar um passo para trás, mas Victor foi mais rápido e depositou um beijo demorado em minha bochecha.
Ele inspirou profundamente, sem mover um passo e eu também não possuía forças para recuar.
— Oh, Sarah. Eu sinto tanto sua falta!
Minhas pernas amoleceram e eu não conseguia raciocinar direito.
— Victor...
— Não sente saudades de mim? — perguntou e tocou meus cabelos.
— Pare, por favor — implorei.
Como caindo em si, Victor arfou e se afastou com brutalidade.
— Eu vou embora — avisou enquanto eu ainda estava meio perdida nos pensamentos e pegou Mabel no colo para se despedir. — Venho buscar você e ela, amanhã pela manhã.
Meio atônita concordei com ele, porém não poderia deixá-lo partir depois do estrago que havia feito.
— Antes disso, você vai se acertar com o Coelho. Está me ouvindo?
— Você disse acertar o Coelho? Será um prazer — brincou fingindo não ouvir, mas quando o lancei um olhar severo, ele agiu como um menino, e fazendo corpo mole, olhou para trás, avistando o pobre Josué a alguns metros de distância só esperando para falar com o amigo.
— Eu preciso mesmo? — questionou, tomando a cabeça para o lado como um cachorrinho.
— Ande — despachei o homem com as mãos. — "Perdoai, para que vosso Pai celestial vos perdoe as vossas ofensas" — recitei o versículo.
— Usar a bíblia contra mim é covardia — murmurou e em seguida pediu licença para ir cumprir seu dever.
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