Recepção
º Visão de F. Knox º
Morar com meu pai nunca foi meu sonho. Desde que ele tinha se separado da minha mãe, Yohan e eu combinamos que ele moraria com o pai e eu com a mãe, para cuidar dela – dentro do que eu podia fazer, que confesso que não era muita coisa.
Acontece que desde que minha mãe se suicidou no último verão, eu vim parar nesse inferno gelado. As pessoas falam muito sobre cuidar dos seus, amar sua família e como o amor cura todas as dores... mas não é muito falado o que acontece na página seguinte, quando nem sempre conseguimos. Tentei expressar o amor da forma como conseguia, mas não foi suficiente.
Minha mãe sempre me disse que o amor nunca era suficiente pra nada. Não foi suficiente pro casamento dela dar certo, pro meu irmão a escolher – mesmo que ela soubesse a verdade sobre essa decisão, ela parecia se penalizar pela escolha dele – e hoje minha mente flutua sobre isso um pouco. Meu amor e cuidado não puderam salvá-la, muito pelo contrário. Depois de todo o ódio que já tinha recebido, me tornei alguém digno de pena para as pessoas que me conheciam e mesmo que eu amasse NY, Milwaukee se tornou minha casa.
Pro meu pai seria excelente se eu construísse uma nova história, deixando para trás tudo de ruim que já tinha feito e vivido, então me esforcei. Trabalhei em cafeterias durante as férias, para tentar me distrair e salvei meu irmão de algumas enrascadas pontuais que ele se meteu com os conhecidos que tinha feito nas férias. Na escola, assim que me transferi, me candidatei para entrar pro time de basquete, na esperança de que, pelo menos nas quadras, nada tivesse mudado. Ainda não tinha ido assinar o termo de comprometimento, que só assinaria no meu primeiro dia de aula, mas pelo menos já era um começo.
Sobre meu irmão, percebi que desde que cheguei ele vinha se esforçando para ser melhor. Ele queria me provar que não era mais a criança que eu tinha convivido há alguns anos, mas sinceramente pra mim ele nunca perderia essa máscara.
Eu sabia que ele era apaixonado por algum cara do time de futebol americano que ele ajudava e era por esse motivo que ele sempre estava com eles – mesmo não gostando nem um pouco do esporte... embora isso me preocupasse, segundo meu pai o capitão era um bom garoto, então eu geralmente não ficava atrás do Yohan quando ele tinha festa com esses caras ou algo do tipo. Eram os únicos rolês dele que eu não ficava vigiando, para salvá-lo, caso algo acontecesse. Isso, até a festa de despedidas das férias, ou algo assim.
Era 03h da manhã e meu irmão ainda não tinha colocado os pés em casa. Então eu olhei pelo nosso app de rastreamento – era obrigatório, nosso pai era policial e todos nós éramos obrigados a ter esse app, para em casos de emergência ele saber onde procurar –, coloquei minha jaqueta, peguei meu capacete e saí, para ir atrás dele. Quando saí do quarto e desci as escadas, vi que meu pai estava dormindo de frente para a TV. Ele tinha tido plantão no dia anterior, então claramente estava cansado.
Saí de casa empurrando minha moto até a esquina, por causa do barulho do escapamento e antes de ir até meu irmão, parei em uma conveniência para tomar um energético. Após isso segui o GPS do rastreador até uma casa do outro lado da cidade.
Me espantei um pouco quando entrei, pela quantidade de coisa errada reunida em um único lugar, mas não falei nada. De repente, no entanto, três caras, pouco menores que eu, porém mais largos, pararam diante de mim, me olhando de baixo pra cima. Apostaria todas as minhas economias que eles eram do tal time de futebol americano.
– Quem é você? – o rapaz do meio me pergunta. Ainda estávamos praticamente na entrada da casa. Tentei olhar um pouco atrás deles, pra ver se meu irmão estava por ali, mas não o encontrei.
– Seu pai de calcinha, sai da minha frente. – respondo, tentando passar por eles e ele coloca a mão no meu peito.
– É sério, quem é você? Sabia que essa casa é do governador? – ele insiste.
– Bom saber que ele é um aspirador. Tô atrás do meu irmão, não quero problema e nem olhar pra essa sua cara de otário por muito tempo. – é o que digo.
Eles se olham e os dois outros caras dão de ombros, como se expressassem que não me conheciam, mas que eu poderia estar falando a verdade. Mantenho meu olhar fixo no cara do meio, que parecia pensar no que deveria fazer.
– Quem é seu irmão? – ele mantém a sessão de entrevista e eu sorrio.
– Yohan. – é tudo que falo e os caras que estavam com ele parecem apenas não se importar, saindo dali. Ele continua parado, me olhando nos olhos.
– Ele tá no banheiro lá em cima, bebeu demais. – explica e sai da minha frente. Passo pelo rapaz olhando em seus olhos e ele não diz mais nada.
Enquanto andava por aquela casa, as pessoas me olhavam como se eu fosse um bicho. Talvez elas percebessem que eu não era como elas, mas isso não me deixava com medo, isso me deixava feliz. Era uma honra não ser como eles.
Saí abrindo cada porta do segundo andar. Flagrei muitas coisas que não queria ter visto até chegar em uma porta que tentei abrir e ela não abriu. Bati algumas vezes nela, chamando meu irmão. Como ninguém respondeu e nem abriu, eu arrombei. Um chute foi o suficiente pra entrar lá e ver a cena daquele idiota deitado no chão com a barriga pra cima, se engasgando com o próprio vômito.
O coloquei de lado até que ele terminasse de vomitar e depois disso ele me olhou por alguns segundos.
– Knox? – ele me chama, desmaiando em seguida.
Fico por alguns segundos me perguntando o que caralhos eu estava fazendo naquele momento. Não entendia como conseguia atrair tanto problema. Depois de pensar, tomei coragem e o coloquei no meu ombro, descendo as escadas pra ir embora em seguida. Quando chegamos no andar de baixo eu apoiei um dos braços dele no meu ombro e comecei a andar.
Saí carregando meu irmão pela casa, até ouvir alguém gritar. Quando me virei, percebi um cara me encarando, como se fosse o cachorro de guarda do meu irmão... ele estava pronto pra partir pra cima de mim. Pouco menor que eu, como os outros caras, mas duplamente mais largo que eles, ruivo, não parecia drogado, porque seus olhos não estavam vermelhos. Ele tinha ódio no coração.
Um idiota o chamou e eu aproveitei pra sair daquela casa com meu irmão. Chamei um carro de aplicativo e o levei pra casa, deixando minha moto próxima da casa onde estava acontecendo aquela festa. Felizmente meu pai ainda estava apagado quando chegamos. Joguei Yohan no chuveiro, sentado, vestido, com a água gelada e ali ele ficou por cerca de 30 minutos, em silêncio.
Ele não estava dormindo ou desmaiado mais, estava triste. Fiquei ali, sentado de frente pra ele, encarando cada pedaço daquela cara de pau dele. Yohan parecia não querer me olhar, mas eu mantinha os meus olhos fixos naquela palhaçada.
– Me desculpa. – é tudo que ele diz.
– Você quase morreu. A troco de quê? Sabe como o pai ficaria se perdesse você? – questiono.
– Eu não queria. É que eu vi a pessoa que eu gosto saindo mais uma vez com alguém e isso... queria ser diferente, pelo menos hoje. – é a resposta dele e eu respiro fundo. Esse tipo de drama adolescente não fazia meu estilo.
– Quase se matando, igual um zé mané? – pergunto, sem esboçar nenhum tipo de reação.
Tentava controlar meu tom de voz, para não ser verbalmente violento com Yohan. Sabia que todas as pessoas no mundo faziam bobagens, mas pra mim era quase que incontrolável a vontade de jogar na cara dele suas atitudes reprováveis.
– Ela parece gostar de pessoas que tem atitude, sei lá. Queria ser mais como você. – ele responde.
– Reabilitado? – pergunto e ele sorri.
– Corajoso. – ele me corrige, ficando sério em seguida. – Eu não aguento ser o estereótipo, sabe? No time os caras só me veem como "o cara do equipamento". Eles nunca realmente me convidam pra algo, eu vou porque eles chamam minhas amigas e como estou sempre com eles, é mais fácil se aproximar delas por mim... queria ser visto de verdade.
– As pessoas nos colocam nos lugares que achamos merecer. Se tá ruim nesse time de bosta, muda de ocupação. Se esse imbecil não te valoriza, começa a olhar ao seu redor. Às vezes você, só tendo olhos pra ele, está perdendo alguém muito melhor. – é o que respondo, me levantando. – A próxima vez que fizer eu largar minha moto por você, arranco suas pernas, coloco em conserva em um pote e uso de decoração no meu quarto. – ele confirma com a cabeça e eu vou caminhando até a saída do banheiro.
– Desculpa. – ele diz e eu paro por um instante.
– Tente novamente mais tarde, mané. – saio do banheiro, mas ouço ele começar a chorar copiosamente em seguida.
Não quis pegar outro uber para buscar minha moto, então fui a pé. Caminhando, fiquei pensando no que meu irmão me disse. Era impressionante como, pra ele, eu era um cara incrível. Ele sempre teve uma visão mais romantizada das minhas atitudes reprováveis. Pra ele, eu era alguém decido e corajoso, pra mim... eu era o reflexo dos problemas que a sensação de abandono me atribuiu.
Nunca tinha conseguido expressar carinho maior do que fiz hoje, por exemplo, por ele. Pra mim, sair da minha cama pra ir atrás do meu irmão era a maior prova de amor que poderia dar. Nada de abraços ou palavras de conforto.
Isso, porque quando minha mãe engravidou do meu irmão eu fui morar com o meu avô e lá fiquei até meus 10 anos de idade. Meus pais não tinham condições de criar dois filhos e como o meu avô era solitário, meu pai perguntou pra ele se ele me queria por um tempo. Ele aceitou e foi nesse período que entendi o motivo pelo qual meu pai era a pessoa mais chucra que eu já conheci.
Meu avô era um ex-combatente de guerra. Não lembro de ter ganhado outro presente dele além de surra, gritos, broncas e cobranças. Pra infelicidade dele, no entanto, eu tinha algo dentro de mim que realmente me assustava e quando você tem medo de si mesmo, ninguém mais consegue assumir essa posição.
Conheci o basquete nesse meio tempo. Passei a ficar mais tempo fora de casa do que dentro dela e por eu já ser alto desde novo, chamava atenção de todos para o esporte. Em contrapartida, por ser sarcástico e levemente dominado pelo meu próprio ódio, meu apelido de "Bill Laimbeer de Phoenix" acabou se tornando popular. Tão popular, que tentaram conversar com meu avô sobre a possibilidade de eu ter TOD – Transtorno Opositivo-Desafiador. É claro que não deu certo e ser comparado com um jogador violento só me fez apanhar ainda mais.
Pra ele eu não servia pro basquete, por causa da raiva. Pra mim, eu só servia pro basquete por causa da raiva. No final das contas aos 10 anos ele não aguentou minha personalidade e eu voltei pra casa dos meus pais – também, porque o técnico disse ao meu pai, depois de me ver jogar, que se ele me controlasse, provavelmente eu seria um dos melhores jogadores de NY no colegial. No final das contas, no entanto, esse foi o motivo de eles não terem mais paz, afinal, enquanto estava no Arizona com meu avô eu vivia em mãos de ferro, quando fui morar com meus pais – que eram acostumados com o jeito meigo do meu irmão, o cerco apertou.
Eu não era uma pessoa fácil de se controlar, porque eu olhava meu pai e via meu avô. Na primeira semana ele até tentou conversar, mas não era como se eu quisesse saber o que ele tinha pra dizer. Da minha boca saía qualquer coisa que o deixasse em choque, apenas para que ele parasse de falar e acabou que aos 15 anos eles se separaram, depois de muitos problemas sérios causados pelo ambiente que eu, hoje, sei que trazia de propósito.
Pra mim naquela época, mesmo que meu pai fosse um homem justo, ser justo não queria dizer efetivamente reproduzir a verdadeira justiça – meu avô era a própria representação disso, por exemplo. Eu sentia muita necessidade de falar o que achava, impor o que pensava e principalmente moldar minha personalidade completamente contrária a qualquer figura de autoridade. Era um completo agente do caos, gostava de manter uma linha bem fina entre lucidez e enlouquecimento...
É claro que pro Knox de 15 anos, imaginar que aquela separação seria a causa da morte da própria mãe o faria falar menos.
Quando minha mãe adoeceu por causa da depressão, eu precisei mudar, escolhi mudar. Escolhi me dedicar a tentar meu melhor. Ter notas melhores, não responder as pessoas e evitar confrontos. Quando vinha passar um tempo com meu pai, não discutíamos, não esboçávamos nenhum tipo de agressão... aquela era a tentativa do Knox de 17 anos de tentar consertar o que fez, mas não é como se o passado se apagasse apenas porque eu queria isso.
Me condeno todos os dias por ter sido difícil desde o primeiro dia que percebi ter consciência própria. Pra psicóloga que fiz por um tempo, esses eram efeitos, principalmente da raiva de se sentir abandonado, mas não sei. Todas as palavras da minha família sempre foram pra dizer o quanto as outras pessoas eram melhores, mais carinhosas e mais legais que eu e mesmo que meus pais fizessem comparativo todos os dias sobre meu irmão... ali estava ele.
Pequeno, franzino, sempre muito carinhoso, calmo, gentil e dedicado. Sempre me encarando com os olhos brilhando, como se eu fosse referência de alguma coisa que presta. Pra ele eu sempre fui alguém bom. Acontece que pra mim ele sempre teve uma visão deturpada de um irmão que ele queria ter tido.
Bem, quando cheguei na minha moto, olhei mais uma vez pra casa atrás de mim e vi aquele monte de pessoas bebendo sem parar. Coloquei meu capacete e saí dali em seguida, sem olhar para trás. Comprei um lanche e parei na calçada do museu de arte de Milwaukee. Lá passei a madrugada quase toda, olhando pro céu e pensando no que falaria amanhã, pro meu irmão.
De manhã tomei um banho demorado pra escola, por causa do sono de ter virado a noite. Fiz a barba e arrumei aquele terninho ridículo do uniforme. Acabei por colocar minha jaqueta por cima e saí do quarto, indo até a mesa de café da manhã, onde meu irmão já estava comendo, enquanto meu pai terminava de fazer um sanduíche.
– Saiu ontem? – meu pai pergunta. – Fui no seu quarto umas 5h da manhã e ainda não estava.
– Saí, estava com fome, fui comprar um hambúrguer. – respondo e ele vem até mim, colocando um prato com sanduíche diante de mim.
– Às 5h da manhã? – ele pergunta e eu dou de ombros. – Se for pego fazendo coisas erradas, não vou conseguir te encobrir, só porque sou policial. Deveria fazer como seu irmão e ficar em casa, quieto. Evite problemas.
– Tudo bem, desculpe. – é o que respondo, começando a comer em silêncio. Que foi? Eu disse que tinha mudado.
– Não se esqueça que tem que se apresentar na instituição pra fazer o teste de drogas e entregar seu histórico escolar do último ano. Se cogitarem que anda pisando fora da linha, te colocam lá dentro de novo. – é o que ele diz e eu concordo com a cabeça.
– Lembra o dia? – pergunto, antes de dar uma mordida no meu café da manhã.
– Quinta, 17h. – é o que ele diz e eu concordo com a cabeça. – Esteja sóbrio, bem vestido e vá de carro. Não vai querer que eles questionem sobre sua moto. – concordo mais uma vez com a cabeça, em completo silêncio. Yohan permanece ali, como se não existisse.
– Posso ir pra escola contigo? – ele pergunta e eu o observo, enquanto mastigo.
– Pega o ônibus. – é o que falo, ainda terminando de mastigar.
– Melhor mesmo, Yohan, é melhor evitar perigo, não se esqueça do exame de avaliação dessa semana. – é o que o pai fala e eu observo meu irmão, concordando com a cabeça, olhando fixamente em seus olhos. Ele desvia o olhar em seguida.
Acredito que aquele café estava mais indigesto pra ele do que pra mim e isso fui realmente curioso de ver, já que não esperava ver meu irmão tão desconfortável. Quando terminei, agradeci o café e saí de casa. Yohan me seguiu e me segurou pelo braço, forçando-me a olhá-lo.
– É sério, me desculpa.
– Não estou chateado com você. Sei que tem problemas em fazer inimizades, não gosta de se sentir reprovado. Tá tudo certo. – é o que falo. – Apenas jure que vai parar de tentar impressionar esses merdas. – ele concorda timidamente com a cabeça e eu passo por ele, subindo na minha moto e saindo dali.
Eu gostava da minha moto, porque ela tinha sido o único presente que tinha ganhado na vida dos meus pais e porque sentia a liberdade tocar meu corpo. Mesmo que isso tivesse custado engolir muita coisa – e algumas sem necessidade – tinha valido a pena. Pelo menos agora eu podia ir onde quisesse, fazer o que quisesse, que desde que não gerasse encrenca, tudo certo.
Acabei demorando um pouco pra chegar na escola, porque fui dar uma volta na cidade. Queria ver o movimento, encarar outros rostos que não fossem de pessoas me desaprovando ou tristes... quando cheguei, fui direto no meu armário guardar minhas coisas. Alguns segundos depois meu vizinho de armário chegou, mas quando ele fechou o armário levei um susto.
– Você! Cadê o garoto que sequestrou ontem? – ele pergunta, em alto tom. Pra mim era divertido perceber como as confusões pareciam andar até mim, mesmo que eu não fizesse nada, por isso sorrio.
– Knox? – ouço meu irmão me chamar, como se fosse eu o cara que estava prensando violentamente outro cara contra o armário no meio da escola. – O que aprontou, irmão? – ele me pergunta e eu observo o rapaz que estava me segurando.
– Esse é o seu jeito de dar em cima dos outros? – pergunto, em tom sarcástico, e ele afrouxa a mão.
– Vocês são irmãos? – ele questiona e eu encaro Yohan por alguns segundos.
– É o detetive do ano, imbecil. – me solto de suas mãos, fecho meu armário e passo pelo cara, sem dizer mais nada.
– Eu fiquei preocupado com você ontem, sumiu, ninguém sabia onde estava... – ouço ele falar pro meu irmão e me viro um pouco, olhando os dois.
– É, eu passei mal e meu irmão foi me buscar. – ele responde, de forma doce e é nesse momento que percebo o lugar onde estava.
Que merda, aquele animal era o cara que meu irmão estava apaixonado.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top