Capítulo 52: Letes.


Os ponteiros do relógio congelaram, assim como o tempo.

A lâmina rangeu ao paralisar sob o peito de Marine, inerte.

Teodorus aplicou uma força gigantesca e nada aconteceu.

Dois padres tentaram auxiliar, em vão. O objeto mantinha-se imóvel.

Chamas brotaram da superfície do lago e giraram controladas pelo interior obscuro da mente de Marine, paralisada. Todos perceberam que não apenas o olhar — que assumira uma coloração mais escura do que à noite —, havia mudado, ela adquirira uma outra exterioridade, em traços mais concisos, e com aquela voz gélida que nascia impetuosamente dos lábios vermelhos.

Os Feiticeiros conjuraram feitiços destrutivos direcionados a ela, contudo foram repelidos contra suas próprias armas violentamente.

O athame permaneceu suspenso, porém deslocando-se à medida que o corpo de Marine era alçado vagarosamente do chão.

— Mais uma vez nos encontramos, Servartis. — Os pés tocaram o chão ao passo que os olhos fitaram os do arcebispo, o qual se mantinha aterrorizado pela possessão diante dos seus olhos.

— Me confundiu, diabo. Me chamo Teodorus. — A voz mantinha-se firme.

— Lamento informá-lo, conheço-te de outras vidas... — Riu, erguendo a mão e apanhando o athame.

Padre George murmurou assombrado:

— Letes...

Marine proferiu:

— A mesma alma rasa e ignorante de minha época. — Moveu seu athame entre os dedos.

As chamas ergueram-se tomando inúmeras formas até solidificar a estrutura de uma fogueira do tribunal do Santo Ofício.

Teodorus movimentou-se devagar encarando as chamas revoltas, abismado.

— Não há evolução quando se está condenado a um só destino — sentenciou Marine assombrosamente.

Do alto das muralhas, Dhorion, Sayne, Mel e Wagner desceram, deixando para trás um embate entre as paredes do labirinto, onde membros da igreja e feiticeiros digladiavam-se com os Magos. O guardião à frente tocou ao chão e disse:

— Há sempre evolução espiritual, velho amigo.

O corpo de Marine virou-se e a consciência de Letes gritou através de sua boca.

Marine voltou a enxergar e viu Dhorion, apesar de não conseguir se movimentar. Apenas sua mente gritara, e o Guardião assim ouviu.

— Deixe-a — pediu Dhorion com as mãos estendidas.

— Não se pode alterar o passado — ao dizer isso, o corpo de Marine colapsou. Todas as suas memórias passaram diante de seus olhos, brigas com Joanne, o amor de Dylan, o encontro com Susan, os olhares capciosos de Ben, o tiro que sofrera semanas atrás. A dor do impacto lhe assolou novamente e se viu caída na relva úmida, clamando quase que de maneira inaudível por socorro.

O fogo girou sob o lago e explodiu ferozmente, propagando suas chamas para o labirinto, o qual absorveu a energia de forma massiva, alastrando-se pelas incontáveis fendas nas paredes, suscitando um poder ainda maior.

A maioria dos membros, tanto do exército católico quanto feiticeiros e Magos, foram incinerados quase que automaticamente. Do alto, uma cicatriz em chamas na floresta escura pulsava sob o crepúsculo sombrio.

As chamas giraram em torno do corpo de Marine, e mais imagens foram se moldando.

Não deve confiar nele... Ele mente...

As palavras chicotearam em seu subconsciente.

Dhorion quis matar você...

Glendalough se refez e a batalha entre bruxos da Congregação e os bruxos das Sombras, liderados por Sayne e Notwen respectivamente, materializou-se. Marine pôde sentir-se novamente perdida, ligeiramente dopada, e absurdamente com medo daqueles desconhecidos de vestes escuras, digladiando-se, quando, em meio à escuridão, uma pessoa com o rosto encoberto pelo manto negro retirou a arma vermelha das vestes e desferiu o tiro. O rosto foi se iluminando sob o negrume angular de uma face serena, porém visivelmente fora de si. Aqueles olhos cinza sentenciaram o início ou o fim de tudo o que vivera e acreditara. Dhorion era o autor do atentado.

O athame caiu ao chão de cinzas, enquanto Marine contorceu-se, tentando se libertar dentro do seu próprio corpo. O brilho da lâmina fez Padre George, atento a tudo o que via, correr em meio aos corpos caídos e explosões sucessivas. Estava cada vez mais próximo quando labaredas lhe atingiram no braço e o fizeram recuar.

Teodorus avançou rumo a Dhorion, e os dois se enfrentaram violentamente.

— Você nos condenou à morte com essa mentira. Ela amaldiçoará a terra, ela é a chave para o inferno — esbravejou.

— O portador do inferno na terra é você e esse seu fanatismo de merda! — disparou Dhorion perdendo o controle.

Mel e Wagner enfrentavam os Feiticeiros, enquanto Sayne mirava em Marine flutuando em uma espiral de fogo. O lago se transformou em sangue e Letes alimentava o fogo agora escarlate.

— Ela é minha! — disparou a voz gélida dos lábios de Marine.

Com os braços abertos flutuando a três metros de altura, despencou abruptamente para dentro do lago. Sayne não pensou e se atirou nas águas no mesmo instante.

Assim que o corpo de Marine submergiu na superfície e afundou vagarosamente, os olhos se abriram e retornaram à sua coloração normal. Uma névoa invadiu seu campo de visão e mais uma vez se viu distante das águas, perdida em um limbo que jamais ousou imaginar.

Antoine Lefebvre caminhava devagar em sua direção. A pele alva, os cabelos escuros, assim como os olhos, a barba rala e de aparência sofrida, apesar de ostentar, aparentemente, boa saúde física e mental, ocultava uma beleza rústica no auge dos seus trinta e três anos.

O athame brilhava refletindo os raios do Sol de verão entre os espaços dos galhos. Apesar do sorriso, havia uma tristeza nítida em seus olhos. Ao aproximar-se de Marine, ela sentiu o cheiro amadeirado dele invadir suas narinas. Ele baixou o olhar, mirou dentro dos olhos diante dela e pediu:

— Liberte-me.

Sayne avançava na vermelhidão das águas, desesperada à procura da jovem, conjurando luz em meio às águas sangrentas. E finalmente conseguiu vê-la, quase desaparecendo no limo.

Liberte-me, clamava ele.

Não o escute, Marine!, pediu Sayne mentalmente.

O corpo tocou ao fundo, quando Marine conseguiu enxergar Sayne. Estendeu a mão, sua expressão gritava por socorro.

Liberte-me.

As mãos se uniram e a mulher a puxou, agarrando-a pelo tronco, e subiu utilizando todas as forças e fôlego que lhe restavam até chegar à superfície. No exato momento em que o ar adentrou os pulmões de Marine, a realidade regressou.

Dhorion e Teodorus agrediam-se desferindo ofensas mútuas.

— Você é um mentiroso sórdido e manipulador! — disparou com fúria. — Fez todos acreditarem na morte desse ser! — a voz estava engasgada.

— Não sou adepto a execuções em nome de qualquer deus, meu caro — acrescentou buscando um equilíbrio no timbre. Não havia mais o que fazer, a Igreja sabia da verdade e o caos se tornara inevitável. — Luto pela vida.

— Vida? — Aproximou-se com raiva. Desejava matá-lo. — Posso imaginar o quanto você crê na vida, forjando provas contra o antigo Guardião, ao ponto de conseguir dois corpos para substituir a verdadeira criança amaldiçoada.

— Não forjei nada! — rebateu, conjurando um casulo entre eles.

O embate continuava. Mel caiu ensanguentada, enquanto Wagner a defendia bravamente. Outros membros da Congregação adentraram, assim como outros feiticeiros.

Teodorus olhava assustado para o círculo em volta.

— Feltrin seguiu uma pista falsa e assassinou outra bruxa. Não pude fazer nada, a não ser confirmar o ato criminoso, escondendo a verdadeira — falou em verdade.

— Se ele assassinou a mulher errada, e Marine Talbott é a criança, onde está a mãe?

Nesse exato instante, Sayne resgatava Marine do lago, chegando à margem.

— Joanne Talbott não é a mãe biológica, a amaldiçoada nasceria da Luz e das Sombras, filha de dois bruxos. — O avaliava. — Dylan está morto, assassinado por Milligan. Quem é a mãe?

Kael e mais dois feiticeiros conjuraram um círculo de proteção.

Teodorus berrou e correu em direção aos Feiticeiros.

Teodorus e Dhorion estavam conectados pelo olhar quando uma densa bruma desceu sob o grupo e todos desapareceram.

O fogo em torno do labirinto escarlate intensificou-se e avançava para a floresta. Poderia chamar mais atenção.

Dhorion mirou em Sayne, a qual se erguia na margem com Marine, ao passo que ele apontou o athame para o alto e conduziu a água em uma esfera gigante metros acima, abrindo os braços e proferindo feitiços, fazendo-a se espalhar, provocando ondas e percorrendo todo o trajeto em chamas.

Wagner levantou-se do chão após o tsunami passar por ele e logo auxiliou Mel.

Sayne segurava Marine pelos braços quando a jovem em um rompante de fúria avançou sobre o guardião.

— Calma, Marine. Há uma explicação — ponderou, erguendo a mão livre.

— Foi você, você quem atirou em mim! — acusou com os lábios trêmulos.

Sayne e Mel se entreolharam aturdidas, enquanto Dhorion a tocou nos braços tentando acalmá-la.

— Não toque em mim! — O repulsou impetuosamente.

Dhorion firmou os pés no chão, havia se desequilibrado.

— Marine, você acabou de passar por uma experiência inimaginável — tentava ajuizar as palavras certas. — Precisamos sair daqui... Nos aquecer, tomar um chá!

— Vá à merda com o chá! Como você pôde atirar em mim e depois agir normalmente? Fingindo o tempo inteiro, assim como o Encapuzado disse. Todos vocês mentiram esse tempo todo — acusou, olhando para todos os lados.

Wagner pediu para que os que estavam vivos saíssem, alguns feiticeiros foram presos pelos Magos.

Marine olhava indignada para o guardião, respirando muito rapidamente.

— Acalme-se, por favor. Você deve ter escutado acusações infundadas, ter sido persuadida a desacreditar na Congregação... — Dhorion graduava as palavras.

Marine não conseguiu se conter e berrou:

— Ele apenas reativou minhas memórias distorcidas pelo excesso de drogas e feitiços que vocês usam contra mim — acusou cuspindo verdades. — Há semanas só dormia, cheguei a pensar que tudo não passava de um pesadelo, mas a marca do tiro provava o contrário. Quem poderia ter feito aquilo? Poderia apontar todos, exceto você. — Lamentava com lágrimas nos olhos. — Notwen e Sayne... Pareciam me disputar... — buscava palavras. — Consegui lembrar de tudo! Olhei diretamente nos seus olhos, era você.

Dhorion aproximou-se, tentando tocá-la novamente.

— Tira as mãos de mim! — bradou após empurrá-lo.

Wagner tentou avançar, porém Dhorion pediu para que ninguém interferisse.

— Letes me mostrou a verdade! — asseverou ela.

— Ele não é uma memória confiável, Marine — afirmou Sayne, tentando parecer lógica. — Foi tomado pelo mal após ter sido condenado à morte. Qualquer coisa que ele articule está inserido na escuridão de sua alma — discorreu buscando apoio em Mel, a qual mantinha-se como observadora.

Dhorion colocou a mão esquerda no pescoço e controlou a respiração. Ajuizava: Ela está certa.

Marine aproximou-se dele e proferiu friamente:

— O meu limite de paciência expirou. É a minha vida! Vocês entendem isso? — gritava. — Eu tenho o direito de saber o que sou.

Todos a encaravam hesitantes.

— Preciso saber a verdade — explodiu tanto em gestos quanto em palavras. Estava visivelmente farta.

Wagner tentou contestar.

— Você não pode falar assim. Todos aqui queremos te ajudar.

— Cala boca, Wagner! — esbravejou Marine sem desviar a atenção do guardião.

Dhorion coçou o nariz, mordeu o lábio inferior extremamente inseguro e preferiu fugir dos olhares dos três membros da Congregação. Guardou o athame e passou a mão no rosto molhado. Sentia o coração explodir no peito. Não tinha como adiar certas verdades. 


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