Limpeza
Meu pai tinha convocado uma reunião de família, depois de bastante tempo. A última tinha sido pra decidir se doaríamos as coisas de Jensen, ou não. Bem, minha mãe teve um surto tão forte que precisou ser internada por duas semanas pra conseguir conter a própria mente, sem se matar ou matar alguém. No final das contas ficou acordado que as coisas que Jensen ficariam conosco até que estivéssemos preparados para doar.
Dessa vez não tem muito o que dizer. Meu pai sempre teve outras mulheres e isso não era uma questão pra ela, porque minha mãe falava abertamente que sua vida eram seus filhos. Acontece que na época desse surto apareceu uma mulher em específico: Marina. Meu pai é obcecado por ela em um ponto que ele atravessa o mundo pra vê-la, quando quer. Ele deu uma casa e um carro pra ela, tem um filho com ela e passa uma parte significativa da vida dele com ela – nos últimos dias isso tinha mudado um pouco, por conta das coisas que aconteceram, mas agora que tudo voltou ao "normal" ele também tinha.
Eu já tentei conhecer meu outro irmão, que atualmente é uma criança pequena, um bebê de quase 1 ano... mas a Marina me disse pessoalmente que se eu chegasse perto dele, teria o mesmo fim do meu irmão. E falando sobre meu irmão, ele era o ovo dourado da minha mãe. Inteligente, elegante, humilde, simpático, político...
No fundo, eu sabia que a decadência completa dela tinha sido ver esse grande troféu se quebrar, principalmente porque ela sabia que Jensen era um grande piloto. Agora estávamos ali, meu pai, minha mãe, Anista e eu. Todos sentados, esperando que meu pai diga seu comunicado importante.
– Bem, mesmo com todos os problemas de negligência, discussões e discordâncias, acho que podemos concordar que esse casamento deu certo, de alguma forma. Criamos três lindos filhos, onde sabemos que perdemos um, justamente porque ele era muito bom. – meu pai fala, enquanto minha mãe o fuzila com o olhar.
Ele não tinha criado ninguém e sabíamos disso. Ela tinha feito todo o trabalho pesado, enquanto ele viajava bastante e tinha outras mulheres. Tudo aquilo era uma imensa vergonha.
– Fala logo o que foi. – Anista pede.
– De fato vamos nos separar, seu pai tentou me fazer mudar de ideia depois daquele dia, mas essa minha decisão está bem sólida na minha mente. – minha mãe responde, de forma firme e Anista e eu ficamos impressionados. – Consegui meu visto permanente, não aguento esse cheiro de puta vindo do seu pai, essa casa me dá desgosto e agora eu tenho as respostas que precisava para seguir em paz. – ela respira fundo. – Queria saber com quem vão querer ficar.
Todos ficamos em silêncio por alguns segundos, surpresos pela forma como minha mãe parecia apenas ter cuspido tudo aquilo. Bem, ela era do tipo recatada e do lar, não era como se a víssemos falando assim recorrentemente.
– Bem, se minha carta chegar, ano que vem estarei em Harvard, meio que isso não interfere muito na minha vida. – respondo, depois de um tempo em silêncio e ela observa Anista.
– Vai embora de Milwaukee? – ela pergunta.
– Sim, vou para Boston.
– Fica do lado de Massachusetts, então podemos sim montar um quarto pra mim lá. – digo. – Bem, agora vou indo.
– A reunião não acabou. – meu pai fala e eu o observo. – Sente aí, sou seu pai, me deve respeito.
– Pai? – penso um pouco. – Lúcio é mais meu pai que você e eu o conheci há um semestre. Fazemos receitas juntos, choramos, expressamos sentimentos... ele me deu um chaveiro com um capacete igual o meu de presente do nada, sabe o que é isso?
– O que? – ele pergunta e eu dou de ombros.
– O melhor presente que eu já recebi na vida. – respondo. – Não foram seus cheques, que no final pelo menos pude usar pra algo importante, nem sua academia, que, de novo, pelo menos ajudou o Felix... foi um chaveiro de capacete de uns 5 dólares, porque ele lembrou de mim. Ele pensou em mim quando viu isso aqui. E você?
– Tyler, sente. – ele ordena.
– Ou o quê? – pergunto e ele fica de pé. – Sabe, pai, Jensen sempre te viu como um exemplo de pessoa a nunca se espelhar. Você tem amante, então não honra nem a promessa que fez pra Deus, não para em casa, sempre que tem oportunidade humilha seus filhos e persegue sua esposa por causa de "imagem" e se preocupa de forma ferrenha com a forma como as pessoas te veem. Não consegue controlar esse pau dentro das calças, faz filhos traindo sua mulher como se fosse seu direito... mas talvez seja. Miseráveis só oferecem miséria.
– Tudo bem. Pelo visto ninguém aqui vai ficar triste com essa separação. – é o que meu pai fala e eu sorrio.
– Claro que não, minha mãe é linda, inteligente, guerreira... imagina a dor que ela carrega todos os dias e ainda está aqui. Você é o miserável, tão miserável que a única coisa que pode oferecer é dinheiro. Quando a Marina perceber, também vai precisar se entupir de remédio antes de abrir as pernas pra você. – digo e ele me dá um soco. Eu não movo um centímetro sequer. – Como estava dizendo, vou indo. Que dia é a nossa mudança?
– Final do ano. Vou organizar nossos voos, mas não vamos levar nada daqui. – concordo com a cabeça.
– Ótimo, vou aproveitar esse meio tempo pra me organizar pras obrigações da escola. – sorrio pra ela, passando pelo meu pai.
Obviamente aquele soco tinha doído, mas não queria que meu pai tivesse o sabor de saber isso. Quando cheguei em Felix aquele dia, coloquei gelo no local e ficamos vendo série. Bem, agora transávamos recorrentemente e preciso enfatizar o quanto era bom – e digo bom, porque era impossível descrever o quanto eu sentia prazer. Era como se fosse explodir.
E era bom, não apenas por fazer. Na verdade, demorávamos horas, porque explorávamos nossos corpos, nossos cheiros, nossos arrepios. Me relacionar com Felix fazia eu ter vontade de subir pelas paredes de tanto prazer. Seu toque era como algodão, de tão macio, sua boca era o paraíso que eu almejei por anos, sem entender o que queria. Ele era minha medida, em tudo.
No geral as semanas foram passando de forma comum. Meu pai saiu de casa, porque não queria ficar lidando com a gente durante o tempo que estava resolvendo sobre o divórcio. Era bom, porque assim poderíamos realmente ter a resposta que não poderíamos contar com ele. Bem, meu pai sempre pareceu estar em dois lugares, ou melhor... quando estava aqui, sempre parecia que a parte mais racional dele estava em outro lugar. Era como se sempre tivéssemos a casca e apenas isso.
Eu acredito na frase que diz que consertar uma coisa é mais difícil que destruir. Me relacionar com o Felix foi uma jornada de tentar trazê-lo de volta a vida, e agora, com a minha mãe eu estava passando pelo mesmo. Eu acompanhava ela nas sessões de terapia e por conta disso, depois de alguns meses ela andou de moto comigo pela primeira vez na vida. Foi uma forma de ela enfrentar o que tinha a machucado... em um desses dias de passeio, levei ela até o parque, onde ficamos por um tempo, em silêncio.
– Pra mim a ideia de perder o Jensen sempre foi intragável. – ela começa a falar, depois de cerca de 50 minutos em silêncio observando a vida passando diante de nossos olhos no parque.
Minha mãe nunca tocou no assunto desde o falecimento dele, com exceção do dia que eu expressei minha vontade sobre ser piloto. Imagino que essa ferida estava viva dentro de seu peito, rasgando sua alma e vontade de superar.
– Eu imagino.
– Não. – ela rebate. – Você sente falta dele como seu parceiro, seu irmão, sua alma gêmea, eu sinto como parte de mim. Ele foi a primeira pessoa que eu amei tanto, que mataria e morreria por ele sem pensar duas vezes. Quando neguei Jim e escolhi seu pai, eu sabia que estava fazendo a coisa certa, pelo seu irmão, por você. Perdê-lo, foi como perder o sentido de muitas decisões que tomei ao longo da minha vida. Vocês dois eram joias preciosas demais pra mim, perder uma das duas foi dolorido, pedi a Deus que me levasse no lugar dele e todos os dias espero que ele entre pela porta da frente novamente. É uma tortura constante, que não sei como lidar.
– Eu amo o que matou meu irmão. – ela me observa. – Por um tempo, foi como um fardo que eu carregava. Todas as vezes que eu subia em uma moto pra pilotar, me lembrava da visão que eu tinha enquanto ele pilotava... – os olhos dela se enchem. – E... já namorou o Jim? – pergunto e ela solta um pequeno sorriso.
– Jensen não é filho do Davis. – minha mãe me observa. – E nem você. – engulo essa informação a seco. – Ellen sabia, por isso foi embora e deixou ele e o Simon para trás.
Ellen era a ex mulher do governador. Ela tinha ido embora quando Simon e eu estávamos no primeiro ano do ensino médio. Poderia ter sido um escândalo, se Jim não tivesse abafado totalmente os boatos sobre isso. Ele era muito bom em esconder a realidade das situações, quando tinha interesse nisso.
– Mais alguém sabe sobre isso?
– Tem medo da sua família ficar mal falada? – ela pergunta e eu sorrio.
– Não, só não quero que ninguém saiba que o Simon é meu irmão, seria uma vergonha muito grande. – rimos. – Não tenho problemas com o governador e pode parecer hipócrita eu ficar puto com o meu pai sobre te trair, mas te apoiar na sua traição... eu só... sei que meu pai é miserável, entende? Sou humano. Certamente seus motivos são mais sérios que ego.
– Seu pai sempre foi difícil. Ele queria, porque queria que eu fosse esposa dele. Mas todas as vezes que ele me bateu, Jim me socorreu. Duas dessas vezes me deram vocês dois e foi antes de eu me casar efetivamente com ele. Seu pai sabe. É por isso que ele sempre disse que seu gene e do seu irmão são ruis. – ela respira fundo. – Seu avô amava o Jim, tanto quanto amava MotoGP. Mas sabe o que ele odiava? – nego com a cabeça. – Gente sem dinheiro... e isso o Davis tinha de sobra. Ele chamou meu pai pra conversar e disse que os nossos filhos seriam reis do mundo, ele faria de tudo por vocês e por esse motivo meu pai deu tudo pra ele. Quer dizer, ele me deu e eu coloquei seu pai pra administrar todas as lojas. Mesmo ele sendo um crápula, não posso negar que seja muito inteligente.
– E a Anista?
– Ela é filha do Davis, infelizmente. Estou te contando isso, pra você se sentir livre pra nunca mais vê-lo. O Jim te ama imensamente, talvez mais do que ama o Simon. Ele faria de tudo pra que você o reconhecesse como pai. Ele até virou governador pra tentar impressionar meu pai... – ela sorri de forma saudosa.
– Ele ainda te ama muito. – respondo e ela me observa. – Certamente faria de tudo por você também.
– Agora sou uma doente, inválida. Ele gostava do meu jeito imponente...
– Ele te ama imensamente. Desde antes, todas as vezes que vamos jantar com ele, é como se ele te desejasse com toda a vontade que tem dentro da alma. – digo. – E agora que está tratando tudo que ignorou e remoeu durante esse tempo, está voltando a ser a mulher que eu conheço. Certamente ele daria a vida dele inteira apenas para ficar ao seu lado.
– Jensen e o luto foram o começo, mas o motivo de eu ter decaído de vez, foi não ser quem eu sou. Não ter forças pra mandar seu pai embora quando a Marina apareceu com o bebê... me senti incapaz de ser um bom exemplo pra Anista, pra você...
– Nós entendemos e te amamos, mãe. O que importa é sua recuperação, mais nada. E arranca tudo que é seu da mão do meu pai, porque ele fica usando esse dinheiro pra sustentar a amante. O vovô passaria por cima dele com a moto 5 vezes se soubesse disso. – ela sorri, concordando com a cabeça e apoiando sua cabeça em meu ombro. Ficamos ali por mais algum tempo.
Não sabia o que fazer com a informação que o governador Jim era meu pai. Bem, agora as coisas faziam mais sentido, porque eu nunca tinha me sentido conectado com Davis. Era como se estivéssemos em páginas diferentes a vida inteira. Meu pai esperava que a minha personalidade pudesse ser moldada ao seu agrado e quando isso não acontecia, ele ficava desolado. Essa frustração agora tinha um sentido pra mim.
No final das contas, no entanto, ver a melhora da minha mãe me dava motivos pra continuar. A cada dia que se passava, me sentia mais forte do que nunca. No começo era difícil falar o nome do meu irmão, depois de um tempo, se tornou essencial. Discutimos as coisas que seriam doadas, já que ela não queria se desfazer de tudo. Fizemos caixas com as coisas que poderíamos nos desfazer e o restante mantivemos no quarto, exatamente como ele tinha deixado pela última vez.
Na escola, continuava jogando basquete e nesse meio tempo até recebi um convite pra jogar na faculdade. Neguei. Esse não era meu objetivo de vida, por esse motivo entrei direto com as notas mesmo. Felix ficou impressionado com a minha objetividade, mas agora eu tinha um sonho. Era diferente da alma perdida que ele tinha encontrado há um tempo...
Minha mãe, com o passar do tempo, recebeu alta e parou de tomar sonífero e antidepressivo pra conseguir viver. Bem, pelo menos da forma como precisava. Agora ela tinha diminuído sua medicação e dizia abertamente que isso era um impacto direto sobre o fato de agora ter respostas sobre o caso do meu irmão. Até o relacionamento com Anista melhorou nesse meio tempo, já que elas viviam se bicando, porque pra Anista o assunto do meu irmão não era um tabu...
Íamos no cemitério vê-lo sempre que possível, conversávamos sobre ele e ríamos lembrando das coisas boas que vivemos juntos. Em um desses dias, quando fui sozinho, vi Erick no túmulo de seu irmão e fui até ele, me sentando ao seu lado.
– É incrível a oportunidade que teve de receber uma carta do seu irmão deixando tudo em pratos limpos. Admito que senti uma inveja absurda... – ele comenta. – Quando te conheci, te adorei, porque bati o olho em você e vi quem ele me dizia para procurar, mesmo depois de ele não estar mais aqui comigo. É loucura, né?
– Lembro quando me disse na aula de mandarim que nos conhecemos que seu irmão te ensinou a saber quando alguém é forte só de olhar. Me convocou em seguida pra jogar, por causa disso e viramos tudo o que viramos. – comento. – Nunca me disse o que aconteceu com ele...
– Meu irmão era gay. – arregalo meus olhos, sem olhar Erick. – Um dia meu pai chegou em casa e pegou ele com o namorado da época, ele deu uma surra tão feia no Dorian que ele "se encerrou" no outro dia. Acho que é por isso que até hoje tenho sentimentos negativos sobre a comunidade. Não consigo culpar meu pai, porque depois que meu irmão se foi... ele e minha mãe eram tudo que eu tinha, então foquei a raiva em gays, como e esse fosse o problema. Você me ensinou muito mais do que imagina, Tyler. Salvou minha vida em diversos campos, incontáveis...
– Eu sinto muito por tudo que teve que aguentar sozinho, Erick. – é tudo que falo, passando a mão pelas costas de Erick e ele abaixa a cabeça.
– Fora isso, Abigail está morta. – ele comenta e eu fecho os olhos, sentindo o a informação. Ela era uma peça importante pra todo o quebra cabeça geral. – Eles deram um fim nela, quando tudo começou a estourar, o Bill confessou e o advogado contou pros meus pais pra eles fecharem o meu caso.
– Então nem ela nem o Yohan nunca vão pagar pelo o que fizeram. – respondo e ele me observa.
– Será que não? – fico confuso. – O pior castigo pro Yohan foi saber que o irmão que ele julgava incapaz e o cara que ele tentou manipular, mas não conseguiu, deram um fim nele. Agora a alma dele vai ficar vagando pela eternidade, sabendo que todos os planos dele foram em vão. Tem castigo pior que esse?
– E você, vai pra onde depois daqui?
– Yale. Me chamaram pra jogar futebol americano, fiz a entrevista e informei sobre o HIV, disse que estou tratando e está indetectável. – sorrio. Era bom ouvir isso. – Eles me aceitaram, disseram que minha resiliência combina com a universidade.
– É incrível saber que venceu todas as coisas que estavam contra você. – respondo e ele sorri, concordando com a cabeça e enfiando a mão no bolso.
– Meus pais pediram pra eu te entregar isso. – ele estica a mão e eu observo uma caixinha, quando pego e abro, vejo que se tratava de um anel. – É o anel de formatura do ensino médio do seu irmão. – encaro Erick.
– Sua mãe guardou? – pergunto. Os pais de Erick tinham joalherias famosas em Milwaukee.
– É, sua mãe pediu pra ela jogar fora, porque ficou pronto atrasado e ele tinha ido pra fora... quando voltou, tudo aquilo aconteceu e enfim... minha mãe devolveu o dinheiro, mas ficou com a peça. Ela acha que merece esse anel, pra sempre ter um pouco do seu irmão consigo. – é o que ele fala e meus olhos se enchem. Confirmo com a cabeça, abraçando Erick. – Jensen criou um homem magnífico. – é o que diz e eu o solto, concordando com a cabeça.
– Dorian também. – respondo. – Eu sei que... você me adotou, porque viu potencial em mim, mas ficou ao meu lado, quando meu irmão faleceu, porque se viu em mim.
– A pior coisa que um ser humano pode receber é pena. – ele completa. – Ver todas aquelas pessoas desconsiderando sua personalidade, inteligência e vontades por causa do luto foi de matar. Precisava de alguém que te tratasse de forma normal, se não nunca iria melhorar.
– É, você foi crucial pra mim, amigo, obrigado. – digo e ele confirma com a cabeça.
– Jamais trairia você, independente de você saber ou não sobre o HIV. – ele comenta.
– Eu sei. Nosso pacto de amizade é mais forte que isso. – respondo e ele confirma com a cabeça, olhando pra frente em seguida.
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