Capítulo 7: Aliança Sem Rosto.


As paredes do seu quarto testemunharam seu choro copioso severamente perturbador. Finalmente descobrira os motivos pela odiosidade de sua mãe e isso provocou uma dor profunda não apenas no seu corpo, ia para além da matéria. Algo necessitava ser feito, contudo Marine não sabia exatamente o quê. Um misto de inúmeras sensações percorria suas veias e atrofiava seu cérebro.

O dia amanhecera, era domingo e pôde ver os fracos raios de sol adentrando pelas frestas das cortinas pretas. Mantinha-se imóvel na cama, resignada a uma amargura praticamente infinda. Ouviu o barulho do carro disparar da garagem e percebeu que estava mais uma vez sozinha, como sempre esteve.

Apanhou o celular na mesa de cabeceira e havia várias mensagens de Susan, decidiu não visualizá-las, não desejava conversar com ninguém, necessitava apenas desaparecer. Seu corpo clamava por água, então precisou levantar.

Desceu devagar as escadas e viu a mesa do jantar, atravessou a cozinha e apanhou um copo quando percebeu que a fraca iluminação solar se transformou em escuridão. Girou para ir até o interruptor quando avistou ao centro da cozinha um homem branco de cabelos escuros até o ombro, vestes surradas e antigas, encarando-a com um olhar perturbadoramente escuro.

A jovem não conseguiu se mover, apenas o copo caiu de seus dedos hesitantes.

Venha para mim — disse ele sem mover os lábios.

Tudo à sua volta transformou-se bruscamente, como se estivesse transportada para outra realidade, outro tempo. Até mesmo o oxigênio era mais denso. Viu-se em meio a grandes paredes rochosas com seis portas ao longo do grande círculo. Havia grama surgindo dessas muralhas e estavam sendo banhadas por um lago silencioso.

O estranho homem surgiu de uma das portas caminhando vagarosamente até a margem. O olhar gélido lhe rompia ao meio, em uma mistura de pavor e hipnose. A expressão facial era indescritível. Assustadoramente, percebeu que seus pés tocavam a água ao centro do lago, o que a levou ao desespero, era como se estivesse pisando em solo firme, não afundava.

— Quem é você? — bradou desesperada.

— Eu sou você — respondeu ele com aquela voz gélida e grave, avançando rapidamente sobre as águas em sua direção.

Marine tentou se mover, em vão. Antes dele tocá-la, fora tragada para o fundo do lago. À medida que afundava, inúmeras imagens de seu pai ensinando-lhe magia quando criança insurgiram, afundava cada vez mais até chegar ao fundo turvo. Engoliu bastante água, precisava respirar, desesperou-se ainda mais quando viu uma jovem moça loira de semblante triste lhe observando. Em seguida, desfragmentou-se, e as águas se tornaram vermelhas.

Tudo girou ao passo que Marine caiu violentamente de costas ao chão da cozinha, completamente molhada, assim como em volta e até mesmo os móveis. Respirou ofegante e com medo, olhando ao redor. Avistou na janela os fortes raios de sol.

Não houve tempo para mais nada além de subir as escadas, apanhar seu aparelho celular, a foto de seu pai que havia encontrado no dia anterior e disparar em seu carro para a casa de Susan, a qual abriu a porta ainda sonolenta e bastante assustada.

Marine adentrou a casa da amiga hesitante e manteve-se paralisada com aquela voz ressoando em seu cérebro congelado. Assim que Susan trouxe as toalhas e se enxugou, sentou-se em uma cadeira na cozinha, perdida entre o real e o impalpável.

Repousou seu olhar difuso na amiga e resumiu a conversa que teve com a mãe na noite anterior, priorizando o que acabara de ocorrer.

— Aquelas paredes, cheias de portas... Aquele homem olhando para mim, vindo na minha direção enquanto eu flutuava naquela água que se tornou sangue. Era como se eu estivesse dentro de um grande labirinto — despejou sobre a amiga, ainda ofegante. — E fui tragada para o fundo.

Susan preferiu somente ouvir, sem espaços para questionamentos, dado o visível desespero da amiga.

— Não quero mais voltar para casa. Aquela não é mais minha casa há muito tempo — confessou com a respiração hiperventilada.

— A Joanne é uma tremenda filha da puta — discorreu Susan, sem se arrepender. — E você pode ficar aqui o tempo que quiser.

Marine nada disse, apenas abaixou a cabeça e estendeu a foto de seu pai para Susan.

— Encontrei esta foto dentro do escritório. É em Ennead, tirada no ano em que ele morreu. Não pode ser uma coincidência, não pode — a voz saía com dificuldade.

Uma saliva amarga desceu pelo esôfago de Susan, que logo surpreendeu-se, revelando que uma das casas ao fundo pertencia a sua família. Apontou.

— É esta a casa da minha avó. Foi nesse lugar que cresci, Marine. O que o seu pai fazia lá? — Uma mistura de euforia e receio imperou.

— Não sei. Realmente não sei mais de nada. — Tentou se controlar. — A única coisa que tenho certeza é que precisamos ir até Ennead, agora mais do que nunca. — Fugiu do ângulo de visão da amiga e tentou raciocinar. — São muitas evidências, apesar de inconsistentes..., mas sinto, inexplicavelmente, que é como se meu pai estivesse me preparando para algo e que foi interrompido, e que tudo retornou desde que nos conhecemos ano passado. — Mirou a amiga e tocou-lhe nas mãos.

O sorriso de Susan se iluminou.

— Aquela mulher no Phoenix Park parecia me conhecer e assustou-se porque eu estava a vendo — recordou-se, tentando unir as peças do quebra-cabeça.

— Que mulher?

— Eu não sei. — Marine estava visivelmente desesperada. — Mas havia uma mulher lá que parecia estar procurando por algo. A partir da sua conjuração, tudo mudou. O Encapuzado, a manifestação no meu quarto... A pedra. Onde está a pedra? — indagou aflita.

Susan respondeu que no seu quarto e, automaticamente, Marine subiu as escadas, indo ao encontro do objeto que emanava uma luz avermelhada da segunda gaveta no armário, dentro de uma caixa de joias.

Assim que Marine tocou o objeto, a sombra no fundo dos olhos chicoteou, ao mesmo tempo que Susan se surpreendeu.

— Como você sabia que estava aí?

Marine nada respondeu, apenas mantinha-se fixa no objeto como se estivesse totalmente absorvida por ele.

*******

Em um penhasco com vista para o oceano atlântico, abaixo das nebulosas nuvens acinzentadas, um homem de meia-idade, rosto cansado, corpo esguio, cabelos ondulados abaixo das vestes surradas que cobria seu rosto cheio de marcas de expressão, mantinha seus olhos verdes fixos no mar metros abaixo, refletindo a respeito de tudo o que acontecera até ali. Decisões precisaram ser tomadas diante de revelações abissais e, como uma flecha disparada de um arco mortal, nada poderia impedi-la de ceifar o seu alvo. Nem que para isso outras vidas pelo caminho fossem sacrificadas.

Um passo firme metros atrás sob as falésias fez o misterioso senhor cerrar os olhos e comprimir ainda mais suas rugas. Delineou um sorriso torto que aquele rosto marcado pelo tempo já não emitia mais desde que a grande mentira fora notificada por todas as ramificações da sociedade secreta pagã mais poderosa do mundo. "Ela está viva..."

— O plano segue como o combinado — a voz de timbre dualístico e arrepiante informou ao senhor que girava devagar, mirando-o seriamente. — Elas encontram-se desbloqueadas. Marine Talbott tocou a chave e já sofreu a influência do encantamento feito pelo senhor, Feltrin.

O homem contemplava a misteriosa figura com inúmeras teorias a respeito de sua identidade.

— Não confio em pessoas que ocultam o rosto — desfechou com a voz cansada.

— Incoerente, tendo em vista que o senhor confiou no seu grande amigo, que usurpou o seu lugar como guardião supremo, e foi traído e banido por um crime que não cometeu — debochou assombrosamente.

Feltrin aproximou-se, enquanto a misteriosa figura afastou-se proporcionalmente.

— Temes revelar-se a mim? — Uniu as sobrancelhas.

—Não temo a nada, guardião. Apenas quero tudo o que me foi tirado e, principalmente, vingança pelo o que foi feito — respondeu secamente.

— Terá sua recompensa assim que eu retornar ao meu trono — afincou verdadeiramente. — Mas preciso saber quem é você.

— Saberá no momento certo, quando reivindicar o que me foi prometido. Enquanto isso, nosso fiel acordo segue sem rosto — falava apressadamente.

— Nem mesmo posso saber a identidade do Infiltrado dentro da Congregação?

— Não, senhor — respondeu unindo as mãos protegidas pelas luvas pretas. — Acredito que tenhas provas suficientes de nossa lealdade. Afinal, o Infiltrado as desbloqueou, visitei Susan Behan, deixando a chave, e, no início deste ano, entreguei-lhe algumas linhas da profecia feita por Kiara Finnin e enviamos à igreja em forma de ameaça.

Feltrin analisou com cautela e guardou seu athame na bainha de suas vestes.

— Você está sendo leal e seu aliado também, o furto da chave foi uma tarefa árdua e bastante perigosa. — Tentava ver abaixo do capuz.

— Meu aliado não teme certos receios contornáveis. Estamos obstinados a cumprir o que a vida nos furtou. Agora, cuidado com o seu aliado, não vislumbro uma aura confiável — alertou.

Feltrin estreitou os olhos e internamente preocupou-se.

— No mais, por ora nossos encontros se encerram aqui, guardião. — Despediu-se o Encapuzado, que se surpreendeu com Feltrin estendendo a mão. — Até breve.

Ao pronunciar a última palavra, regressou de costas, sem tocar ao chão, e desapareceu na vegetação sem cumprimentá-lo.

*******

Todos os pertences necessários para uma viagem de duas semanas foram colocados dentro de duas malas. Susan ajudou a amiga em tudo, tentando ser a mais rápida possível para evitar encontros desnecessários com Joanne. Observava Marine atentamente, que parecia estar perdida entre a realidade cruel a sua volta e seus devaneios reveladores.

Logo que guardaram tudo, Marine encarou o quarto com um aperto gigantesco no peito e fechou a porta. Antes de sair da casa, deixou um bilhete para Joanne em cima da mesa de centro da sala e partiu junto com a amiga.

Susan combinou com a avó que iria até Ennead na manhã seguinte. Claire se alegrou com a notícia e disse que iria preparar todos os pratos que a neta gostava. Marine percebeu pela expressão da amiga que elas aparentemente mantinham uma relação conflituosa.

A noite chegou e não houve nenhuma ligação de Joanne para a filha, a qual sempre olhava a tela do celular, involuntariamente, com uma esperança inominável. Não sabia exatamente o que sentia pela mãe após aquele fatídico jantar, porém de uma coisa tinha certeza: passou a amar ainda mais o seu pai.

*******

Mais um dia se fez com um Sol forte entre as nuvens, como se aquela luz afugentasse toda escuridão presente na alma de Marine, que se observava no espelho e, pela primeira vez, viu uma sombra nos olhos. Aproximou-se do reflexo quando a luz oscilou. Seus olhos se transformaram nos olhos do desconhecido que surgira na sua cozinha e lhe conduzira para um lugar estranho. Quis gritar, mas logo avistou Susan na porta com o rosto preocupado.

— Você está realmente bem?

— Sim — mentiu, sentindo uma palpitação surreal, contudo tentou disfarçar com um sorriso forçado. — Precisamos esclarecer essas dúvidas, Susan. Levei um tiro mês passado. E agora estou sendo assombrada por algo que desconheço. — Virou-se para a amiga. — Somos bruxas, não somos? A floresta esconde algo... Meu pai esteve lá, as confissões da minha mãe e essa pedra trazida pelo encapuzado... — Respirou profundamente e amarrou o cabelo em um rabo de cavalo alto. — Não há mais motivos para ficar aqui. Precisamos ter a certeza do que somos — discorreu obstinada.

*******

Marine decidiu deixar seu carro na garagem de Susan e foram no carro da amiga. Embarcaram as malas, e Marine pediu para que a pedra fosse em sua mala, afinal Susan era bastante distraída e poderia esquecer. Em seguida, saíram sob o céu esperançoso, assim como o coração da jovem que pulsava de maneira célere em prol do desconhecido.

Raios de Sol davam vida à paisagem da margem da rodovia, revelando o tom verde da magnífica vegetação no decorrer do percurso.

Aquela coloração em contraste com o cinza, apesar de bucólica, exaltava esperança naquele que foi o amanhecer mais esperado dos últimos dias.

Fizeram a primeira parada planejada em Portlaoise e resolveram tomar um café da manhã volumoso bem típico da culinária irlandesa, para ficarem satisfeitas durante o resto da viagem.

O percurso inteiro seria de um pouco mais de 400 quilômetros, de Dublin a Ennead, pelas rodovias principais, incluindo as duas paradas necessárias.

Após a parada para o café da manhã, Marine assumiu a direção e prometeu dirigir devagar.

Ao chegarem a Limerick, trocaram a direção e abasteceram o automóvel.

Ennead estava localizada no condado de Kerry, na província de Munster, sudoeste irlandês. Era distante da capital, Tralee, e situava-se próxima à cidade de Killarney, quase ao lado do Killarney National Park.

A cada curva surgiam paisagens fantásticas de montanhas enevoadas e largas extensões de pasto com pequenos vilarejos, onde inúmeras ovelhas varriam toda a expansão do ambiente fascinante. Marine contemplava tudo com profunda admiração, pois não conhecia os condados distantes e visualizar aquela parte do seu país era, no mínimo, maravilhoso.

— Conte-me mais sobre quando você morava em Ennead — pediu à Susan.

Ela deu de ombros, sem muita importância.

— É uma cidade rural, não havia muito o que fazer. — Bocejou.

— E os seus amigos?

— Não gostava muito das pessoas, estudei em Killarney. As escolas em Ennead não são mistas, imagine minha decepção. — Riu, soltando outro bocejo.

Marine também riu, voltando a olhar o belo cenário natural.

— Então tem poucos amigos lá?

— Só tenho em Killarney, em Tralee. Não gostava muito das pessoas, você vai ver, são chatas e retrógradas. Por isso quis ir para bem longe. — Balançou a cabeça, tentando afastar o sono.

Marine percebeu que Susan lutava para manter-se acordada.

— Quer que eu dirija?

— Não precisa, estamos perto. — Olhava atentamente para algumas entradas. — Preciso apenas lembrar qual a curva certa.

Em poucos minutos, Susan localizou-se, e a placa "bem-vindo a Ennead" foi vista por Marine.

— Eu sei por onde estou andando! — declarou repentinamente empolgada. — Fazia esse trajeto sempre para ir às festas em Tralee.

Um misto de ansiedade e medo, antes presos apenas no cérebro de Marine, espalharam-se por seus membros. Mordeu a unha do polegar direito enquanto estalava os dedos da mão esquerda.

Já na estrada que interligava a rodovia com Ennead, havia uma imensa floresta na margem da rua asfaltada, apenas o tapete negro do asfalto cortava a extensão verde rumo à cidade secular. Marine via os caules das árvores passando como um borrão, pela velocidade atingida pelo veículo. Aquele balé das árvores a enfeitiçava.

Enquanto Marine deslumbrava-se com a paisagem, as pálpebras de Susan estavam cada vez mais pesadas. O longo trajeto, associado à ansiedade, fez com que seus olhos se fechassem por breves segundos determinantes.

Ao desviar a atenção das hastes, Marine voltou a contemplar a estrada e surpreendentemente avistou um rapaz que atravessava a rua a poucos metros do automóvel.

— SUSAN! — gritou, chamando a atenção da amiga que despertou assustada.

Os pneus cantaram com a brusca freada, enquanto o rapaz imóvel com olhos arregalados apenas observou o veículo aproximar-se em alta velocidade.

Era impossível impedir a colisão.

Susan xingou um palavrão enquanto Marine, em pânico, não desviou o olhar da pessoa. Então algo anormal aconteceu diante de seus olhos. O misterioso rapaz cruzou como um espectro pelo carro, desfragmentando-se em uma luz prateada.

Tudo naquele instante pareceu parar por breves segundos. Sem som, sem toque ou cheiro, o mundo, de certa forma, pareceu parar de girar. O surreal acabara de incidir diante dos olhos arregalados de Marine.

Os olhares deles cruzaram-se, inexplicavelmente, enquanto segundos intermináveis compunham aquela fascinação incompreensível e abstrata.

Susan girou o volante para a direita, perdendo o total controle do veículo, fazendo-o descer pelo acostamento íngreme.

A conexão hipnótica fora encerrada e, ao passo que o carro capotou, violentamente, cinco vezes, o porta-malas se abriu, arremessando o conteúdo em volta antes que o carro parasse de girar. As rodas do veículo destruído estavam para cima, e uma pequena chama floresceu abaixo do capô.


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