Nove

MARIA

Não demoro muito para me arrumar, coloco apenas um vestido amarelo pálido e simples, calço meu salto dourado e resolvo deixar meu cabelo solto mesmo. Pego minha Bíblia e me despeço da minha mãe, que está na cozinha preparando um chá. Passo pelo quarto e dou um beijo na testa do meu pai antes de sair, ainda mantenho o costume de pedir a bênção para os dois e ouvir o "Deus te abençoe" do meu pai traz um sorriso ao meu rosto. Saio de casa com a esperança de que antes de voltar para a faculdade, minha família estará adorando a Deus juntamente comigo em algum culto.

Como tenho o costume de sair cedo, posso andar devagar e matar a saudade de cada cantinho da minha cidade. Estava sentindo falta até mesmo das casas que via sempre ao andar por aqui. Com a Bíblia e o celular na mão, ando devagar e respiro com calma o ar do interior. Morar na capital tem suas vantagens, mas nada se compara com esse ar e todo o verde que tem espalhado pela minha cidadezinha. Sinto uma brisa suave enquanto caminho para a igreja e consigo sentir o Espírito Santo de maneira tão plena que o sorriso parece congelado em meu rosto, a presença de Deus sempre me causa essa felicidade inexplicável e completa. Sou completamente apaixonada pela Trindade.

Sentir essa presença, esse infinito amor, faz com que me lembre de um hino antigo da Harpa Cristã e começo a cantarolar a melodia, até que, sem conseguir me controlar, começo a cantar enquanto caminho.

Então minh'alma canta a Ti, Senhor
Grandioso és Tu! Grandioso és Tu!
Então minh'alma canta a Ti, Senhor
Grandioso és Tu! Grandioso és Tu!

Estou tão absorta na canção e na presença que estou sentindo que nem ao menos percebi que uma pequena plateia me olhava e alguns aplausos indicam que eles gostaram do que ouviram. Tenho certeza de que meu rosto está completamente vermelho.

— Estava com saudade de ouvir sua voz por aí, Maria. — Dona Solange, uma vizinha antiga, diz sentada em uma cadeira no seu portão. — Como vai na faculdade?

— Tudo bem, graças a Deus — respondo e lhe ofereço um sorriso.

— Que bom, Maria. Que bom. Ore por mim na igreja, sim?

— Claro, dona Solange. Mas se quiser pode me acompanhar e orar a senhora mesma por lá, o que acha? — aproveito para fazer o convite e ela dá uma risada alta.

— Ah, meu bem, sinto tantas dores nas pernas que já não sinto mais vontade alguma de ir aos cultos, prefiro orar em casa e cultuá-Lo daqui. — Ela solta um longo suspiro.

— Entendo, dona Solange. Mas a senhora ainda vai ao médico, certo?

— Meu filho me leva vez ou outra, por quê?

— Porque o esforço é quase o mesmo no sentido de ir, a diferença está no que é feito no período de tempo. Adorar a Deus por duas horas não é mais cansativo do que aguardar o atendimento dos homens por horas a fio até, se a senhora quiser de verdade, pode se esforçar e ter bom ânimo, Ele irá te ajudar. Isso serve para a oração que fizer em seu lar também. — A mulher abre a boca para me responder, mas a fecha sem que som nenhum seja proferido, aproveito a deixa para me despedir e prosseguir pelo meu caminho.

Não menosprezo a fé que as pessoas têm ao pedir que alguém ore por ela, não mesmo. Mas não consigo entender como elas não veem o quanto elas mesmas têm o enorme poder de falar com Deus. O véu foi rasgado, nós podemos clamar a Ele, podemos nos lançar em Sua presença, confessar nossas falhas, pedir perdão, declarar nossas necessidades, mesmo que Ele já saiba de tudo. Nós podemos gritar por Ele, podemos agradecer por tudo que temos, por tudo que Ele já nos livrou e pelo que ainda nem recebemos. Somos livres para termos intimidade com o Pai, então por que vivemos em uma geração que prefere ir atrás de alguém famoso de nome para lutar por nós quando Deus já nos mostrou qual armadura usar por nós mesmos? Eu apenas oro constantemente para que muitos abram seus olhos e aproveitem a dádiva que é poder falar diretamente com o Altíssimo.

Continuo pelo caminho, agora mais ansiosa do que nunca para chegar ao templo, estou ávida por dobrar meus joelhos e falar com Deus. Apesar de não precisar dessa formalidade, estou com saudade de todas as vezes em que dobrava meus joelhos antes do culto e pedia que Ele falasse comigo. E Ele sempre falava, não acredito que hoje será diferente.

EDUARDO

Depois de algumas batidas leves na porta branca que tanto já me acolheu, apenas espero que minha vó abra a porta para me receber.

— Já vai! — Ela grita pela terceira vez e parece bastante agitada. Um sorriso maroto preenche meus lábios ao pensar nela se questionando quem bateria na sua porta bem no horário em que ela vai para igreja. Minha vó odeia se atrasar. — Pois não? — Ela diz assim que abre a porta. Ela já está arrumada e claramente irritada por ter sido "incomodada" logo agora, contudo, sua feição muda completamente quando vê que seu "incômodo" sou eu.

— Oi, vovó — dou meu melhor sorriso para ela.

— Dudu! — Ela abre a porta completamente e vem me abraçar. Um abraço aconchegante e com o cheiro inconfundível de erva doce. — Ah, meu menino, que saudade de você!

— Vó, não faz tanto tempo assim.

— Pois pra mim faz uma eternidade! — Ela dá um tapa no meu ombro. — Meu amor, estava de saída para a igreja, você vai me esperar para eu te fazer um jantar maravilhoso, não vai? — Meu estômago involuntariamente responde a essa sugestão, essa relação entre ele e a comida da vovó é antiga, talvez tenha sido daqueles clichês literários de um amor à primeira vista que seja eterno. Utopia literária, quer dizer. Nunca fui desse tipo de pessoa que acredita que esses romances de livros se tornam reais.

— Vou adorar o jantar, é claro, mas vim para acompanhá-la para a igreja, vovó, se não houver problema, claro.

— É sério, meu neto? — confirmo com a cabeça e sorrio para ela. — Deus seja louvado! Deus seja louvado! — Minha vó faz uma espécie de dança e meu sorriso se torna uma gargalhada.

— Vó, acho que seu pastor não gostaria nada que se atrasasse por estar dançando, não acha? — Ela para com um sorriso no rosto e dá um tapa de mosquito no meu braço.

— Venha, entre! Só vou colocar a sapatilha e pegar minha Bíblia, depois podemos ir.

Minha vó entra e vai direto para o seu quarto, encaminho-me para a sala e vou até a estante para pegar uma Bíblia, ela tem várias e sempre pego uma emprestada. Avisto uma feminina, escrito Bíblia da Mulher, uma antiga e que já usei tantas vezes, ela ainda me faz me lembrar do dia em que cultuamos no quarto de hospital da Sofia, pouco antes de ela acordar do coma. Pego-a e vou para a porta esperar pela dona Madalena.

Sou completamente apaixonado pela minha vó, não consigo mesmo acreditar que um ser como Henrique pode ter saído de uma mulher tão bondosa quanto esta.

Vovó volta com seus passos ligeiros e o inconfundível cheiro de erva doce que só ela tem, com uma alegria escancarada, passa sua mão na dobra do meu cotovelo e me leva para fora da sua casa. Nesses momentos, ninguém diz que ela já tem 77 anos, pois suas pernas embalam em passos acelerados que com certeza faria um maratonista sentir inveja, tudo só porque ela sempre diz que se não chegar a tempo da oração inicial do culto, então já perde parte do que Deus separou para ela no dia em questão. Bom, a única coisa que consigo pensar é que não consigo imaginar como seria Deus falando comigo tão abertamente como ela diz que acontece. Como Ben, Sofia e meus amigos cristãos dizem. Até mesmo Smurffet é cristã agora e, sinceramente, ela é o tipo de pessoa que eu não imaginaria mesmo como cristã, mas aconteceu. Apenas acompanho minha vó, creio que Deus existe e que Jesus morreu por nós, mas não consigo entender o que significa tudo isso que falam que acontece, sempre fui cético nesse quesito, nem mesmo acreditava em fantasmas quando criança. Acredito mesmo que Deus é poderoso e criou todo o universo, só não vejo sentido em um Ser tão grandioso se comunicar em pessoas tão pequenas e insignificantes como qualquer um de nós.

🌻🌻🌻

Assim que chegamos à igreja, como sempre acontece, minha vó é abordada por uma multidão de pessoas, inclusive o pastor Pedro, pai da Sofia. Espero pacientemente enquanto ela cumprimenta a todos e fico me controlando para não ceder aos olhares e risadinhas que sempre recebo das garotas que congregam aqui. Desde as adolescentes até as um pouco mais velhas que eu. Não que não queira responder, claro que quero, mas respeito o lugar e sei que minha vó me daria uma bolsada se me visse ao menos piscando para alguém, ela ainda mantém a ilusão de que vou encontrar a garota ideal que vai mudar todos os meus pensamentos sobre o relacionamento em si. Eu até diria que isso é culpa da idade e que ela pode estar ficando senil, mas, desde que me entendo por gente, ela sempre repete o mesmo discurso, parece até que sua voz ficou gravada na minha cabeça: "Dudu, meu amor, você um dia vai se lembrar das minhas palavras e entender o que sempre te falei. Deus é perfeito e tudo criado por Ele não seria diferente. Ele é o amor e foi Ele que nos deu o amor, Ele nos ensina a amar e nos mostra que quando o que for perfeito para nós vier, o que é imperfeito, desaparecerá.". Dona Madalena definitivamente leu muitos romances durante toda sua vida, essas ilusões ficaram alojadas no seu interior.

— Maria! — ouça minha vó dizer ao meu lado. — Você está tão linda, meu amor. Que saudade de você nos cultos. Quando você e Sofia se mudaram, o ministério de louvor perdeu duas joias raras.

Viro-me em tempo de ver as bochechas da Maria ficarem rosadas. Meus olhos percorrem todo seu corpo de maneira inevitável, ela está um espetáculo de mulher.

— Assim a senhora faz minhas bochechas explodiram, dona Madá. — Maria lhe oferece um lindo sorriso e o estende para mim assim que me vê. — Edu! Fico tão feliz em te ver por aqui.

— Vim acompanhar minha vó, fiquei com vontade de vir.

— Deus ainda o vai pegar de jeito, minha filha. — Minha vó pisca para Maria.

— Vó! — protesto. Maria apenas ri.

— Todos temos nossa hora e momento, dona Madá.

— Eu sei, minha filha. E oro todos os dias para chegar o dele. — Vovó vira para mim e sorri. Não respondo nada, apenas me controlo para não revirar os olhos.

— Amém. Agora deixa eu ir que preciso conversar com tia Angélica.

— Tudo bem, depois vai lá à minha casa para um café, adoraria saber sobre sua vida adulta.

— Claro, vou com certeza. E vou orar para que tenha seu famoso bolo de fubá acompanhando esse café. — Maria brinca com minha vó e ela fica extremamente orgulhosa de si.

— Com certeza terá. Vou esperar por você.

— Vamos combinar. Edu, depois combinamos também sobre aquela ajuda de você precisa. — Ela fala comigo e minha vó aguça os ouvidos.

— Sim, por favor — sorrio para minha amiga, tentando ignorar a sobrancelha arqueada da minha vó.

Maria sorri e sai apressada. Acompanho minha vó até o banco, já esperando qual será o primeiro golpe dessa armadilha que dona Madalena já deve estar bolando em sua cabecinha de fios brancos. Os olhos azuis a qual herdei estão centrados e tenho certeza de que está trabalhando no seu plano de ataque nesse exato momento.

— Maria vai ajudar você, é? — Ela pergunta assim que nos acomodamos no banco.

— Sim, vó. No jogo que estou trabalhando. Ela escreve muito melhor que eu e se ofereceu para me ajudar com o roteiro.

— Hum. — Ela diz apenas. Espero por mais, espero pelos sorrisos e talvez uns pulinhos, mas só recebo o silêncio. E talvez isso me assuste ainda mais.

Ainda não sei o que é, mas tenho certeza de que algo está sendo projetado na cabeçada minha vó e, sinto dentro de mim que dessa vez esse "algo" é ainda mais grandioso do que suas tentativas de me fazer ter um relacionamento.

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