Esclarecimentos

– Que bom que veio! – Lúcio comenta, assim que entro na delegacia. Mais cedo ele tinha me ligado, avisando que meu irmão tinha deixado algo pra mim. 

Estava conflituoso, de certa forma. Depois de todo esse tempo buscando respostas, a possibilidade de tê-las me deixava mais abatido do que eu esperava. Pra algumas pessoas a vida é composta pela ânsia de ter e o tédio de possuir. A minha, naquele momento, era composta pela ânsia de ser respondido e o medo da resposta que receberia. 

– Fiquei na dúvida, mas o Felix me convenceu a vir. – digo a ele, que me observa, depois dar uma breve olhada para o chão.

– Como ele está? Daqui a pouco vou lá, só preciso assinar alguns documentos sobre o Yohan. – dou de ombros, pensativo. 

– Bem. Inclusive, acho que se estiver preparado, é o momento pra terem aquela conversa que a gente tanto falou. Se eu fosse o senhor, não perderia a oportunidade de colocar tudo em pratos limpos, entende? Sonhou com essa oportunidade, agora que ele está melhor, certamente é o momento. – digo e ele concorda com a cabeça, olhando em meus olhos por alguns segundos. 

– Claro. Você tem razão. – ele pega um envelope, estendendo a mão pra mim, com ele na ponta dos dedos. – E isso aqui te pertence. Precisamos de uma cópia, porque seu irmão relata coisas bem importantes, mas toda a equipe concordou que a original deve ser sua. 

– Obrigado por isso. Passei esse tempo com um silêncio desconfortável, buscando as palavras dele, mas agora que sei que ele tinha sim o que me dizer... fico engasgado. – digo, observando o envelope, mas pego, depois de alguns segundos de indecisão. 

– Seu irmão te amava com a mesma força que você o ama. E eu acho que precisa entender muitas coisas que viveram. – é o que ele diz e eu concordo com a cabeça. – Enfim, vou lá, tenho coisas pra resolver e preciso ir conversar com o Felix. 

– Como tem se sentido sobre o Yohan? – pergunto e ele respira fundo. 

– Aliviado que tudo isso acabou. – é o que ele diz e eu concordo com a cabeça.

– Posso saber se realmente pegaram todo mundo? 

– Bem, pegamos umas 40 pessoas de uma vez, se sobrou alguém, certamente está preocupado e vai fazer de tudo pra correr antes que a gente consiga alcançá-lo. – ele conta e isso me deixa ainda mais curioso. 

– Como? – ele pensa um pouco, como se medisse se deveria ou não me contar. 

– Yohan se esqueceu que por mais que ele tivesse passado a deixar o celular em casa, todas as rotas que ele já tinha feito, ficaram gravadas. – felizmente ele decide me contar, porque eu estava focado nessa investigação, mesmo que ela já estivesse em posse da polícia. – Ele era esperto, me dizia que ia viajar com a família de uma amiga ou outra, mas no final das contas triangulamos todos os lugares que ele já pisou e fizemos uma investigação conjunta com outros estados. Não posso dar mais detalhes, mas no geral foi isso. 

– Incrível. – concluo e Lúcio sorri. 

– Não, incrível foi o que um adolescente fez com outros adolescentes e jovens. Vocês foram cruciais, cada peça que conseguiram nos ajudou a compreender a grandeza de tudo isso. Mais uma vez, obrigado. – ele sorri. – Inclusive, Felix provavelmente será absolvido. 

– O que? – pergunto. 

– É, foram identificados erros na condução do caso dele. Erros que fizeram com que o Paul saísse como um "homem inocente". Eles deveriam ter investigado as tatuagens dele, entre outras coisas. – sorrio. Essa era uma ótima notícia. – Enfim, vou indo. 

– Até mais. – digo e ele acena, saindo da delegacia em seguida.

Fiquei parado no meio da delegacia segurando aquele envelope, congelado por alguns segundos, até perceber como estava e andar até minha moto. Sentado nela, já do lado de fora, fiquei encarando mais uma vez aquele envelope. No final das contas fui pra casa e quando cheguei no meu quarto fiquei da mesma forma, sentado na minha cama, encarando o envelope fechado. 

Acredito que demoraram por volta de 50 minutos até que eu tirasse a folha de dentro do envelope e só de ver a letra de Jensen, já comecei a chorar. Geralmente ele não escrevia muito a mão, porque achava sua letra feia – eu achava ela perfeita. Desci, tomei uma água e percebi que Anista estava lendo o Coraline que eu tinha lhe dado de presente, concentrada. Me aproximei e dei um beijo em sua cabeça, procurando algum afago. Ela logo percebe e me chama. Me sento ao seu lado e ela se aconchega em mim.  

– O que está fazendo? – ela pergunta. 

– Tomando coragem pra ler. – respondo e ela sorri, sem entender. 

– Já foi melhor. – ela brinca. – Palavras confortam, não precisa de coragem pra ser confortado. Precisa aceitar que necessita de conforto. 

Fico pensativo, por alguns segundos. Eu realmente precisava, agora, aceitar que necessitava de conforto. Anista, ao perceber que eu estava quase chorando, me abraçou com força. 

– Vou te dar mais alguns livros, estão te fazendo bem. – rimos, depois de algum tempo. – Então vou lá, me sinto pronto. – fico de pé.  

– Vai... e Tyler... – paro de andar, olhando-a. – Precisa permitir que a viagem aconteça, pra poder tirar os pés do chão e curtir o trajeto.

– Anotado. – respondo e ela sorri, voltando a ler.

Subo de volta até meu quarto e pego a carta. Respiro fundo antes de começar e depois desse último gole de coragem, começo:

"Acredito que não tem muito o que dizer, até porque se está lendo isso, eles me pegaram primeiro e a minha tentativa de ficar o mais longe possível de tudo isso não deu certo. Queria ter conseguido encaminhar toda a documentação, enquanto estava distante, pra não correr risco de vida, mas se aqui está você, quer dizer que antes que eu conseguisse pegar essa documentação, eles me deram um fim. Eu ia escrever essa carta e queimar, porque não tinha interesse em te expor isso, irmão, mas acredito que você merece saber muitas coisas que o Jensen vivo não teve coragem ou tempo pra contar. Bem, vamos lá... 

Pra você ter encontrado toda essa documentação, provavelmente teve que quebrar a cabeça um pouco e isso era proposital, mesmo que odeie quebra-cabeça e tenha destruído todos os meus LEGOS, por ficar estressado só de me ver montar. No final das contas isso era proposital, porque se encontrasse, eu mexeria com seus sentidos. 

Você é muito mais inteligente do que eu jamais serei. Tem um raciocínio mais avançado, uma capacidade investigativa aguçada e uma intuição afiadíssima. Eu sempre joguei, irmão, porque ao contrário de você, meu corpo sempre foi melhor que minha forma de lidar com o conhecimento. Você é obstinado, direto, cirúrgico... me dói escrever isso, por saber que se trata de uma despedida, mas fico feliz que esteja lendo, pois pelo menos terá uma. Bem, vamos lá.

Primeiro, certamente viu a documentação que está dentro dessa caixa, então preciso te apresentar os homens das fotos, caso ainda não tenha chegado nessa resposta – o que duvido um pouco. 

Um deles eu sei que você tem ideia quem é, o Bill. O Bill era nosso treinador na escola, eu nunca gostei de muitas pessoas tendo contato próximo a mim, embora fosse amigo de muitas e ele sabia disso. Sempre foi mais rígido comigo e mesmo com os boatos, não me importava muito o que ele fazia ou dizia... até o dia em que entrei no vestiário e o flagrei vendo fotos de algumas crianças que tinham ido com os pais assistir o jogo daquele dia. Uma das crianças era você.

Naquele dia eu não tive coragem de confrontá-lo, então minha tolerância a ele ficou menor ainda. Eu não queria que você chegasse perto ou pensasse que poderia ser amigo dele, porque não era uma realidade. Desisti de fazer faculdade nos Estados Unidos, porque desisti do futebol no meio do último ano. Por esse motivo foquei totalmente nas corridas, mesmo contra a vontade da mamãe, só de imaginar que você estaria, novamente, no mesmo lugar que esse verme meu sangue fervia – até porque ele tinha contatos no estado inteiro, e pelo o que vi, ele tinha decidido que queria você. Bill é um homem nojento que se não ficar esperto, os tentáculos dele te seguram e esgoelam, enquanto ele faz coisa pior com seu corpo – por esse motivo eu fiz o papai me garantir que não te colocaria na mesma escola, não sei se ele cumpriu a promessa, mas espero que sim.

Inclusive, irmão, me desculpa por ter gritado com você. Eu te amo e sei que não tem nenhuma ligação, apenas sou humano e realmente senti um ódio indescritível quando o vi próximo a você. Esse foi o ódio que me fez começar a seguir Bill por todos os lugares e fotografá-lo sempre que possível. O vi com diversas pessoas que sinceramente não sei qual a ligação, mas também o vi com muita droga, como se estivesse redistribuindo mercadoria. Acredito que ele seja uma espécie de cúmplice, principalmente nisso. 

O outro homem que mais aparece nas fotografias, se chama Paul. Ele já foi preso algumas vezes, até onde eu sei. O segui por um tempo, o fotografei com muitas pessoas, incluindo o menino que está nas fotos. Parece uma criança, não sei qual a ligação dele nisso tudo, mas é assustador. Cheguei até mesmo a conversar com esse Paul em um dos bares de NY. Durante nosso assunto, ele comentou sobre gostar de meninos novinhos e perguntou se eu gostava do mesmo. Meu sangue ferveu, quase esmaguei a cabeça dele no balcão. A partir daí, entendi que eles provavelmente estavam envolvidos não só com um esquema de drogas e sim de pornografia infantil e tráfico humano, quem sabe. Colei alguns dos rostos das pessoas que mais fotografei, no verso dessa carta.  [...]"

Quando viro, vejo algumas fotos coladas. Na realidade, Jensen tinha colado apenas os rostos, com um recorte bem mal feito – ele não tinha mesmo talento manual. Ali tinham rostos diferentes dos que eu já reconhecia com a minha investigação, já que eu não vi todas as fotos que estavam na caixa, mas mais um me chamou atenção: o de Yohan. Certamente mais novo, mas com certeza era ele. Não conseguia imaginar o choque de Lúcio, quando viu a foto do filho no meio de várias de homens envolvidos com as coisas mais erradas que um ser humano pode fazer. 

Como só estavam os rostos, não tinha dimensão com quem ele tinha se encontrado nas fotos que foi flagrado, mas até onde sei ele era bem próximo de Paul. Não imaginava que meu irmão tinha ido até o Bronx para investigar tudo isso, quem dirá que ele tinha todo esse acervo documental. Imagina se ele tivesse talento pra investigação. Virei a folha novamente, voltando a ler:

"[...] Quando Bill descobriu que eu estava atrás dele, me ameaçou de morte. Eu já tinha me formado, estava prestes a sair do país quando tudo isso aconteceu. Iria encaminhar tudo pra polícia, quando a poeira abaixasse, mas não confio em ninguém pra resgatar esses documentos. É por isso que escrevo isso aqui no avião. Quando chegar, pretendo colocar essa carta na caixa e ir passar a tarde no parque, antes de tudo simplesmente explodir no meu colo. Se está lendo isso, não tive a oportunidade de voltar, eles deram um jeito de tornar a minha ida ao parque, a última. Espero que, pelo menos, as coisas que documentei tenham tido alguma serventia, irmão. Pra terminar, acredito que preciso te dizer que você é e sempre vai ser a pessoa mais importante da minha vida. 

Me lembro quando eu implorava pros nossos pais um irmão e você chegou. Foi o neném mais lindo que vi na vida, jamais vou esquecer a primeira vez que sorriu pra mim. Você é meu passado, meu presente e meu futuro, irmão. Te levo em meu coração, memória e alma. Acredito que entende quando digo que sempre te vi como minha alma gêmea, como se eu respirasse por você, vivesse pra te ver. A pior parte de me mudar, com certeza foi ficar sem você.

Nossas risadas, implicâncias e choros marcaram o meu peito como uma cicatriz vívida, que eu existia para mantê-la em mim. Se está lendo isso, não poderei te dizer isso em vida mais uma vez, mas eu te amo, Tyler, como jamais amarei outro alguém, nem mesmo nossos pais ou Anista e se eu te perdesse, provavelmente viveria em um looping vazio de sentimentos pelo resto da vida. Esse desespero me fez começar minha investigação, mas se eu soubesse que nunca mais te veria por causa disso, certamente apenas teria denunciado Bill e pronto. O efeito colateral da minha escolha foi maior do que eu esperava e espero que me perdoe por te deixar sozinho. 

Ria, corra, viva tudo que não pude viver, ame, ande muito de moto e me leve vivo em sua memória, porque certamente te levarei em minha existência. Agradeço pela vida ter me dado a oportunidade de te ter comigo, mas fico inevitavelmente chateado por não ter vivido tudo que gostaria ao seu lado, meu irmão. 

Eu te amei antes de ter te conhecido, amei após vê-lo pela primeira vez, amei na última vez que te vi e meu amor demarcará as estrelas pelas quais irei passar. Até algum dia, feijãozinho, Jensen."

Nunca chorei tanto em toda a minha vida. Pra mim o meu amor pelo meu irmão era cortante, mas apenas pra mim. Ao ler a carta, no entanto, entendi que era completamente recíproco e eu sofria tanto, justamente porque ele me amava na mesma intensidade, de volta. Éramos parceiros pra absolutamente tudo e mesmo quando ele já estava na Inglaterra, conversávamos todos os dias. A falta dele demarcava meu peito, como o amor dele por mim demarcava as estrelas onde descansava.

Meu irmão me ajudou na escola e vida pessoal. Tudo que aprendi veio dele e perdê-lo foi a dor mais aguda que meu coração teve a infelicidade de sentir. Agora eu entendia que pra ele a sensação era a mesma – talvez um pouco pior, porque ele sabia o que estava vindo e não teve uma rede de apoio para pedir ajuda – e, embora fosse dolorido, pelo menos eu tinha respostas. 

Eu fui o marco 0 pra Jensen, assim como Felix foi o marco 0 para Yohan. A diferença é o sentido da coisa. Meu irmão começou pra me proteger e Yohan, para destruir o próprio irmão. Era bizarro pra mim ver os paralelos do que tinha acontecido, ter uma visão tão esclarecida das ações e consequências de nossas vidas. 

A memória de Jensen gritando comigo, por causa de Bill... me marcava tanto, no final das contas, porque tinha sido o ponto de início de uma espiral de momentos que não pude controlar ou sequer ajudar. 

– Filho... – minha mãe entra em meu quarto e quando eu a observo, ela vem até mim, abrindo os braços. 

Mostrei a carta aos meus pais. Meu pai se culpou, por ter quebrado a promessa que fez e minha mãe... bem, eu entendia como ela se sentia. Ela sempre brigava e discutia com Jensen, por ele fazer o que queria da própria vida, pra ela, gastou mais tempo batendo de frente com ele do que curtindo o próprio filho e agora não conseguia carregar o fardo. 

Meu olhar sobre a relação dela com ele, fazia com que eu tivesse uma visão privilegiada de Lúcio com Felix – e é por esse motivo que eu insistia que eles deveriam se resolver. A morte é implacável, inesperada e cruel. Quanto menos arrependimentos tiver em seu peito, menos pesada é a passagem. 

Eles se perguntaram, de primeira, o motivo pelo qual meu irmão não tinha deixado nada pra eles, mas essa resposta é um tanto quanto intuitiva. Por qual motivo ele deixaria? Ele deixou a única carta de despedida, pra única pessoa que seria capaz de encontrá-la e essa era a cara dele de lidar com as coisas. 

– Davis... – meu pai observa minha mãe. – Eu quero me separar. – é tudo que ela diz, indo para seu quarto. 

Fiquei na sala com meu pai por mais um tempo. Ele não retrucou, não disse nada. Sabíamos que esse seria o fim, desde que meu pai começou a se relacionar com outra mulher. Bem, acredito que a carta do meu irmão tinha dado, de alguma forma, coragem pra minha mãe tomar as rédeas da própria vida. 

Quando meu pai me entregou a carta novamente, fui para o meu quarto e ali fiquei, até minha irmã vir e pedir pra dormir comigo aquela noite. Aceitei, não demorou muito tempo até que apagássemos. 

Fui solicitado na delegacia no dia seguinte, pra responder algumas perguntas. Quando terminei, vi Lisandra sentada nos bancos, esperando sua vez. Antes dela, uma moça foi chamada, então me sentei ao seu lado. 

– Que merda, hein. – é o que falo e ela dá de ombros. 

– Nem na minha maior viagem chapada eu imaginaria o tamanho do problema que estava envolvida. – é o que ela responde. 

– Sabia que ele tinha alguma coisa estranha? – pergunto. 

– Claro, mas é aquilo... traficando, talvez. Yohan sempre foi um ratinho comigo, até quando estávamos ficando. Eu comandava, eu tinha iniciativa, eu demonstrava que queria ou não. – ela conta. 

– Mesmo se ele estivesse apenas traficando, não teria problema pra você? – pergunto.

– Qual é, Tyler, no nosso meio você sabe que as pessoas não são muito verdadeiras. Se ele fazia isso pra sobreviver, eu não seria a pessoa que ia julgar. Eu não tinha ideia do monstro que dormia do meu lado. Cheguei a cogitar que quando ele sumia, sumia pra ir ficar com meninas de outra cidade, quem sabe, pra ninguém daqui saber. – ela conta, pensativa. – Se eu soubesse que ele era essa coisa... eu...

Ficamos conversando por mais um tempo. Lisandra abriu meus olhos pra muitas coisas que eu ainda não tinha percebido e foi sincera o suficiente em seu tom de tristeza e indignação, para que eu acreditasse nela. Era impressionante como Yohan tinha usado sua imagem e jeito ao seu favor – e assustador também. 

Toda essa história certamente me faria nunca mais subestimar ou concluir algo sobre alguém, apenas com base em achismo. 

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