DEZOITO
Dou três batidas rápidas na porta e respiro fundo tentando organizar os pensamentos na minha cabeça, em uma desculpa suficientemente convincente para poder adentrar o gabinete à minha frente. Me mantenho em uma pose rígida enquanto espero alguém me atender, mas como não obtenho resposta; coloco a mão na maçaneta dourada e a giro levemente no sentido horário. Me surpreendo ao ver que não está trancada.
- Tem alguém aí?- pergunto, ao abrir uma fresta e vislumbrar uma pequena parte do gabinete.
O silêncio que se segue me prova que não há ninguém, por isso suspiro aliviada, entro e fecho a porta logo em seguida.
Tenho que ser rápida e procurar pelos papéis e livros de que Adam precisa. Dessa vez eu não saio daqui sem uma informação concreta!
Pensei que Matthew estivesse aqui, já que rei Ignatius e rainha Angelique não se encontram no palácio. Soube que eles saíram cedo para ir à uma reunião ou algo do tipo, em um reino próximo daqui e não sei se irão voltar ainda hoje ou apenas amanhã. Então, por enquanto, Cancordion está sob o comando de Matthew.
Ou melhor, sob o comando de Matt. Penso e sorrio ao lembrar que o príncipe me pediu para o chamasse assim.
É estranho ver o quanto ele mudou de atitude comigo, já não é mais tão grosseiro e parece até que nos tornamos "amigos". Mas eu me pergunto, por quanto tempo isso durará? Talvez ele apenas esteja agindo assim por estar com peso na consciência pelo que aconteceu.
Me dirijo até a mesa do rei, pego o primeiro objeto pontiagudo que encontro e tento forçar a fechadura da gaveta.
Mas se for por isso ele já não tem mais com o que se preocupar, pois estou me sentindo completamente bem e meus machucados já cicatrizaram sem deixar nenhuma sequela.
Não adianta. A gaveta não abre de jeito nenhum. Tento forçar novamente, mas desta vez com outro objeto: uma pequena faca dourada que estava servindo de decoração.
E de verdade, eu espero que essa mudança seja permanente, porque é bom poder conversar com ele, sem brigas, sem provocações. E é melhor ainda ver que eu não estava errada ao pensar que ele não era só aquilo que demonstrava ser. De um principezinho mimado e insuportável, ele está se mostrando bem maduro e atencioso agora. E por incrível que pareça descobri até que temos algumas coisas em comum.
Uma ponta da faca voa para longe, mas a gaveta ainda permanece intacta. O que eu fiz? Corro até a pequena ponta e tento gruda-la novamente na faca. Não posso me distrair pensando em outras coisas, tenho que me concentrar no que eu estou fazendo! Me repreendo mentalmente. Volto, coloco o objeto novamente em cima da mesa e torço para que ninguém perceba o pequeno estrago causado.
Essa gaveta parece estar colada, acho que o único jeito de abri-la é com a chave, mas isso vai ser praticamente impossível de conseguir. Dou a volta na mesa e fico em pé atrás de uma cadeira observando cada detalhe do imenso gabinete.
Passo meus olhos pelas estantes brilhosas e cheias de livros antigos, pelas cortinas que já me serviram de esconderijo um dia e pelos móveis apagados que passam despercebidos nos cantos. Não há nada de anormal que chame a minha atenção. A não ser, por dois quadros peculiares que estão pendurados milimetricamente tortos em uma parede ao meu lado esquerdo. É um detalhe quase imperceptível que é capturado pelos meus olhos curiosos e atentos.
Me aproximo e observo as pinturas vibrantes que quase perpassam a linha tênue entre o belo e o assustador.
Fico ali por alguns segundos, distraída, admirando e tentando entender o significado daquelas estranhas formas.
Mas então, de repente, me dou conta de uma coisa: talvez esse seja o intuito! Distrair, para ocultar o real motivo desses quadros estarem aí.
Toco levemente na lateral de um deles e o empurro um pouco para o lado, mas nada aparece.
Pelo visto terei que tira-lo completamente para ver o que provavelmente deve estar escondido embaixo dele.
Um barulho na porta me faz recuar e rapidamente recolho a minha mão, adiando o que estava prestes a fazer.
- Julie o que faz aqui?
Matthew se aproxima sorridente ao meu lado e me olha curioso.
Suponho que ele deve ter acabado de acordar, pois seus cabelos ainda estão levemente bagunçados e a sua camisa cinza está um pouco desabotoada.
- Queria falar com você e deduzi que estivesse aqui- minto e me afasto dos quadros, para não levantar suspeitas.
- Também estava te procurando- ele ri- o que tem para me falar?
- É...
Matthew me encara com seus olhos azuis intrigados e isso me deixa um pouco nervosa.
- Não é nada demais, só queria te ver e te fazer companhia- sorrio desajeitadamente. Foi a única desculpa que me veio a cabeça.
Ele aumenta o sorriso e se senta na cadeira de seu pai, pegando alguns papéis em uma gaveta. Eu me sento em uma cadeira a sua frente e o observo enquanto ele assina e escreve algumas coisas.
- Gosto quando meus pais saem e me deixam no comando do reino- ele me olha de relance e continua com o trabalho- Sabe, devo admitir que eu mal posso esperar para me tornar um rei de verdade.
Suas mãos grandes e fortes continuam rabiscando os papéis em movimentos ágeis e rápidos, me deixando cada vez mais hipnotizada. Até que ele para, colocando a caneta de lado e se recosta na cadeira, atraindo meus olhos para o seu rosto pensativo.
- Apesar de tudo; eu ainda admiro o meu pai- ele admite- espero poder ser forte e sábio, assim como ele, no dia em que eu finalmente me tornar um rei.
Não me surpreendo ao ouvir o que acaba de dizer. Ele tem me revelado muitas coisas ultimamente e dos assuntos mais variados ele sempre toca na questão da família.
- Entendo. E você vai conseguir Matt, na verdade você já é tudo isso, só precisa acreditar mais nas suas capacidades- falo convicta.
Seus lábios rosados se abrem para falar algo, mas se fecham logo em seguida.
Tudo em Matthew é tão perfeitamente esculpido e encantador. Poderia ficar horas apenas o olhando, cada detalhe de seu rosto e de seu corpo prendem e viciam meus olhos. Já vi vários homens bonitos em minha vida, mas ninguém se compara a Matthew. Ou melhor, há alguém sim e ele é tão bonito quanto. E apenas ao pensar em seu nome, sinto algo estranho em meu peito, uma lembrança repentina...
Adam.
- Eu sei- a voz grossa de Matthew me tira dos meus pensamentos- e você me ajuda a reconhecer, você me faz buscar o meu melhor e sou muito grato por isso.
É como eu falei. O principezinho está mudado.
Ele se abaixa para guardar os papéis e murmura algo sobre gaveta trancada e então, capto uma oportunidade imperdível.
- Matt, o que tem nessa gaveta?- pergunto distraidamente, sem dar muita ênfase.
Ele me encara como se estivesse decidindo se deve ou não contar.
- Papéis importantes e alguns livros- fala dando de ombros.
- E sobre o que são esses livros?- o instigo a me contar mais.
- Somente relativo a parte financeira do reino de Cancordion e algumas informações importantes da administração. Nada mais.
Emito um Ah silencioso com a boca e me remexo na cadeira.
Felizmente já consegui as informações que precisava.
- Então, você disse que também estava me procurando- sorrio e tento mudar o assunto- o que queria?
Ele me analisa em silêncio com seus olhos penetrantes, me fazendo congelar instantaneamente.
- Queria saber como você estava- ele morde levemente o seu lábio inferior enquanto seus olhos estão fixos em meu pescoço- já tirou os curativos?
- Estou ótima- solto a respiração que nem percebi que havia prendido- e sim, ja tirei os curativos. Já sarei à dias, mas você me fazia ficar em repouso no meu quarto, sem necessidade- falo revirando os olhos.
- Era para o seu bem- ele aponta divertido.
- Sei- aperto os olhos em dúvida- ter que ficar a maior parte do tempo deitada em meu quarto não me fazia bem algum.
- Nem pense em reclamar! Eu que deveria fazer isso na verdade, já que te fiz companhia por todos esses dias. E ainda aguentei as suas reclamações e oscilações de humores- ele se finge de ofendido.
- Matt- balanço a cabeça- sem dramas.
- Dramas? Eu só queria algum tipo de agradecimento.
Me levanto e me apoio na mesa.
- E o que seria?
Ele arqueia uma sobrancelha e me olha com uma certa malícia.
- Não precisa nem responder. Eu vou me retirar e você, trate de continuar com o seu trabalho- falo sorrindo e me dirijo até a porta.
- Por que já vai? eu nem fiz nada- o ouço falando.
- E nem precisa- digo em um tom brincalhão enquanto me afasto.
E assim que fecho a porta, rio.
Algumas coisas realmente não mudam.
Ando relutante até o meu quarto e em passos lentos, já que ele fica relativamente próximo ao gabinete. Nem sei o que farei agora, acho que na falta de opções passarei o resto da tarde na biblioteca, então só tenho que encontrar Brenda e avisa-la. Suponho que ela esteja em meu quarto.
Abro a porta e me deparo com o local em um quase completo escuro apenas com alguns raios de sol perpassando pequenas frestas nas espessas cortinas e dando o mínimo de visibilidade possível no ambiente.
- Brenda, você está aí? Por que fechou as cortinas?- falo tateando a parede para tentar achar o interruptor.
Ninguém me responde. O que é um tanto estranho pois acabo de ver um vulto atravessando o quarto.
Deve ter sido apenas coisa da minha imaginação.
Tento me guiar no escuro para chegar até a janela mais próxima, mas escuto sons de passos e subitamente congelo no lugar, com o meu coração instantaneamente batendo mais rápido.
- Quem está aí?- pergunto cautelosa.
O meu instinto é correr até a janela e abrir a cortina, ou correr até a porta e sair gritando pelos corredores, mas o meu corpo não me obedece e permanece estático esperando a resposta.
- Não precisa ter medo- uma voz masculina sussurra.
Dou alguns passos para trás me distanciando, até que a minha costa esbarra em um móvel. Passo meus dedos por cima, buscando algo com que eu possa me proteger e relo em um vidro gelado. Rapidamente o pego e analiso. Um vidro de perfume. É melhor do que nada. Penso.
- Você é a Julie não é?- a voz desconhecida pergunta.
- Sou- falo firme- quem é você?
Nesse momento a luz se acende e eu fecho meus olhos com a claridade inesperada. Abro e tento identificar onde está o dono da voz. Avisto em um canto perto da porta, um homem magro todo vestido de preto e carregando uma grande bolsa de couro em seus ombros. Ele começa a se aproximar e eu posiciono o vidro de perfume à minha frente para me defender, caso eu precise.
- Sou o mensageiro do reino de Oryon. Não precisa me temer, estou a mando do rei Adam.
Ao ouvir suas palavras imediatamente abaixo o vidro e o coloco em cima do móvel e respiro profundamente aliviada colocando uma mão no peito.
- Você me deu um grande susto! Por que não me disse logo de quem se tratava?
- Questão de cautela senhorita- ele pega a bolsa de seus ombros- e se puder me dar logo a correspondência, agradeço.
Ele parece estar um tanto afobado. Ou talvez seja medo, não consigo identificar. Até compreendo o seu estado, pois se os guardas o pegam trazendo a correspondência de outro reino sem a devida autorização a sua vida correria um sério risco.
Ando até o colchão e o levanto pegando a carta que já havia escrito. Mas aí me lembro de que eu não acrescentei as informações que descobri hoje no gabinete.
- É, diga ao rei Adam que...
Ia começar a falar sobre as informações, mas me lembro de que primeiro eu tenho que me certificar se esse é realmente o mensageiro de Oryon.
- Espere, como posso confiar nas suas palavras?
Ele bufa, mas como se já estivesse esperando essa pergunta, mexe em sua bolsa e me estende uma carta.
- Essa carta é do rei para você! E como pode ver, o selo real comprova as minhas palavras.
Pego a carta de suas mãos e passo levemente os meus dedos pelo selo. Um grande Ø marcado na cera azul. Lembro desse símbolo em um anel que Adam usava no dedo mindinho.
- Sim! Aqui está- estendo a outra carta que segurava- e eu não tive tempo de acrescentar, então, diga a ele que não consegui pegar os livros; mas que eu descobri que eles só possuem informações referentes a parte financeira e administrativa do reino de Cancordion- falo claramente.
- Algo a mais?- ele pergunta, guardando cuidadosamente a carta em sua bolsa.
- Por enquanto não.
Ele assente e me diz que voltará na próxima semana. E logo após, se retira sorrateiramente pelos corredores.
Torço para que ele consiga chegar em segurança a Oryon. É claro que fui esperta o suficiente para não colocar o meu nome na carta, assim caso ele seja pego, não haverá provas de que fui eu quem a escreveu. No entanto, acho que não adiantaria muita coisa. Adam seria incriminado por estar recebendo informações e consequentemente eu, por estar as passando a ele. Mas é melhor não ter esses pensamentos ruins agora.
Sento na cama e abro a carta de Adam para poder me distrair e saciar a minha curiosidade.
Julie, como está? Espero que esteja bem.
Nesses dias que se passaram eu tenho pensado muito em tudo o que aconteceu e principalmente em você e na sua segurança.
Consiga as informações que eu te pedi, mas faça isso com muita cautela! Não assuma riscos desnecessários. Sei que deve estar sendo difícil, mas pense no futuro! Logo tudo acabará e você estará aqui, com a sua família, fazendo parte do meu reino.
É só isso que tenho para falar, no mais, espero te ver em breve!
Adam.
Aperto a carta em minhas mãos, numa tentativa de memorizar cada palavra.
Saudades...
É o que estou sentindo neste exato momento. Saudade dos meus pais, saudade da paz, saudade de uma vida tranquila e sem mentiras e no fundo...
Sinto saudades de Adam.
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