Capítulo 8: O Acidente.


As pálpebras mantinham-se pesadas. Um enjoo subia pelo esôfago, associado ao intenso tremor que se alastrava pelo corpo suado de Marine, a qual logo percebeu estar de cabeça para baixo, presa ao cinto de segurança. Apoiou as mãos no teto do carro e olhou para a amiga inconsciente ao seu lado. Parte do corpo de Susan estava fora do carro, não estava usando o cinto, havia sangue pelo rosto e inúmeros hematomas e cortes pelo corpo. A garota tentou esticar o braço, porém sentiu uma fisgada. Seu braço também sangrava, além de um pequeno corte na sobrancelha esquerda.

— Susan... — Sua voz saiu como um gemido de dor, sua cabeça dava voltas enquanto tentava focalizar melhor a amiga. — Fala comigo. — Tentou desafivelar o cinto em vão.

As chamas alastravam-se próximas às rodas dianteiras. O cheiro de queimado e a fumaça fizeram com que Marine ficasse em estado de alerta e começasse a entrar em pânico.

— Susan! — bradou, olhando de um lado para o outro enquanto um filete de sangue descia pelo lábio superior, pingando no teto do veículo. Gritou desesperada.

O mesmo rapaz que deveria ter sido atropelado abaixou-se do lado de sua janela e focalizou em Marine com um semblante perdido.

— Você está bem? — averiguou preocupado, o rosto pálido.

Marine o olhou incrédula, através da janela, de cabeça para baixo. O impacto estilhaçou os vidros do carro.

— Não! — respondeu ofegante. — Me ajude!

As chamas tomaram conta da parte da frente do veículo, tornando a respiração difícil e aumentando a temperatura. Se as chamas chegassem ao tanque de combustível, o carro poderia explodir.

O desconhecido ficou de pé e cerrou os olhos azuis em direção ao céu, fez um singelo movimento com a mão direita em volta do peito e sussurrou palavras indecifráveis.

O vento soprou forte ao norte seguido por um estrondo elevado de trovão. O céu escureceu repentinamente e começou a chover.

Ele voltou a se abaixar e tocou com firmeza em uma das mãos de Marine.

— Calma — pediu com cautela.

A voz doce e hipnótica do rapaz pareceu fazer recuar suas emoções diante daquele momento apavorante. O misterioso jovem puxou um punhal do bolso de seu casaco e cortou o cinto de segurança que a mantinha presa ao carro.

— Eu seguro você, vem. — A apoiou com habilidade, impedindo que ela se machucasse ainda mais.

Marine o observava atentamente, algo nele atraía sua atenção, mesmo diante do caos em volta dela, porém sua cabeça latejava, o raciocínio mantinha-se nulo.

O fogo fora contido à medida que a chuva se tornava cada vez mais intensa.

— Cuidado — falou devagar, puxando-a pela janela.

— A minha amiga... — Marine tentou sair de seu agarre, virando-se para Susan.

— Assim que eu te tirar, vou ajudá-la também. — A puxou para fora do carro.

Ele ergueu Marine sem dificuldade e apoiou o corpo da jovem, segurando-a pela cintura. O movimento ligeiro revelou um amuleto no mesmo formato da pedra que fora deixada pelo Encapuzado na casa de Susan dias atrás.

Marine fixou os olhos do amuleto para ele, o qual logo percebeu que ela observava como se conhecesse a simbologia. Encostou-a no carro e guardou ligeiramente o objeto, circundando o carro. Agachou-se e tocou em Susan, vincando a testa.

— Ela está muito machucada — declarou ele, puxando-a devagar e com todo o cuidado.

Marine aproximou-se mancando, uma careta de dor cobrindo seu rosto.

O rapaz se afastou do automóvel, carregando Susan de forma cuidadosa, e a deitou no chão, avaliando seu ferimento da testa, uma vez que sangrava bastante e provavelmente era o motivo de tê-la deixado inconsciente.

— Isso não está bom. — Ele comprimiu o lábio inferior.

Aos poucos, a situação se normalizava em Marine. Ela e Susan haviam batido o carro, que capotara. Susan estava sangrando e desacordada. Sua mente parecia ter saído do estado de estupor causado pelo trauma do acidente.

— Fique aqui, eu vou pedir ajuda — a voz do jovem era tranquila, como se tivesse passado por aquela situação milhares de vezes, sua calma contrastava absurdamente com a situação.

Ele retirou um aparelho celular do bolso e caminhou para o centro da pista.

Marine agachou-se ao lado da amiga, cobrindo-a com seu casaco.

Após finalizar a ligação, regressou até elas. Tirou o casaco e também colocou sobre Susan.

Em silêncio, continuaram entreolhando-se minuciosamente. Uma conexão perigosa e aprazível a atraía para aquele ser que atravessara o carro de forma espectral. Jazia algo oculto e antigo naquele olhar, Marine teve a nítida sensação de já tê-lo visto antes do acidente, não sabia ao certo explicar onde, mas o rosto dele parecia familiar.

— Nós nos conhecemos? — averiguou Marine, franzindo o cenho.

— William Collins. — Estendeu a mão por cima de Susan, apresentando-se formalmente, apesar da situação nada convencional.

Marine dava o seu melhor para disfarçar que não o estava encarando fixamente.

— Marine Talbott. — O cumprimentou, ainda mirando nos olhos azuis dele.

— Não nos conhecemos — ele respondeu com um sorriso sardônico.

Marine quebrou a conexão, ficando constrangida.

A chuva começou a cessar vagarosamente, William voltou sua atenção para Susan.

— De onde você surgiu? — disparou, incapaz de conter a pergunta que queimava em sua garganta.

William ignorou e focou no estado da jovem desacordada.

— Ela realmente não está bem! — concluiu pesaroso.

— William Collins — repreendeu ela, exigindo a resposta. — De onde você surgiu?

Marine sentiu-se uma péssima amiga naquele momento. Susan estava estendida bem diante dela — sabe-se lá com quais ferimentos —, e aqui estava ela, precisando desesperadamente de respostas. Sequer chegara a Ennead e atropelara alguém que possuía um objeto parecido com aquele que ganharam de um bruxo que havia lhes prometido respostas, mas apenas não conseguia esperar.

— Atravessei a rua — respondeu de forma inocente.

Marine piscou, perguntando-se se ele havia realmente feito uma piada. Seus lábios tremiam pela exaustão emocional e frio, suas roupas molhadas não mantinham seu corpo aquecido.

— Perdoe-me... — Suspirou ele, culpa em sua expressão. — Talvez eu tenha sido o culpado pelo acidente. — Desviou o olhar, envergonhado.

Os olhos dela faiscaram.

— Atropelamos você! — foi enfática. — E eu não vejo nenhum ferimento aparente. — O analisou. — O que eu estou perguntando é: como isso aconteceu?

— Eu desviei! — contestou prontamente. — Fui rápido. — concluiu, erguendo as sobrancelhas.

— Não. — Prendeu seu olhar ao dele e o segurou pelo braço. — Você atravessou o carro. — Fitou de forma séria.

William esboçou um pequeno sorriso jocoso e a encarou com o semblante contestador.

— Olha... Você acabou de sofrer um acidente... — ponderou educado.

Marine bufou diante da desculpa clichê.

— Eu vi nitidamente — insistiu fechando o rosto.

William puxou o braço do agarre de Marine e ficou de pé, voltando a mirar no aparelho celular em uma tentativa de evitar o assunto.

— Você se desfragmentou. — Também ficou de pé, com os braços cruzados diante do peito para proteger-se do frio.

Alguém atendera do outro lado da linha.

— Por favor, estou na rodovia... — Ele afastou-se das jovens novamente, descrevendo onde estava e sua versão do que tinha acontecido.

Marine observava atentamente cada movimento do estranho, como se algo a entorpecesse de forma visceral. Os movimentos, o tom, o olhar, tudo a prendia a ele e ela sabia que aquilo não era normal. Tentou controlar-se, focando os pensamentos na cena que vira dentro do carro, monitorando Susan para garantir que ela respirava de forma estável.

— Já estão a caminho — declarou William, aproximando-se cautelosamente.

— Eu vi você se desfragmentando — afirmou Marine lentamente.

— Você precisa de um psiquiatra urgente, senhorita Talbott. Talvez o trauma do acidente tenha te afetado. Isso é normal — tentou desviar do assunto novamente, cerrando os olhos, censurando-a de forma silenciosa.

Estava prestes a pressionar novamente quando Susan começou a tossir violentamente, abriu os olhos devagar, gemendo de dor.

— Você está bem? Consegue me ouvir? — Marine abaixou-se, segurando a mão da amiga e esquecendo-se por completo da conversa com William. A preocupação era evidente em seu rosto.

Susan esforçava-se para falar, a confusão mental agravada pelas dores em todo o seu corpo. O corte em sua testa era profundo e o sangue descia pela sua têmpora direita.

— Aperte minha mão, estou aqui, vai ficar tudo bem — assegurou Marine.

— Está doendo muito — choramingou ela.

— Estou aqui, segure firme a minha mão e tente se manter acordada — Marine falava suavemente enquanto acariciava o cabelo da amiga.

Susan apenas fez um breve gesto com a cabeça e imediatamente se arrependeu, a careta aprofundando-se pela dor causada pelo movimento.

William contemplava a dedicação de Marine para com Susan em silêncio.

— Tente se manter acordada apenas, por favor — pediu devagar, inclinando-se para estar no campo de visão da amiga, de forma que ela pudesse se sentir mais segura.

O rapaz agachou-se e se posicionou diante de Susan, pressionando o ferimento, o sangue escorria rapidamente pelo rosto.

Susan gemeu mais alto, a dor era tamanha que não soube precisar qual parte do corpo doía mais. Sangue escorria pela boca, engasgando-a. William a virou de lado, fazendo com que o líquido escorresse para o chão.

Marine assustou-se com a quantidade de sangue que a amiga estava perdendo, sua respiração cada vez mais ofegante.

A sirene da ambulância ecoou pela estrada, William ficou de pé, sinalizando do acostamento, um veículo da guarda local também se aproximava.

Três pessoas do resgate fizeram o procedimento em Susan, imobilizando seu pescoço antes de estancar o sangue e colocá-la na maca. A jovem havia desmaiado novamente.

Marine olhava a amiga, aflita.

William explicou o ocorrido para dois guardas, enquanto um inspetor aproximou-se de Marine e começou a inquirir sobre o acidente, buscando por traços de embriaguez ou uso de drogas. Informaram que Marine também deveria ser encaminhada ao hospital, pois seu corte no braço ainda sangrava, assim como o do rosto e na sobrancelha esquerda, além de que deveriam averiguar se ela possuía ferimentos internos.

— Eu vejo você no hospital — afirmou William de forma suave. — Vou falar com o superintendente e tentar resolver o mais depressa possível.

— As nossas malas — lembrou Marine.

— Vou reunir tudo junto com os guardas, um amigo meu está a caminho e entrarei em contato com Claire Behan.

Marine ergueu as sobrancelhas rapidamente em alerta.

— Você a conhece? — perguntou chocada.

— Sim — falou sucintamente, desviando o olhar. — Agora vá.

Tocou em seu rosto de forma afetuosa.

— Obrigada — agradeceu sem jeito e ao mesmo tempo desconfiada.

— De nada. Não se preocupe, resolverei tudo — garantiu.

Marine caminhou para a ambulância enquanto William a observava de forma contida.

Havia algo estranhamente similar entre os dois, ele sabia disso.

Ele firmou o olhar sobre ela, como se pudesse ler seus pensamentos.

As portas do carro se fecharam, e a conexão encerrou.

Ao longe, entre as árvores, alguém olhava oculto por detrás dos galhos e repousou sua visão nas bagagens espalhadas.

*******

Havia um curativo estampado no braço e outro na testa de Marine, que caminhava aflita de um lado para o outro no corredor do hospital local, angustiada por notícias de Susan, que fora encaminhada para sala de cirurgia. As mãos continuavam trêmulas e o remédio que tomara deixou um gosto amargo em sua língua, além de uma ligeira tontura. Entretanto, nada a deixava mais oscilante que as imagens do rapaz se desfragmentando diante de seus olhos e o amuleto surgindo sob a camisa. Aquilo poderia estar diretamente ligado ao que acontecera em Dublin? Era uma dúvida associada à certeza.

Uma voz mansa a chamou, informando que Claire Behan encontrava-se na recepção. Agradeceu à enfermeira e dirigiu-se a passos curtos de forma relutante.

A porta dupla abriu-se, e a garota contemplou o ambiente à procura da senhora.

Claire mirou em Marine, que se aproximava devagar com os olhos abaixados, mantendo-se receosa.

— Olá, querida, você deve ser a amiga de minha neta, como você está? — Estendeu a mão cordialmente, claramente olhando-a dos pés à cabeça, avaliando seu estado físico em busca de ferimentos.

Claire era uma senhora elegante de meia-idade com cabelos grisalhos, sorriso avassalador e de uma cordialidade tocante. Seu olhar mesclava-se entre doçura e a rigidez que a situação exigia. Além de ter vigor em seu timbre e uma jovialidade palpável em sua face, o que fez Marine ficar surpresa. Esperava encontrar uma avó mais frágil e idosa.

— Acho que bem — respondeu receosa.

— Fez todos os exames, querida? Não há nada quebrado?

— Fiz, está tudo normal. — Sorriu um pouco aliviada pela preocupação da senhora.

— Machucou o braço, rosto...? — A tocou de forma gentil. — Está tudo bem mesmo? Você está tão pálida. — Franziu o cenho, como se aquilo fosse inacreditável.

A garota afirmou estar bem, enquanto Claire perguntou a respeito do acidente.

— A culpa foi inteiramente minha, senhora Behan — respondeu William, aproximando-se das duas.

— Olá, Collins. — Virou-se e cumprimentou o rapaz, vincando a testa. — Como o acidente pode ter sido sua culpa? — Claire investigou com um olhar estranho.

O jovem coçou o nariz um tanto nervoso, enquanto Marine não tirava os olhos dele.

— Atravessei a estrada distraidamente no exato momento em que elas passavam. — Mirou a jovem de forma condescendente. — Uma infeliz coincidência nos trouxe até aqui. Peço desculpas.

William observou Claire atentamente.

— Não foi sua culpa, rapaz — suavizou a senhora, olhando para a enfermeira que passava. — O próprio nome já relata tudo, acidente. — Foi concisa. — Irei atrás de informações sobre minha neta, já volto. — Tocou suavemente no ombro de Marine e seguiu pelo corredor.

Marine o olhou de maneira intimidadora.

— Você está bem? — William a observou atentamente, aparentando preocupação.

— Sim — respondeu olhando para cima, era provavelmente 20 centímetros mais alto. — É incrível como você não sofreu um único arranhão! — Sorriu de forma irônica, observando-o de cima a baixo.

— As malas e todos os objetos já foram encaminhados. — Mudou de assunto abruptamente.

— Obrigada... Por tudo. — Marine soltou a respiração presa e crispou os lábios sendo irônica.

— Posso ajudá-la em mais alguma coisa? — Olhou-a rapidamente.

— Sim, contando-me como atravessou o carro — disse com simplicidade.

William sorriu abertamente, colocando as mãos nos bolsos do casaco.

— Você já relatou isso a um psiquiatra? — fugiu novamente.

— Foi real. — Gesticulou, ignorando sua alfinetada. — Eu preciso saber o que aconteceu, talvez isso tenha alguma ligação com o que vim fazer aqui. — Mediu a reação dele.

William juntou as sobrancelhas, tentando esconder o interesse que aumentara em seus olhos.

— O que você veio fazer aqui? — questionou.

— Uma resposta por outra — desafiou, cruzando os braços teimosamente.

William forçou um sorriso, irritação agora evidente.

— Mas eu não tenho nada para lhe responder, garota. — Sua postura havia mudado, o sorriso gentil e a calma constante se foram.

— Tudo bem, eu vou descobrir. — Deu as costas e saiu em direção à senhora Claire.

William permaneceu parado, olhando-a se afastar sem saber como reagir, então resolveu segui-la.

— Creio que as minhas perguntas tenham maior relevância do que hipóteses patéticas de alguém se desfragmentando! — discorreu simpaticamente, embora suas palavras fossem ácidas.

Marine parou subitamente, girando. William esbarrou na garota.

— Você me chamou de patética? — foi enérgica, sentindo a raiva começar a ferver.

Marine perguntou-se que moral ele tinha para perguntar qualquer coisa para ela quando a única coisa que respondera até agora fora seu próprio nome.

— Desculpa! — disse erguendo as mãos em rendição. — Eu não quis te ofender. — Seu rosto corou furiosamente.

— Acho melhor encerrarmos por aqui. — Inverteu a situação enquanto o encarava com olhos cerrados.

— Por quê? — questionou William, receoso e constrangido. — Quer dizer... Você deve estar cansada, precisa repousar.

— Não, realmente não quero falar com você agora — disse simplesmente.

Ele ficou calado, mirando-a sem argumentos, os olhos arregalados em surpresa.

— Até, William Collins. — Virou-se de costas novamente.

O cérebro de William pareceu ter congelado por longos momentos, até que apressadamente seguiu Marine novamente.

— Posso pedir seu número de telefone? — A alcançou, segurando-a levemente pelo braço.

Marine o olhou séria e instantaneamente William a soltou, tornando a corar. Segundos paralisantes fizeram o estômago dele fervilhar em ansiedade, ao passo que Marine recitou seu número rapidamente e logo em seguida continuou a caminhar.

O rapaz pegou o celular de forma desajeitada e apressadamente salvou o número, apertando a tecla "chamar". O celular de Marine tocou em seu bolso uma música dos Beatles e ela mordeu o lábio inferior, sem olhar para trás, porém divertida de que ele fora averiguar se o número que ela lhe passara era o verdadeiro.

O rapaz finalizou a chamada e sorriu satisfeito, observando-a desaparecer no corredor.


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