Conexão
Quando acordei, percebi que meus pensamentos estavam meio lentos. Minha mãe, meu pai e Lúcio estavam ali, diante da minha cama. Eles conversavam com os médicos sobre algo que eu sinceramente não consegui sintonizar muito bem.
As informações estavam embaralhadas, como se minha mente e meus olhos não estivessem na mesma página. Tudo mais parecia um sonho sem graça que a realidade. Apertei meus olhos com as palmas das mãos por cerca de 5 segundos, antes de sintonizar e depois de terminar, me apoiei no colchão.
– Querido? – minha mãe me chama. Mesmo ainda grogue, eu pulo da cama e paro diante de Lúcio.
– Onde ele está? – pergunto, com medo que a resposta seja igual a do meu pai, quando perguntei sobre Jensen.
– Quarto 107, andar abaixo desse. – ele responde eu saio correndo.
– Tyler... – meu pai tenta me chamar, mas eu não paro até encontrar o quarto.
Desequilíbrio, confusão mental e uma dor de cabeça aguda me acompanharam durante todo o trajeto, mas nada foi tão desconfortável como vê-lo naquela situação. Encostei minha mão no vidro diante de mim, encarando Felix. Ele estava com um tubo na boca, imóvel. Foi um soco no estômago vê-lo daquela forma. Estava com a cabeça e braços enfaixados, respirando com a ajuda daquela coisa.
– Ainda está no horário de visitas, rapaz, já pode visitá-lo. – o médico diz, saindo do quarto.
– Não consigo. – é o que respondo.
A sensação que eu tinha, era como se fosse o diabo tentando entrar dentro de uma igreja. Meu corpo repelia a ideia de pisar dentro daquele quarto, não queria aceitar o que estava diante dos meus olhos.
– É seu amigo? – o médico pergunta e eu o observo, sem piscar.
– Não, eu ia pedir ele em namoro hoje. – respondo, olhando em seus olhos, que parece perder as palavras.
– Sinta-se a vontade. – é tudo que ele diz, saindo dali.
Observo Felix naquela cama por um tempo, paralisado. Meu irmão teria ficado assim, se não tivesse morrido de forma mortífera naquele acidente? Eu teria tido chance de vê-lo uma última vez se estivesse correndo com ele? Ou estaria na mesma situação?
Mais do que isso, estar nessa situação é melhor ou pior que falecer de uma vez? Será que ele ficaria daquela forma o restante da vida? Eu nunca mais poderia beijá-lo ou ouvir sua voz? Foi isso? Mesmo com todo amor, carinho, acolhimento e vontade de viver esse momento com ele, tudo acabou, como acabou pro meu irmão? Felix nunca teve a chance de ser feliz e agora que tinha essa oportunidade, perdeu?
– Posso te pedir uma coisa? – Lúcio pergunta, se aproximando devagar, enquanto eu encaro Felix e eu concordo com a cabeça. – Quando sentir o mínimo ânimo, pode arrumar o quarto dele? Sempre fui covarde nessa parte e acho que ele ia querer que fosse feito. Sempre foi muito organizado, mas hoje ele parecia estar com pressa. – concordo novamente com a cabeça.
– O que os médicos disseram? – pergunto, olhando rapidamente pra ele e voltando a observar Felix.
– Que poderia ter sido pior, se o capacete dele não fosse muito bom. – o capacete do Felix era um AGV Pista GP RR Ghiaccio. Isso não deve importar muito, mas era realmente um belo e seguro capacete. – Mesmo assim, ele ainda chegou a ter trauma na cabeça, fora o restante do corpo, por isso precisa de ventilação mecânica.
– Será que ele vai ter alguma sequela?
– Torço para que não. Eu nunca... – ele parece se engasgar e eu o abraço. – Eu nunca dei uma oportunidade pra que a gente se conhecesse. – Lúcio começa a chorar e eu choro com ele. Choramos por cerca de 30 minutos seguidos, abraçados.
Mesmo que a nossa motivação fosse diferente, o sentimento era o mesmo: frustração. Lúcio vinha de uma fase muito boa com Felix, onde os dois tinham aberto seus corações e agora tudo isso estava pausado, quem sabe por quanto tempo. E eu, bem... pela primeira vez na vida posso dizer que meu coração bate por alguém e estava na mesma situação. Meu verdadeiro coração estava naquela cama, imóvel e eu não tinha ideia de quando iria ouvi-lo novamente.
Por incrível que pareça, esse momento provavelmente foi decisivo, para que eu tivesse força para aguentar todos os que vieram depois dele – meu pai fala que nada motiva mais um homem que o ódio. Os olhares de pena na escola, ter que fingir me importar com a matéria ou com os testes escolares, pisar naquela quadra sem Felix comigo e depois disso ir até o hospital, vê-lo naquela situação... isso tudo começou a fazer minha mente borbulhar.
A escola fez uma oração coletiva, como forma de demonstrar que se importava. Não fui, não ia aguentar olhar pra cara daquelas pessoas que até pouco tempo atrás falavam coisas absurdas dele. Dos meus "amigos" o único que conversava comigo era o Erick, mas eu não sabia o quanto disso era preocupação ou apenas manutenção de convivência.
Acontece que no final das contas, depois da nossa conversa e de saber o que tinha acontecido com Felix, ele conversou com seus pais sobre o que tinha acontecido entre ele e uma professora quase 2 anos atrás – sim, a tal mulher que o contaminou era uma professora. Agora ele vinha frequentando o hospital pra tratar sua carga viral e estava em um grupo de apoio a viciados, além de tratar outros problemas com acompanhamento médico e medicação. No geral ele disse que antes de se internar, queria tentar sozinho.
Na escola, pelas minhas costas – e às vezes na minha frente mesmo –, as pessoas falavam que o que tinha acontecido com Felix foi o "karma", pelo o que ele fez com o cara em NY. Todas as vezes que eu ouvia esse tipo de coisa, corria pro banheiro pra vomitar. Era um inferno fechar meus olhos e imaginá-lo naquela situação, mas pras outras pessoas parecia ser, até mesmo, divertido.
Elas gostavam de saber que ele estava sofrendo e mais do que isso: que eu também estava sofrendo. Zach parou de me infernizar por mensagens – até porque ele ainda estava se recuperando da surra que levou –, mas como ele mesmo disse, eu já tinha o que merecia. Ele realmente achava que Felix estar em um hospital lutando pela vida era o mesmo que Beth ter se distanciado dele por ter sido covarde.
Depois da segunda semana de internação, fui até a casa de Felix, fazer a faxina que seu pai tinha me pedido no dia do acidente. Bem, ninguém espera sair de casa e não voltar mais. Tudo estava de cabeça para baixo, por isso comecei a organizar sua cama, separar as roupas limpas das sujas, dobrar e guardá-las. Depois disso, organizei sua escrivaninha e por último comecei a olhar os bolsos de suas calças, pra garantir que não tinha nada de importante antes de colocá-las para lavar. De uma delas, no entanto, caiu um papel.
Era uma reserva de um storage. Aqui é muito comum as pessoas alugarem um storage, que é como se fosse um quartinho apenas pra guardar bugigangas e coisas antigas, que não quer deixar acumulando em casa. De primeira, pensei em entregar esse endereço para Lúcio, mas quando percebi que estava no nome de Yohan, tudo mudou.
Isso, porque geralmente as pessoas que alugam storage, alugam pra família e lá guardam bicicletas antigas, móveis ou eletrodomésticos que precisam levar pra outros lugares, até mesmo móveis de mudanças que não cabem nas casas atuais... não era muito comum uma pessoa sozinha, ainda mais menor de idade, alugar um storage pra si. O que o Yohan guardaria em um lugar desses? Suas atividades de colorir do ensino fundamental? Guardei esse documento da reserva no bolso e terminei minha faxina, com a ajuda de Lúcio no final, pra colocar as roupas de cama novas e levar todas as outras para lavar.
– Como foi? – ele pergunta, depois de terminarmos. Estávamos na cozinha.
– Acho que ele esperava voltar logo. – é o que respondo.
– Eu também espero que ele volte logo. Ou que pelo menos volte – ele toma uma cerveja. – Quer jantar aqui? – claramente Lúcio precisava disso.
– Por onde anda o Yohan? – pergunto.
– Desde o acidente ele não para em casa. Deve estar em choque pelo irmão, não quer assimilar e encarar a situação. Provavelmente pra ele é doloroso ver o quarto e não ter o Felix aqui, né? – pergunta e eu, por alguns segundos, não sei o que responder.
– Claro. – é tudo que respondo. – Fico sim, janto com o senhor.
– Ótimo.
Ele termina de fazer nosso jantar. Depois disso, começamos a comer e era perceptível o quanto Lúcio estava abatido. Não lembrava em nada o homem que tinha conversado comigo outro dia.
– Se me permite, senhor... – começo a falar e ele me observa.
– Claro.
– Quando o Felix acordar, converse com ele. – sugiro.
– Acha mesmo que ele vai acordar, Tyler? Ultimamente tenho engatado alguns plantões pra não pensar nisso. Quando venho em casa, só quero beber até apagar pra não ter que ponderar muito bem a situação. – ele comenta. Era um homem solitário. Claramente ainda amava a ex esposa morta e se culpava pelas suas escolhas erradas.
Quando conheci Lúcio, tinha uma ponta de raiva ainda, pelas coisas que fez, mas agora eu sentia compaixão. Ele era humano, errou muito antes de tirar a venda do rosto e enxergar a realidade, mas pelo menos tinha feito. Quantas pessoas eu conhecia e amava, que não tinham se esforçado por isso até hoje?
– Com certeza, não faz o estilo dele sair de cena assim. – rimos juntos. Aquele era, sem dúvida, um dos momentos mais melancólicos que eu tive na minha existência. – Eu acho que... vocês dois se machucaram demais, sabe? – ele concorda com a cabeça.
– Eu o machuquei mais, sem dúvida. O abandonei, humilhei e depois fiquei com meu ego ferido por ele não me respeitar como pai. Achava que ele precisava de mais pulso firme, quando a verdade é que ele precisava de amor. – constata. Aquele homem não precisava de alguém intensificando seus erros.
– Não é tarde pra voltar atrás. O que eu posso te afirmar é que ele também sabe que fez coisas erradas. O Felix nunca escondeu quem é, ou as coisas que fez. – respondo.
– Sabe de toda a história sobre a passagem? Porque sobre a passagem, tenho certeza que sabe.
– Sei, ele me disse. Parece durão, mas tem suas limitações, como todo ser humano. – digo e ele fica pensativo por alguns segundos.
– Meu pai... – ele solta um pequeno pigarro, antes de continuar falando. – O homem que criou o Felix, era o homem mais infeliz que eu já conheci na minha vida. Quando o Felix nasceu, ele disse que mesmo eu o abominando, ainda tinha dado continuidade ao gene dele. Quando o Felix voltou pra casa, traumatizado, eu enxergava meu pai nele e ele em mim. A gente se repeliu por 5 anos até a situação se tornar insustentável. Quando levantei a mão pra minha esposa, eu soube que meu pai estava certo, de certa forma. Além de ser um péssimo pai, agora eu batia na minha mulher? Pra alguém que abominava o pai, eu estava mais parecido com ele do que gostaria.
– Por isso se separou? – ele concorda com a cabeça.
– É, não esperava que o Yohan fosse ficar do meu lado, ele amava NY. A forma como veio, parecia que ele estava fugindo dos demônios dele, como eu. Mas que demônios um menino de 13 anos poderia ter? Inocente daquele jeito, então... – ele pergunta e eu fico pensativo.
– É... o que eu sei é que o Felix se culpa pela sua separação. E, depois, pela morte da mãe. Acho que ele nunca deixou de precisar do pai. – digo, terminando de comer e Lúcio me observa, voltando a comer em seguida, sem dizer nada.
Era estranho eu me sentir mais próximo de Lúcio do que de qualquer pessoa da minha família. A presença dele não me causava nenhum sentimento negativo e em alguns momentos eu até mesmo me sentia desconfortável por isso – mas sabia que provavelmente esse sentimento era causado pelo conhecimento que eu tinha sobre seus erros do passado. Não tem como saber dos erros de alguém contra uma pessoa que você gosta e ficar totalmente imparcial, ainda mais convivendo diariamente com os traumas que isso gerou.
– Aqui. – ele me entrega o celular de Felix. – Você provavelmente tem mais senha do que eu, depois entra, vê se algum colega de NY mandou mensagem. Se tiver mandado, pode avisar que ele se acidentou, mas está se recuperando e quando estiver melhor, ele dá notícias.
– Sim, senhor. – confirmo com a cabeça.
– Vou tomar banho, tenho plantão. Amanhã de manhã passo no hospital e te atualizo.
– Obrigado, vou pra casa.
– Muito cuidado. – ele pede e eu concordo com a cabeça.
– Tudo bem. – respondo, dando um abraço rápido nele e saindo em seguida.
Fui pra casa e lá jantei novamente com a minha família. Desde o que aconteceu, não tinha conversado muito com eles, mas minha irmã tinha passado a dormir recorrentemente comigo. Não me importava com isso, acredito que pra ela, saber o que aconteceu com o Felix fazia despertar memórias que ela acreditava não ser tão ligada mais.
Naquela madrugada eu fiquei parado, olhando pro telefone de Felix, me perguntando o motivo pelo qual ele tinha deixado em casa e me lembrei que ele tinha comentado sobre ter dois. Como esse era rastreado, ele deixava em casa quando ia seguir Yohan, porque todos da família deles tinham acesso aos passos uns dos outros – era dessa forma que ele encontrava o irmão quando estava em alguma enrascada.
– Filho? – meu pai entra no meu quarto, depois de dar dois toques na porta.
– Oi. – respondo, guardando o telefone.
– Acha que o que aconteceu com o Felix tem ligação com o que o Zach estava fazendo com você? Acredita ser o próximo?
– Pai...
– Por favor, se tiver, me deixa te ajudar. – seus olhos se enchem. – Eu sei que sou ausente, mas você pode contar comigo tanto quanto eu sei que conta com o Lúcio.
– Não, pai. – respondo. – Lúcio acha que ele desequilibrou.
– Não me interessa. Aquele parece ser um ótimo homem, mas não me interessa. Quando seu irmão morreu, você também não aceitou a explicação sobre a shimada. – ele rebate, se aproximando.
– Pai, meu irmão pilotava há mais de 15 anos quando morreu. O senhor mesmo me disse que a primeira motinha que ele ganhou, ele tinha quase 5 anos de idade. Acha que um guidão tremendo o jogaria pra cima de um caminhão? – pergunto de volta, me levantando e olhando nos olhos dele.
– E agora, acha o mesmo?
– Agora eu vou descobrir o que aconteceu. Custe o que custar. Felix mantinha direção defensiva acima de tudo, ele ama aquela moto, ele não ia fazer nada pra perder o sonho dele ou perder membros do corpo e nunca mais poder pilotar. Meu irmão era alegre, tinha planos, queria ter uma família, não estava namorando com ninguém, nem sofrendo por ninguém, ele não ia pilotar daquela forma. Ele não ia perder o controle da moto que gastou 6 anos da vida fazendo alterações. – me aproximo mais dele. – Amor por moto, só motociclista entende. E eu sinto que de alguma forma tudo está interligado.
– O que precisar, pode contar comigo. – é tudo que ele diz e eu concordo com a cabeça.
Quando meu irmão morreu ele já tinha saído de casa. Pra Anista era como um primo, que ela conviveu na primeira infância e o via esporadicamente. Pra mim, era o cara que eu me espelhei a vida inteira e nunca engoli o que aconteceu. Em especial, porque desde a época dele algo estranho já estava acontecendo nas ruas de Milwaukee.
Dormi e no dia seguinte tomei café com os meus pais, saindo, dizendo que ia pra escola em seguida. Falei pra Anista que ia pro hospital, por estar sentindo que deveria estar lá e pedi pra ela me cobrir, caso alguém perguntasse. Ela aceitou e eu peguei minha moto, indo até o storage que tinha indicado no papel que encontrei.
– Que pena que seu namorado perdeu a chave, mas a sorte de vocês é que temos reservas de todos. Quando as pessoas param de pagar, eles entram pra venda. – a moça do atendimento explica, enquanto andamos. Foi fácil convencê-la que Yohan era meu namorado, já que eu tinha algumas fotos com ele. – Caso tenha interesse, mês que vem vamos vender mais de 20.
– Vou conversar com ele, vai que acha útil pra gente expandir e quem sabe achar algumas raridades. – a moça sorri, me levando até o local. Quando chegamos, eu abro e ela se despede.
De uma forma curiosa, as pessoas ficavam constrangidas em se meter em assuntos pessoais de gays. Era fácil, dessa forma, usar isso pra conseguir acessar alguns lugares sem muitas perguntas. Depois que ela viu nossas fotos já se deu por satisfeita sobre a minha história. Quando entrei, o que mais me chamou atenção foi a quantidade de dinheiro em espécie e documentos.
– Que porra é essa... – expresso. Isso iria demorar mais do que eu esperava.
Passei a tarde inteira ali e o máximo que descobri foi sobre a compra de alguns itens químicos. Pra mim parecia uma espécie de importação de itens aleatórios, não fazia muito sentido. Peguei meu celular e tirei foto do que consegui, pois já estava ficando tarde e o que achei que pudesse ser importante enfiei na minha bolsa. Também encontrei uma pasta, parecia ser um arquivo da polícia, então guardei.
Eu voltaria ali mais vezes, sem dúvida, mas agora tinha outras coisas para resolver, por isso fui embora antes do horário escolar acabar. Minha mochila estava pesada, por isso passei em casa pra deixar os documentos e depois disso fui buscar minha irmã. Tinha contado pra ela meu novo projeto pessoal e ela me implorou pra fazer parte.
– Vai dar trabalho pra arrumar. A queda foi feia, muitas carenagens quebradas, partes estouradas. É bom você ter uma grana guardada pra isso. – Mike, o cara que me ajudou com as modificações da minha moto fala, enquanto olhamos a CBR de Felix. Estávamos ele, Anista e eu na oficina dele.
– Acha que 300 mil paga? – pergunto, olhando pra ele, que sorri. Quando percebe que eu não sorrio, Mike fica pensativo.
Eu não era idiota, passei a rasgar os cheques que meu pai me dava depois de criar um bom pé de meia – já que em absolutamente todas as datas comemorativas ele me dava um. Agora aparentemente eu tinha muitas atividades pra me dedicar, além de me tornar bom no basquete.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top