Capítulo 2: Ameaça dos Mortos.
O céu mantinha-se acinzentado sobre a Catedral da Santíssima Trindade, em Dublin, na Irlanda do Sul. Na sacristia silenciosa, a penumbra contrastava com o caos, no qual o arcebispo Teodorus encontrava-se desde que um envelope fora deixado para ele em pleno altar, lacrado com o símbolo de uma das sociedades secretas mais poderosas do mundo.
A única iluminação da ampla sala advinha de uma grossa vela, posicionada ao lado de um quadro barroco. A sombra da chama bailava, fantasmagoricamente, ao longo do piso, que, por sua vez, era refletida nos olhos inquietos do homem de meia-idade, como um presságio de um apocalipse. O feixe de luz em meio à imensidão tenebrosa anunciava muito mais que destruição, morte e sacrifício; poderia revelar esperança.
Três batidas na porta precederam a entrada de um pequeno grupo de padres, os quais se encaminharam em direção à mesa de madeira suntuosa ao fundo. O lustre fora aceso pelo último deles, o qual exprimia receio e não disfarçou a respiração ofegante, este se chamava Padre George e dirigiu a voz ao arcebispo, ainda imóvel mirando a flama da vela.
— Senhor, ele chegou! — anunciou com temor. Sua voz e expressão facial denunciavam o medo profundo que habitava em seu corpo.
A voz do padre o fez regressar à realidade. Os olhos escuros varreram a sala enquanto os dedos firmaram-se no grosso papel.
— Peça que entre — ordenou sem rodeios e bufando.
Um senhor de 57 anos com aparência jovial, cabelos grisalhos e arrepiados adentrou elegantemente, acompanhado por uma escolta composta por seis pessoas, todas com vestes escuras e com brasão no peito esquerdo idêntico ao do envelope deixado no altar.
— Boa tarde a todos — saudou o jovem senhor, esboçando um sorriso maroto, enquanto suas pálpebras espessas recaiam sobre o arcebispo.
Os demais padres abriram caminho para os recém-chegados passarem e posicionaram-se nas laterais do cômodo, não conseguiam disfarçar o pavor em seus respectivos semblantes.
O olhar do homem desviou do arcebispo, à medida que se aproximava do fundo do amplo lugar, e recaiu sobre Padre George, o qual mirou o chão.
— Então você veio. — disse o arcebispo com a voz embargada.
A conexão com o padre foi encerrada.
— Como vai, arcebispo Teodorus? — cumprimentou, estendendo a mão.
— Poupe-me de suas falsas cordialidades! — O arcebispo levantou-se, erguendo o envelope e rodeando a mesa como se fosse atacá-lo. — O que significa isso, Dhorion?
A comitiva que o acompanhava posicionou-se em defesa, ao passo que o líder pediu calma e tocou o papel amarelado. O sorriso luminoso enevoou. A íris cinza agitou-se, percorrendo todas as linhas daquela caligrafia torta, e focalizou a assinatura.
A todos que integram a Igreja Católica, deixo aqui um aviso: a hora da vingança se aproxima e nossa Trindade se unirá à vossa, formando assim uma única religião.
"O fim se aproxima e os papéis inverter-se-ão, pois vós sereis aqueles cujas fogueiras a pele incinerará!"
Tiveram a chance de nos destruir! Definhem diante das consequências de seus atos.
Não vos perdoaremos e jamais nos silenciarão!
Bernard R. Milligan
Occultatum Sapientes
Ler o nome assinado fez o passado retornar vividamente nos pensamentos de Dhorion. Lembranças penosas solidificaram-se. O ocorrido anos atrás ressurgiu impiedosamente, paralisando-o.
— Teodorus... — Os lábios de Dhorion tremeram.
— Enviei cinco padres, há cerca de três dias, para a sede da sua Seita! — interrompeu o arcebispo de forma abrasiva, posicionando-se ao lado de uma pequena mesa coberta por um manto preto. — E observe como retornaram!
Teodorus puxou o tecido e revelou cinco caixas de vidro, cada uma contendo uma cabeça decapitada e, no centro da testa, o sobrenome Milligan incisado por uma lâmina.
— O sobrenome é familiar? — perguntou Teodorus, em uma mescla de ódio e escárnio.
— Definitivamente não sei o que está acontecendo. — A voz de Dhorion oscilou em descrença.
— Você não sabe? — Aproximou-se o arcebispo atentamente. — Vocês os mataram, satânicos malditos—acusou com extremo ódio.
— Controle-se! — solicitou Dhorion, estendendo a mão e olhando para os demais.
— Não toque em mim — gritou, empurrando o braço de Dhorion com violência. — Recebemos uma ameaça direta e, logo após, vocês assassinaram brutalmente membros da igreja, reiterando o que estão dispostos a fazer — acusou visceralmente.
— Não estamos dispostos a fazer nada contra vocês — rechaçou no mesmo tom. — Isso é uma acusação grave — completou, austero.
Teodorus mantinha-se como uma serpente pelo recinto.
— Dhorion, isto cita a antiga profecia, caso não tenha percebido — desdenhou, unindo as sobrancelhas grossas.
— Óbvio que notei. — assentiu nervoso. — Porém, desconheço esta ameaça.
Tomou o papel amarelado e o empunhou a centímetros do rosto de Dhorion.
— Não reconhece o papel oficial de sua seita? A assinatura de Milligan? — inquiriu, cuspindo.
Dhorion deu um passo para trás. Atenta, sua guarda se aproximou.
— Milligan está morto e você sabe disso — lembrou-o, engolindo em seco.
— Recordo-me do suposto último dia de vida dele; afinal, ele me procurou antes de morrer, pois tinha algo a denunciar a respeito de você. — proferiu Teodorus rispidamente.
— Desconheço a respeito disso — afirmou, tentando controlar-se.
— Desconheces? — Riu ironicamente. — Você não faz ideia do que um homem traído pelo melhor amigo é capaz.
— Chega! — Soltou uma respiração pesada. — Esse assunto não condiz com a atual realidade.
— Como não? Se tal ameaça encontra-se assinada por ele? — Investigou Teodorus, indo buscar uma pasta na gaveta. — Averiguei documentos do hipotético morto e afirmo-te que a caligrafia condiz com a original.
— Impossível! — O canto da boca tremeu.
— Você conhecia a letra dele... — O arcebispo sorriu maliciosamente. — A da esposa dele... — Instigou um assunto que fazia parte do passado.
— Por favor, peço para que pare — interveio Dhorion, encarando-o firmemente.
— Será que ele realmente está morto? — questionou o arcebispo, mostrando o documento assinado por Bernard Milligan, comparando com a assinatura presente na ameaça.
— Eu o vi morto — respondeu como se estivesse soletrando.
— Acredito que a definição de morte para você é muito relativa — manteve o tom de ironia.
Teodorus contornou novamente a mesa e pegou outro papel que veio acompanhado da ameaça.
Assim que Dhorion observou os símbolos feitos magicamente por uma lâmina no papel amarelado, com uma frase peculiar, solicitou que sua guarda deixasse a sala de imediato.
P.S.: a criança não foi morta.
O arcebispo esboçou um pequeno sorriso e pediu para que os padres também se retirassem.
Mais uma vez o jovem padre observou Dhorion com bastante receio e saiu depressa.
— Agora estamos eu e você, sem máscaras, nobre guardião suplente — esquadrinhou sorrateiramente. — Sem mentiras.
Dhorion manteve os olhos baixos. Aquele espectro palpável voltou a dominá-lo.
— A criança realmente morreu? — investigou o arcebispo.
— Todos a viram ser brutalmente assassinada. — acrescentou, observando-o atentamente.
— Reformulando... — Teodorus estampava um sorriso na face altiva e enrugada, como se estivesse gostando de tortura-la com as lembranças do passado, apesar do medo também o corroer silenciosamente. — Feltrin, matou a criança certa?
Dhorion o encarou com firmeza e disse:
— Se ele tivesse matado a criança errada, o apocalipse que tanto temes já teria ocorrido.
Teodorus alinhou a coluna e abrumou o rosto.
— Estou começando a duvidar do que vejo, ouço, até do que faço... Apenas acredito em Deus. — Apontou para o altar ao fundo.
Dhorion mantinha-se petrificado, encarando-o.
— Tudo o que me levou até aquela criança está morto. A mais recente, a clarividente Kiara Finnin, uma forte membro de sua seita, morta no início deste ano, disse algumas frases das quais não esqueço, e conectei ao que Milligan me falou. — Fez uma pequena pausa, espreitando-o. — A profecia feita por James Bailey, enviada à Igreja e à sua seita há dois séculos... "Ela surgirá da Luz e das Sombras..." –— pronunciou assombrosamente.
— Kiara enfrentava severos problemas psíquicos desde muito jovem, pois seus pais não sabiam lidar com os dons peculiares dela. — justificou Dhorion com certo tremor nos lábios.
— E quem aceitaria, placidamente, uma filha que afirma ver o passado, presente e futuro? — ironizou.
Dhorion o encarou friamente e disse:
— Ela foi uma pessoa muito especial e exijo respeito por sua memória.
Teodorus aproximou-se ainda mais, estavam a cinco dedos de distância.
— Incrível como você é cercado pela morte.
— Todos somos — rebateu, diminuindo o tom de voz.
— Como ela morreu, Dhorion? Com um tiro nas costas como Milligan? A morte dela é tão nebulosa quanto a do clarividente James Bailey.
— Segundo a clínica, causas naturais. — Foi honesto. — E não há uma confirmação de que ela é descendente do clarividente.
Teodorus crispou o rosto e praticamente rosnou:
— Se descobrirmos que você está mentindo, o Pacto Sagrado será desfeito! — Trincou os dentes, advertindo.
— Você não tem legitimidade para desfazê-lo — contestou Dhorion, deixando escapar um sorriso nervoso.
Uma gargalhada debochada cortou o ambiente. Teodorus tomou o papel e franziu a testa, mirando os símbolos.
— Possuo legitimidade até para matá-lo, guardião. Entretanto, antes de concretizar tal feito, gostaria de saber o que significa essa mensagem.
Uma guerra fria assolava o recinto.
— Sou tão leigo quanto você — respondeu de maneira tranquila. — Não sei quem é o autor dessa selvageria e solicito um voto de confiança, por todo o histórico pacífico que temos. — Torceu os dedos trêmulos. — Investigarei quem está por trás disso e, quando encontrar, não serei piedoso, pois quem o fez não é digno de viver. — Observou as cabeças dos padres mortos.
— Discurso bonito, se fosse fidedigno — ironizou.
Teodorus o mirou friamente e perguntou:
— Por que vejo tanta mentira em você? — Arregalou os olhos, farejando.
— Talvez seja proporcional ao que emana de você.
Havia um embate violento naquela fusão de olhares.
Teodorus riu de forma amarga, agitando a cabeça.
— Se minhas suspeitas se confirmarem, nobre suplente, a guerra ganhará forma e cor — prometeu seguro do que já estava sendo arquitetado.
— Não haverá guerra! Não mais... — afiançou veementemente.
Todas as células do corpo de Dhorion pareceram congelar, uma rigidez profunda o prendeu ao chão enquanto sua mente lhe transportou para diversas cenas vivenciadas em um passado dúbio, onde apenas o caos imperava.
A inquisição de perguntas se alastrava de maneira efusiva, no entanto, Dhorion somente encarava Teodorus com seus olhos aturdidos. De todos os flashes daquele passado tumultuoso, a última lembrança era a mais perturbadora.
A veracidade dos fatos jazia no fundo de sua íris, onde um labirinto de verdades e mentiras misturavam-se em prol de um final mais digno. Entretanto, a honestidade não era a saída mais justa, pois quando um conjunto de forças sombrias concebia um plano letífero para sucumbir à Igreja Católica e aniquilar os preceitos pagãos da sociedade secreta secular mais poderosa do mundo, o que era lícito nem sempre seria válido.
*******
Susan foi atendida no hospital mais próximo, no entanto, logo exigiu alta por não suportar o ambiente. Marine contestou, porém, ser contrariada despertava uma ira surreal na amiga, o que era condizente com sua personalidade instável.
Marine agilizou todos os trâmites, tanto do atendimento médico quanto do reboque do carro, que ficara no parque. Antes de finalizarem o procedimento na mão de Susan, a garota ligou para o celular de sua mãe repetidas vezes e não obteve resposta. Enviou uma mensagem de voz informando a respeito do incidente, em vão.
Assim que chegaram à casa da amiga, Marine a colocou na cama. Em poucos minutos, os remédios fizeram efeito, e Susan adormeceu.
Os pensamentos de Marine retornaram para a estranha mulher do Phoenix Park, fechou os olhos com força tentando recordar-se. Aquele rosto era familiar.
— De onde? — questionou-se, apanhando o celular de Susan em sua bolsa e o deixando na mesa de cabeceira. Tocou-lhe nos cabelos loiros e observou o rosto oval da amiga balançando a cabeça e decidiu ir para casa.
Após estacionar e acionar o botão do portão eletrônico da garagem, adentrou a residência receosa. Olhou no relógio de pulso e subiu devagar para o quarto. No entanto, ao pisar no terceiro degrau da escada, um assobio cortou o silêncio da grande sala mobiliada.
Ben, o namorado de sua mãe, três anos mais velho que a garota, abriu a porta do escritório e saiu apenas com um short de dormir.
— Francamente, chegando agora, mocinha? — Havia certa malícia em seu semblante e tom de deboche em seu timbre.
Marine tentou ignorá-lo e continuou subindo.
— Sua mamãe não irá gostar de saber que você chegou nessa hora — ameaçou com ironia, estufou o peito malhado.
— Não me importo — rebateu, ignorando.
— Ora, ora, ora. — Cruzou os braços no primeiro degrau. — Rebelde?
Marine parou e girou para encará-lo com desprezo.
— Pena uma mulher tão maravilhosa quanto a Joanne ter uma filha tão vadia como você — discorreu com um sorriso de escárnio.
Marine piscou em descrença, surpresa com a ousadia.
— Você me chamou de...?
Ben umedeceu os lábios e subiu degraus, interrompendo a pergunta.
— De vadia — seu tom era uma mescla de provocação e antecipação. — É isso que você faz por aí? Sexo? Junto com a outra vagabunda?
Uma onda de calor tomou conta do corpo da garota, o ódio fervendo em seu sangue.
— Enquanto Joanne descansa de um dia cansativo de trabalho, você fica gastando o dinheiro com álcool e motéis de beira de estrada. — Ben exprimia um olhar lascivo. — Uma mulher tão inteligente e honrada... Com uma filha desse nível.
Marine desceu alguns degraus e o encarou de forma superior.
— Discordo, como poderia uma mulher tão inteligente manter um gigolô odioso feito você? Incoerente, não é mesmo? — repeliu no mesmo tom provocativo. — E, por favor, Ben, não me compare a você. Se alguém gasta o dinheiro da Joanne com álcool e motéis é você, e sabe, eu que deveria recriminá-la por gastar tanto com você, com certeza o gasto é muito maior do que você fornece a ela.
— Deve ser porque faço bem. — Esfregou a mão na virilha com um sorriso zombeteiro.
— Você é desprezível! — rebateu rapidamente assustada com a ousadia. — E sinto muita pena dela gastar a herança que meu pai nos deixou com um serzinho insignificante feito você. — Virou de costas e subiu.
Ben riu alto.
— Fala como se realmente fosse filha... — ironizou, contendo-se no último segundo.
Marine estancou em choque.
— Você surtou? O álcool afetou o resto do que você chama de cérebro? — Girou, encarando-o.
Ben subiu e parou diante dela, observando-a atentamente.
— Adoro seu tom infantil, sabia? — Encostou a mão esquerda na cintura da garota e passou a outra no seio.
A ira explodiu e, com violência, espalmou um tapa no rosto dele, fazendo-o retroceder três degraus, quase desequilibrando-se e caindo.
— Você nunca mais ouse tocar em mim! — gritou, apontando o dedo na face do homem.
— Vai contar para a mamãe? — zombou, esfregando o rosto com um sorriso sádico. — Saiba que isso vai ter volta.
Marine engoliu o ódio que sentia e preferiu fugir a continuar encarando-o. Assim que cruzou o corredor do segundo andar, entrou em seu quarto e trancou a porta.
— Idiota! — murmurou enquanto seu coração ainda martelava pelo medo e raiva. — Desgraçado!
Contemplou o que acabara de ocorrer.
— Por que ele disse isso? — Queria entender. As mãos suaram.
Assimilou o que ouvira de Ben e mirou as prateleiras repletas de livros que antes pertenceram ao seu pai. Foi até uma foto impressa deles dois ao centro de uma mesa e tocou, carinhosamente, na imagem.
— Como Joanne não nota o que ele faz?
Marine havia se surpreendido com a decisão da mãe em namorar um homem muito mais jovem e trazê-lo para casa. Não era contra os relacionamentos da mãe, contudo este ultrapassa todos os limites. Era nítido o interesse financeiro. Desde o início da relação, a garota posicionou-se contra, entretanto, sua opinião jamais importava. Era como se para Joanne, ela tivesse morrido junto com seu pai. Ela jamais lhe dera a atenção devida, a culpando indiretamente pela morte de Dylan.
Beijou a foto e soltou uma respiração pesada. Devolveu ao lugar e esticou o braço até a segunda prateleira, pegando um punhal com três estrelas gravadas no cabo de bronze. Era de seu pai.
Athame era o nome correto do objeto, não sabia disso apenas porque lera nos livros, mas por causa de Dylan, que lhe havia ensinado a respeito do companheiro fiel de um bruxo, sua lâmina, além de inúmeros ensinamentos que foram interrompidos após o ocorrido. Devolveu o objeto ao lugar e cruzou o quarto.
Junto a uma mesa repleta de utensílios místicos criticados diariamente por Joanne, Marine acendeu duas velas aromatizantes e fora tomar um banho quente.
Dentro do banheiro, enquanto Marine tirava a roupa e mirava-se no espelho, as chamas das velas cresceram e se entrelaçaram, do fogo a voz grave de um homem sussurrou: Liberte-me.
Grato por ler até aqui!
Sua opinião é muito importante para o desenvolvimento da obra!
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Obrigado.
:)
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