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Quando as portas se abrem, observo o grande salão que se apresenta como uma divindade e não apenas mais um ambiente como qualquer outro. As cores douradas do teto são ainda mais reluzentes graças ao grande lustre de diamantes pendurado sob a grande mesa. Esta a qual está disposta com seis lugares, cinco deles ocupados, e apenas um vago aguardando por mim.
Há tanta comida sendo esbanjada que não sei qual sentimento prevalece, o da fome ou da injustiça. Por que enquanto metade do país morre de fome o rei serve sua mesa como se fosse alimentar o país?
O barulho dos meus sapatos sobre o salão são intercalados com as batidas do meu coração e o tilintar dos talheres; a trilha sonora perfeita. Meus olhos seguem retos, olhando para lugar algum, apenas buscando um ponto fixo para se firmar, enquanto controlo minha respiração.
A voz latente e paterna de Omar revigora em minha mente com a ordem "Comporte-se diante do Rei", parecia este ser o pedido mais importante de sua vida, e não apenas o mínimo que eu poderia fazer diante do governante do país. O incidente com a irmã Mary o deixou mais receoso do que o normal. Ao ouvir aquilo, senti-me subestimada. Não havia como punir um rei com os mesmo métodos utilizados para uma freira.
De longe, tramar contra a coroa não era o pensamento mais evidente em minha cabeça agora. Ao contrário, meu sono havia se ido a uma semana quando me escolheram para ser uma dama da corte. Eu, a garota que empurra freiras da escada, que foge para o bosque no meio da tempestade, que tem dois pés esquerdos e nenhum senso de direção. Alguém sentado naquela mesa havia me escolhido para estar aqui e eu adoraria saber o porquê.
O guarda que me acompanhava anuncia-me à mesa e todos se viram. Prendo a respiração mais uma vez e tento fazer uma expressão que não configure vergonha e deslocamento, mas que se assemelhe aos bons e velhos costumes. Afinal, almoçar com a família real realmente é algo que faço com frequência, nos meus sonhos.
O rei Robert, um homem com uma postura imponente, grossas sobrancelhas grisalhas e um olhar cortante, levanta-se e assim todos os convidados da mesa o fazem. Agradeço com um gesto que a pouco havia sido ensinada e me acomodo.
— Vossa Majestade — sibilo, tentando controlar o tremor em meu tom.
— Senhorita Florence, estávamos à sua espera. Sente-se.
O rei fez com que todos a mesa esperassem por mim para comer? Por que?
Observo os pratos vazios e os rostos famintos e tento entender qual a relevância da minha pessoa para o rei. Não encontro nenhuma resposta nos olhares parcialmente irritados. Embora, não estejam se alimentando, todos tem uma taça com um líquido transparente e espumante à mão. Com apenas um movimento com o dedo indicador, o rei faz com que a mesma taça chegue até mim com mais rapidez que levo para respirar.
— Senhorita Florence, é um prazer enfim conhecê-la pessoalmente. Temo que a agenda acirrada de todos os membros da família real tenha a feito questionar nossos modos. Mas espero que as acomodações especiais que separamos para você tenha tido uma influência sobre o seu julgamento.
Eu adoraria lhe dizer que os piores julgamentos que já havia feito acerca da família real sequer ocorreram quando adentrei pelos portões. Porém, como uma boa filha obediente, uma dama da sociedade real eu apenas sorri com cordialidade e neguei com decoro.
— De modo algum, Vossa Majestade.
— Espero muito em breve compensar a nossa ausência — ele diz por todos. — Permita-me apresentar os presentes.
Ao sorrir noto as presas afiadas em seus lábios, um sorriso de lobo. Deve ser assim que ele mantém todos debaixo de suas asas. Na corte, as pessoas são derrubadas com sorrisos. Tento não perceber o elefante no meio da sala quando o rei começa a indicar os seus convidados da noite. A sua direita está o um dos homens mais influentes do país, Luther, o conselheiro real. O seu rosto é frequentemente estampado nas primeiras páginas de jornais, até um cego reconheceria sua pele negra e seus olhos brilhantes.
O conselheiro está a cargo do reino desde a coroação de Robert IV, o atual rei. Havia rumores de que ele era quem mais influenciava as decisões reais, e pela sua aparência tão firme quanto a do rei, não havia como negar tais acusações.
Do lado esquerdo do rei, com cabelos perfeitamente penteados e olhos enfeitiçados, a garota, a qual posso chutar que deve ter quase a mesma idade que eu, é apresentada como Serena, dama de companhia do rei, um título inventado pelo mesmo para romantizar suas amantes. Ela sorriu com gentileza, e me senti culpada por alguém tão jovem ter que se sujeitar a algo tão brutal quanto isso.
Elijah, sentado do mesmo lado que eu na mesa, mais na ponta, foi o próximo a ser apresentado. Mais alguém da mesa que dispensava apresentações, nos últimos dias eu devia saber mais sobre ele do que ele mesmo. Fazia parte do meu "mini" treinamento de uma semana, conhecer o futuro conselheiro do real, enquanto o mesmo servia aos caprichos do futuro rei. Sua pele bronzeada contrasta-se perfeitamente com seus cabelos escuros e seus olhos azuis. Ele é uma bela visão, daquelas que dá medo só de olhar, uma beleza que te intimida.
Quando finalmente cessa seu sorriso, o rei indica para a pessoa sentada ao meu lado. Meu coração dá um salto quando percebo que sentado ao meu lado, com os olhos fixos em sua taça e uma pressão tão feliz quanto a de uma mãe no velório, está o futuro rei de Nóyr, o príncipe Tristan. Ele é exatamente como nas manchetes da TV, lindo e intocável. Não há expressão alguma de cordialidade em sua feição. Ao que parece ter uma coroa em mãos faz dele alguém que não precisa fingir nada, nem mesmo a indiferença a uma jovem garota recém chegada à corte.
— Vossa alteza real — o saúdo, na vã expectativa que minha voz faça minha presença ser notada.
Mas nada. Impassível. Engulo em seco, sentindo um soco no estômag sou obrigada a tomar a bebida transparente com gosto forte de álcool.
Essa pequena atitude é mais do que o suficiente para que me atente a nunca encontrá-lo pelos corredores, odiaria ter que passar anos da minha vida sendo ignorada como estou sendo agora.
O belo rosto desejado por metade das garotas do país é apenas isso, um belo rosto. Havia boatos de que a futura rainha havia sido escolhida recentemente. Eu adoraria poder ver o tipo de garota que se sujeitaria a ficar com alguém tão frio e deseducado.
— Tristan — rei Robert chama o filho, me tirando do transe de raiva. —Acredito que esteja mais do que na hora de se redimir por sua ausência com sua futura noiva.
As últimas palavras silenciam meus pensamentos. Se antes o meu coração havia saltado, agora ele estava totalmente em queda livre. Sinto a boca secar e o corpo negar o que acabo de ouvir.
— Desculpe, Vossa Majestade — minha voz falha. — Mas...
— Não há pelo que se desculpar, senhorita. O meu filho tem uma vida inteira para lhe recompensar, não é mesmo, Tristan?
Não havia elefante no meio da sala, o elefante havia chego comigo. De repente, a surpresa dá vazão para ignorância e então repasso a última semana inteira na minha cabeça. A pressa para me ensinar o básico sobre como se portar em um jantar real, a urgência para se mudar para o palácio, tudo isso para que... para que eu...
Um desespero me domina, mas agora não há como meu corpo reagir, pois está paralisada, tentando processar o nível da minha burrice em não perceber o óbvio. Por qual outro motivo meu pai teria se dedicado tanto para me tirar do colégio em apenas um dia?
O sentimento de traição é tanto que sequer percebo as primeiras palavras enfim serem ditas pelo mimadinho real.
— Infelizmente — essa é a resposta mais inteligente que ele consegue dar, como se casar comigo fosse um fardo para ele e não o contrário.
Suspiro profundamente, fechando os olhos e canalizando todas as energias que ainda me restam para não dizer exatamente o que estou pensando.
— Vossa Majestade, acredito que tenhamos um engano. — Mordo lábio, recobrando a linha de raciocínio de minhas palavras. — Meu pai me informou que fui designada a ser Dama de Companhia e não...
Mais um dos troféus intocáveis do primogênito de Nóyr. Afinal, eu nunca teria concordado com isso. Ser castigada por freiras era uma penitência bem melhor que essa.
— Ele não mentiu, querida — odeio como a palavra "querida" soa inapropriada na voz do rei. — Só se esqueceu de atribuir o título de rainha. O que é a esposa do rei senão uma dama de companhia do seu marido e do povo?
Teria doído menos se ele tivesse me chamado de prostituta. Há cem anos as mulheres foram às ruas lutar pelos seus direitos, e ainda assim aqui estou eu sendo entregue para um homem e o seu país como um prêmio de consolação. Antes que eu possa expressar meus verdadeiros sentimentos em relação a tudo isso, o jantar é servido, e junto dele, uma nova onda de silêncio prolongada pelo rei. Todos devem falar, quando o rei falar. Mas minha mente não se cala por um segundo.
Eu jamais me casarei com o futuro rei de Nóyr.
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