Capítulo 22: Lua de Sangue.


A expressão facial de Dhorion congelou entre o cômico e o trágico. O sorriso vistoso se desfez e uma aflição gutural tomou conta de seus pensamentos.

O olhar gelado de Sayne recaiu sobre Marine, assim como suas palavras dolentes.

— É de uma insolência imensurável — bradou. — Você tem noção do que nos fez compactuar para ter você aqui e responde dessa maneira estúpida?

— Não quero ocupar o lugar de ninguém — rebateu, defendendo-se. — Nesse quesito, concordo com Zenneher. — Apontou para o loiro, não sabendo ao certo se pronunciou seu nome corretamente. — Não acho justo. Não concordo.

— E quem você pensa que é para concordar ou não? — rechaçou Sayne. — Será que você não percebe que aqui você é um nada?

— Assim como para mim você não representa nada. Aliás, a maioria de vocês. — repulsou raivosamente. A aflição dominava seu corpo. Assistir desconhecidos decidirem que rumo tomar reprimiu toda a vontade de estar ali.

Sayne questionou o guardião a respeito da resposta e do questionamento audaz de Marine, ao passo que ele se mantinha calado, entorpecido dentro de seus pensamentos de outrora. Quem era Marine Talbott e, principalmente, o que esperar dela?

William a recriminou com o olhar, no entanto, ela mantinha-se fixa em Sayne, que sentiu o desafio.

— Alguém, por favor, retire esta garota daqui.

— Basta — concluiu o guardião, colocando as mãos para trás e observando-a curiosamente. — São muitas informações que açoitam sua mente, compreendo. No seu lugar, estaria estarrecido. Mas tente entender...

— Entendi perfeitamente, Dhorion. Ainda não faço parte deste mundo, por isso não devo obediência a ninguém. Meu pai me ocultou de tudo isso para me proteger, afinal sou uma bruxa com uma dualidade perigosa... — a garota refletiu. — Mas, substituir o lugar de alguém, é demais.

Zenneher a fitou imparcial, enquanto Mel aproximou-se ainda mais de Marine, pedindo permissão para falar a Dhorion, que concedeu.

— Acredito que a carta que seu pai deixou, além de certas palavras duras que ouviu e, principalmente, por ter entrado erroneamente, fez você pensar dessa maneira... O que dignifica ainda mais sua permanência. — A examinava com carinho. — Entenda, o Pentagrama funciona como uma análise minuciosa se bruxos naturais ou não realmente almejam adentrar este caminho. Lá, ensinamos os princípios básicos da magia que nos envolve e analisamos se os candidatos estão realmente aptos ou apenas deslumbrados. O poder corrompe, encanta e desnorteia, levando os iniciantes para um fascínio imediato. Por isso, eles pensam que lá já é a magia completa — discorria magistralmente. — Não fazem ideia do que está na floresta oculta. Que esta Congregação foi o lar de muitos irmãos ao longo de séculos.

Marine a observava e uma calma incomum a preencheu.

— Com isso, a cada estação, selecionamos cinco bruxos que representam cada elemento da natureza: terra, fogo, água e ar. Apenas um com o poder do Espírito, que chamamos de adquiridos. Não faz sentido, apesar de burlar as regras importantíssimas, você ir para o Pentagrama, não apenas por já estar aqui, mas pelo fato de seu pai ter lhe ensinado tudo o que lá é instruído.

Marine baixou o olhar, absorvendo as palavras. Percebeu que William a olhava com a visão periférica, como se pedisse para ela aceitar a sentença sem contestar.

— Não entenda a decisão do conselho de maneira errada. Ninguém votou pelo sim apenas por sentimentalismo ou surpresa com o seu dom, e muito menos por pena, ou pela carta que Dylan deixou. — A tocou na cicatriz do tiro. — É porque não queremos que nada de ruim aconteça a você — murmurou.

Apenas a garota ouviu e mais uma lágrima silenciosa desceu pelo rosto lívido.

Mel a limpou delicadamente, enquanto Zenneher revirava os olhos.

— Você não nos deve obediência, tampouco significamos algo até o momento de sua escolha.

Mel recuou alguns passos, enquanto Zenneher criticava baixo com Peter que a achou muito ousada e que a lisonjeavam demais.

Dhorion voltou para o seu lugar do outro lado da sala e manteve a fisionomia neutra.

— William, pode sair e aguarde as instruções na sala de treinamento — a voz do guardião estava seca. — Enquanto você, senhorita Talbott, permaneça aqui.

William levantou-se devagar, como se não quisesse sair, e foi repreendido pela lentidão por Wagner, que apenas franziu a testa.

Marine repousou um olhar perdido em William e uma eclosão de sentimentos associados a lembranças surgiram. Ele no hospital, a visitando na casa de Claire, ouvindo-a em silêncio no pub, passeando por Ennead, salvando-a da morte duas vezes, tanto pela queda no precipício quanto pelo ataque do Encapuzado e, principalmente, de como sua decisão em trazê-la para dentro da Congregação implicou em inúmeros deméritos que padeceria por tal escolha. Seria justo fugir do sonho de uma vida atrelado ao único rapaz que arriscou tudo para salvá-la?

Os olhares se cruzaram novamente e aquela ligação inexplicável se manteve. Ela não disfarçou a apreensão e o fitou até ele fechar a porta.

— Você deseja realmente ingressar no caminho da magia? — continuou Dhorion friamente.

Marine olhou para cada membro do Conselho. Por fim, encarou Dhorion com um imenso aperto no peito e disse:

— Sim.

Dhorion encerrou a sessão sob protestos de Zenneher, que afirmou, antes de bater à porta com extrema violência, que investigaria minuciosamente tudo a respeito da vida de Marine, principalmente a dualidade elemental e que deveria estar ciente de tudo, por ser um Eminente em Magia, e, se houvesse qualquer falha, reportaria tudo às Censoras.

Wagner e Nora explicaram superficialmente para Marine a respeito da cerimônia que ocorreria no dia seguinte e lhe entregaram uma pasta com orientações, além de informar que outro membro a levaria para a residência da senhora Claire.

Marine ainda procurou por Cybele, que havia desaparecido, e, mais uma vez, percebeu que Sayne a encarava severamente, ignorou e voltou a atenção ao Conselheiro. Em seguida, foi conduzida até a porta, por onde Dhorion passou rapidamente.

Do lado de fora, Josh Evans fez um sinal e abriu um largo sorriso ao vê-la.

Percorreram mais uma vez os corredores sinuosos para que os membros da Congregação não a vissem.

O jovem manteve-se em silêncio durante todo o percurso, apesar de delinear expressões engraçadas e aparentar estar feliz. Chegaram ao estacionamento lateral e ele abriu a porta do carro para ela, a qual estranhou, ao passo que ele sorriu.

— Tenho que tratar extremamente bem a ilustríssima garota que milagrosamente trouxe vida sentimental para meu amigo — disse de uma vez.

Marine percebeu o sotaque norte-americano. Josh era mais alto que William, possuía um cabelo curto estilo militar e um alargador mediano na orelha esquerda. Sua pele branca contrastava com seus olhos escuros e arredondados.

— Você é americano?

— Sim! Vim de intercâmbio e não voltei mais — falava sempre sorrindo.

— E os seus parentes, não acharam estranho?

— Não. Estão todos mortos.

Marine sentiu o rosto esquentar. Envergonhou-se da pergunta e pediu desculpa.

Ao entrarem no veículo, a garota notou as mãos grossas e grandes se fecharem no volante após ele ligar o som e apertar o play em uma música da banda de rock. Ele acompanhava a letra, cantava bem com sua voz grave.

Marine queria perguntar a respeito do que ele dissera, mas ficou um tanto constrangida. Josh era o oposto de William e visivelmente espaçoso e irreverente, porém agradável.

— Queria me desculpar pelo atropelamento — disse, fazendo uma curva perigosa. — Foi realmente sem querer.

— Desculpo se você me deixar em segurança. — Riu um tanto nervosa.

— Will ficou muito aborrecido comigo e isso gerou uma advertência, afinal precisamos ser discretos.

— Não consigo imaginar você sendo discreto. — Voltou a sorrir.

— Tento. — Riu, passando a mão no queixo.

— Acho melhor você manter as duas mãos no volante, Evans.

— Josh, pode me chamar de Josh — a corrigiu. — E não se preocupe. Dos sete acidentes que me envolvi, nunca matei ninguém. Ficou apenas essa cicatriz aqui. — Virou o rosto para ela ver a pequena marca perto da sobrancelha.

Marine o advertiu novamente, sorrindo, porém preocupada.

Em menos de um minuto já haviam chegado ao endereço.

A garota agradeceu e saiu do carro, balançando a cabeça negativamente e esboçando uma expressão risonha.

— Amanhã venho lhe buscar — disse ele gesticulando. — Agora entre.

Marine fez um sinal com a cabeça e cruzou o jardim ligeiramente.

Somente após fechar a porta, ele partiu. Ainda sorrindo, ao virar-se, se assustou com Cybele encostada na mesa de jantar com a lâmina do athame arranhando a mesa.

— Senta aí — falou em tom baixo.

Marine engoliu a seco e sentou-se no sofá da sala.

Cybele foi até a mesa de centro com o athame em mãos e sentou-se bruscamente, amarrando os cabelos pretos.

— Serei o mais objetiva possível. Não desperdice esta oportunidade — alertou claramente. — Sayne é uma pessoa difícil, mas é a Diretriz daquele lugar, o segundo cargo mais importante da Congregação Suprema.

Marine vincou a testa ao ouvir a palavra suprema.

— A Congregação dos Sábios ocultos existe em mais seis países. Esta, em Ennead, foi a primeira fundada e acolheu inúmeros bruxos perseguidos pela Inquisição. Existe uma hierarquia. Os iniciantes do Pentagrama, uma loja de utensílios místicos,são os mensageiros que encaminham os iniciados até lá e eles permanecem em constante estágio, mínimo comparado ao que Dylan te deu. Eles são avaliados até os emissários terem absoluta certeza de quem realmente deseja e merece seguir na magia.

Fez uma pequena pausa, tentando lembrar de todo o rito de passagem.

— Cinco adentram a cada início de estação, são quatro rituais de acolhimento anual. A menina lá, Kate, entrará na próxima — enfatizou. — Os aprendizes irão conhecer as dependências amanhã à tarde. Não saia de casa. Há um feitiço inquebrável feito por mim. Afinal, sou igual a você,Sombras e Luz.

— Como assim somos iguais? Você...

— Não me interrompa, por favor — foi enfática. — Não possuo dualidade alguma, apenas oscilo entre as duas vertentes para descobrir que carma é esse que leva minha família ao caos. Ao contrário de você que nasceu com isso, veja bem, indiretamente não há como lutar. Dylan acertou e essa carta que está aí com você é a prova viva de que não se pode conter certas coisas, mas se pode desviar outras.

— Posso fazer uma pergunta?

— Não. — A mulher revirou os olhos. — Faça. Afinal, você salvou minha mãe e minha filha daquele incêndio criminoso e serei eternamente grata por isso.

— Até quando ficarei sendo vigiada e estudada por vocês?

— Não há uma resposta para isso. Pode levar anos, talvez para sempre, ou nunca. O que importa é controlar essa escuridão que há em você.

Marine aproximou-se da mulher, enquanto ela recuava, e indagou:

— Qual o lado da escuridão? A água ou fogo?

— Só você terá essas respostas. O que sabemos é que sua natureza pertence a Água. Mas nem sempre nossa natureza é verdadeira.

Marine a fitou silenciosamente.

— Percebi que sua decisão em permanecer na Congregação o qual Dylan fez parte está enraizada no olhar que você deu para aquele rapaz lá, o Collins. Nunca permita que os sentimentos avancem sobre nossas decisões — aconselhou. — Já cometi este erro e não recomendo a ninguém. Aliás, se você preferisse não permanecer, não mudaria minha opinião. Eu ficaria do seu lado, apesar da estupidez que seria renegar uma das sociedades secretas mais poderosas do mundo por caprichos juvenis.

Marine fugiu do olhar de Cybele, concordando silenciosamente.

— Dylan te preparou para o mundo até onde pôde. Negar seus dons por capricho de que foi enganada ou que está sendo estudada é burrice, desculpe a franqueza. Você é isso, e a Congregação vai descobrir o que é, contudo apenas saberemos após o poder dos deuses serem realmente despertados em você na cerimônia de acolhimento. O que aconteceu no Phoenix Park foi apenas um desbloqueio conduzido por alguém que estava na mente de Susan. — Cybele respirou fundo. — Por que você acha que o Encapuzado foi atrás dela e não de você?

Marine permaneceu em silêncio, assimilando tudo.

— Ele sabia que Susan era mais fácil de ser manipulada e que ela te convenceria sob pressão emocional mais cedo ou mais tarde — foi ainda mais honesta. — Eu, particularmente, não suporto minha sobrinha, mas fazer o quê? Ela continuará sendo minha sobrinha. Então, Marine, não adianta fugir do que percebemos que está predestinado. Você tinha que estar aqui, neste dia sete, sob a lua de sangue no céu, com ou sem ajuda de William. Há fatos no desenvolvimento que não entendemos, entretanto o fim sempre será o mesmo.

Incrivelmente, tudo o que Cybele dizia foi vorazmente absorvido por seu cérebro, antes aturdido, agora entregue ao que de fato veio fazer em Ennead.

— Vem. — Cybele levantou e se encaminhou para o quintal com o athame sempre em mãos.

Marine observou receosa um longo enfileiramento de velas brancas que formavam dois triângulos invertidos.

— Tire suas roupas e deite-se na intercessão dos triângulos — mandou, sem rodeios.

Marine ficou ainda mais alarmada. Contudo, Cybele determinara novamente, com ainda mais firmeza e sem paciência.

As roupas da garota foram postas em uma cadeira próxima à área de serviço e, em seguida, Marine se encaminhou para a união dos triângulos completamente nua. Intuía confiança.

Ao deitar-se no chão, observou a lua vermelha no céu límpido, ao mesmo tempo que Cybele percorria as velas extremamente concentrada e de olhos fechados.

— O invisível fora mostrado, agora o poder será revelado.

Todas as chamas aumentaram.

— Eis tua filha, Ceridwen, que vaga como uma folha ao vento perdida rumo a um destino insólito. Purifique-a, abençoe-a e proteja-a da escuridão de sua alma impura. Alimente-a de sabedoria e faça o sangue que brilha sobre este manto da noite contrabalançar o poder, emanar equilíbrio e eclodir a esperança deste ser que luta apenas para descobrir quem realmente é.

Neste instante, todas as velas de um triângulo ficaram azuis e as do outro, laranja.

As chamas cresceram, girando em torno de Marine sem queimá-la, formando uma imensa fogueira de aproximadamente três metros. Ao mesmo tempo, uma chuva rala de sangue caiu sobre a garota, alimentando-a pelos poros, como se estivesse sendo invadida pelo líquido e pelas chamas.

Um ardor intenso a consumiu, afogando-a, presa entre os dois elementos. Os olhos se abriram: um branco e outro negro, logo se tornando um azul mar e outro laranja. Em seguida, tudo desapareceu. As velas foram consumidas pelo fogo e o sangue drenado pelo solo.

Cybele moveu a mão direita, conduzindo Marine para sua frente e conjurando uma energia que as uniu misteriosamente. Disse:

Renascentis ac tenebras.

Uma espiral a prendeu, projetando imagens tranquilas com seu pai até que tudo se desfez e a escuridão se fez sobre seus olhos. 


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