Capítulo 11: Confissões.
Após dar um salto e correr para o quarto, ainda cambaleando, Marine parou diante do espelho do banheiro e encarou seu reflexo, não havia corte, nada que explicasse a origem do sangue na blusa. Fechou os olhos com força e desejou imensamente que aquela sensação estranha passasse. O irreal já estava se tornando letal, brotando de sua mente e mutilando seu corpo.
Depois de muitos minutos repetindo para si mesma que nada daquilo aconteceu, entrou debaixo da ducha quente e submergiu para dentro de suas memórias, tentando captar todos os fios soltos do pesadelo e associar com o propósito de sua chegada à cidade. Apesar de sentir medo, precisava atar os nós; ao mesmo tempo que tudo parecia estar interligado, absolutamente nada fazia sentido.
Arrumou-se e contemplou novamente o reflexo enquanto amarrava o cabelo. Mirou as mãos trêmulas, apanhou o celular e controlou a respiração.
Thereza bateu à porta com uma bandeja em mãos. Trazia uma refeição e mais remédio. Marine olhou com certa desconfiança, não queria tomar.
— Está receitado, Marine, e seus hematomas aparentemente diminuíram — observou a mulher de aproximadamente 40 anos. — A Sra. Claire também pediu para dizer que Susan foi transferida e que a cirurgia foi um sucesso.
A menina sentou-se na cama e ficou mais calma com esta excelente notícia.
— Não há uma data específica para a alta, mas ela nos manterá informada. E também pediu para lhe dar uma cópia da chave da casa — informou a mulher retirando a chave do bolso.
Marine agradeceu, pegou a chave e a girou entre os dedos. Afirmou que comeria e tomaria os medicamentos. Em seguida, a mulher saiu.
Levantou-se e observou a praça através da janela.
O celular tocou, era William.
Engoliu a seco e deixou tocar. Recordou-se dele apunhalando-a e preferiu comer a refeição e tomar o remédio, precisava ficar bem para seguir com a resposta para suas perguntas.
*******
O dia amanheceu ainda mais acinzentado, assim como a mente entorpecida de Marine Talbott, que sentiu medo de dormir e ter mais pesadelos. Cochilou algumas vezes, porém despertava repentinamente suada e com palpitações. Permaneceu em uma poltrona com o celular em mãos pesquisando ainda mais sobre a cidade. Não havia nada relacionado a lendas ou bruxaria, apenas a respeito do turismo e pecuária, além de pubs e lojas.
O celular tocou novamente, era William, que já tinha enviado algumas mensagens. Decidiu ignorar a chamada.
Desceu para tomar café após fazer sua higiene pessoal.
Cumprimentou Thereza e Alice e afirmou que iria sair.
— Não acho que seja uma boa ideia — alertou Thereza.
— Preciso sair, respirar... Senão vou ficar louca aqui — foi bem clara.
Assim que abriu a porta e atravessou o jardim, contemplou a imensidão da praça e a magnitude da floresta.
Muitas pessoas transitavam e alguns rapazes a encararam com interesse, contudo, a percepção da garota era nula ao seu redor, sua atenção estava voltada aos detalhes do sonho.
— Uma pessoa queimada aqui... — Comprimiu os lábios, girando devagar, tendo uma visão de 360 graus do lugar. — Será que há registros? — A floresta lhe chamou a atenção, até que o sino da igreja badalou, proclamando o início da missa.
Andou mais alguns passos e posicionou-se no mesmo lugar em que ficara enraizada no sonho, focando a igreja, refazendo cada detalhe mentalmente.
O lugar estava movimentado e algumas pessoas a observavam, afinal ela gesticulava e falava sozinha no centro da praça, porém não se importava com o que iriam pensar, apenas queria encontrar sentido em tudo o que vivenciara.
Voltou a se questionar, como poderia o irreal materializar-se de uma maneira tão sufocante? Por que aquela cena específica? Por que somente agora? Por que somente aqui?
— Marine? — indagou uma voz masculina logo atrás, assustando-a. — Desculpa, está tudo bem? — Aproximou-se William devagar.
— Sim, mas o que você faz aqui? — continuou no mesmo tom inquisidor.
William apenas a observava como se ela fosse louca.
— Estava passando e vi você falando sozinha, resolvi parar e perguntar se está tudo bem. Está? — Colocou as mãos no bolso do casaco e deixou escapar um sorriso torto.
Ela apenas o observou por vários segundos, muda, presa em seu caos mental. Voltou novamente a olhar em volta, percebendo o quão ridículo deveria ter parecido para quem olhasse.
— Eu posso te ajudar de alguma forma? — insistiu, visivelmente preocupado.
Marine o encarou irritada e distanciou-se, andando em círculos, sentia-se tão malditamente perdida.
— Sim... Não... Talvez. — Olhou-o de lado, desconfiada.
— Você não está bem — concluiu, aproximando-se mais uma vez.
A sensação de dor no local do tiro voltou, fazendo a garota gemer e se curvar.
— O que está acontecendo? — perguntou preocupado.
Marine ficou em silêncio, tentando se recompor. Não era real, dizia a si mesma. Alinhou a postura e encostou o rosto no braço do rapaz, tentando retomar o controle de si mesma e da realidade.
— Eu queria poder confiar em você — murmurou, afastando-se.
William não soube como agir, seus olhos arregalaram-se diante daquela demonstração crua de vulnerabilidade.
— Mas eu não tenho alternativa — admitiu.
— Vem, eu levo você para casa — sugeriu suavemente.
— Realmente preciso de respostas ou vou surtar — continuou falando.
O rapaz nada disse.
— Me leva em um café, preciso conversar, estou me sentindo perdida — foi bem honesta.
Aproximou-se, segurando firme o braço dele, a expressão de William suavizou e ele a olhou ternamente.
— Claro — respondeu, acolhendo-a.
Os dois caminharam por alguns metros, alojaram-se na primeira mesa do estabelecimento mais próximo e fizeram o pedido.
— Para de me encarar — ordenou Marine, voltando a olhar para a igreja.
— Desculpa, mas estou preocupado com você. — Avaliou o semblante da garota, tentando entender o que poderia perturbá-la tão profundamente.
Marine soltou uma respiração forte e desculpou-se por estar sendo rude e por ter ignorado as chamadas e mensagens de texto e voz.
— Você não tem culpa de nada, não tive uma noite agradável. Na verdade, meus dias estão sendo terríveis mesmo antes de chegar aqui.
— Sério? — Ergueu as sobrancelhas, surpreso. — Se você quiser dividir este peso, desabafar.
— Tomei um remédio por causa dos machucados e dormi muito, mas essa não é a questão.
— Então qual é? — expressou curiosidade.
— Foi o que aconteceu durante o sono, eu tive um pesadelo muito estranho, inclusive você fazia parte — continuou séria.
A garçonete trouxe o pedido e deixou no centro da mesa.
— Sonhou comigo? — perguntou surpreso.
— Não, foi um pesadelo mesmo — declarou, ainda absorta nos detalhes do sonho. — Mas para eu te falar a respeito disso, terei que falar tudo no que diz respeito a minha vinda a Ennead. — Suspirou, sentindo falta de Susan.
William tomou o suco e continuou observando-a atentamente.
— Se você não se sente à vontade para contar, não precisa se forçar a isso — recomendou, assistindo Marine comprimir os dedos.
Ela olhou nos olhos dele, como se as respostas de todos os seus questionamentos fossem emergir com apenas o pestanejar de suas pálpebras, no entanto, ele desviou, como sempre o fez, deixando-a oscilar entre a dúvida e a certeza. Naquele momento, as duas questões eram uma só.
— Tentarei ser o mais clara possível — decidiu-se.
— Por favor — o tom dele mudara, assumindo uma expressão compenetrada e ansiosa.
— O fato é que sempre pesquisei e estudei sobre magia. — Preocupou-se em transmitir credibilidade nas palavras e o mediu, em busca de qualquer traço que evidenciasse o que estava pensando. — Antes com o meu pai, que morreu em um assalto anos atrás.
— Lamento — soou pesaroso.
— Obrigada — disse, buscando agrupar as palavras corretas. — Depois passei a estudar sozinha, como se este assunto de alguma maneira ilógica me conectasse a ele, que deixou um acervo de livros fantásticos a respeito. — Olhou para cima buscando palavras. — O problema é que nunca havia encontrado ninguém que se interessasse pela mesma coisa, até conhecer Susan ano passado. E o curioso é que ela é natural daqui, o lugar onde dias atrás encontrei uma foto do meu pai nessa praça, com a casa da senhora Claire ao fundo.
Respirava pausadamente, para que as emoções não a sufocassem e a impedissem de concluir a história.
— Nos tornamos amigas logo no primeiro encontro na sala de aula e descobrimos afinidades que nunca encontrei em outra pessoa, principalmente quando se falava em magia e bruxaria. O mesmo aconteceu com ela, que morava aqui e não se interessava a respeito do assunto, até me conhecer.
— Talvez você a tenha influenciado? — indagou, tentando acompanhar o raciocínio e claramente interessado em seu relato.
— Não, já que esse assunto era apenas meu e do meu pai. Não me recordo exatamente como surgiu, apenas aconteceu, e quando vimos, já estávamos fazendo certos rituais, conjurações... Fiquei receosa, porque sei das consequências, se executado de forma errada.
Fez uma pequena pausa e provou o suco, William não parecia julgá-la ou qualquer coisa do tipo, pelo contrário, ele a ouvia avidamente e absorvia as informações, de forma que se sentiu encorajada a continuar.
— Já Susan nunca teve medo. Na semana passada, ela fez uma evocação e eu cheguei para tentar impedi-la quando um raio a atingiu.
— Que coisa perigosa! — Tomou o resto do suco.
— A partir disso tudo mudou. — Gesticulou.
— O que exatamente mudou? — Franziu o cenho.
Marine mordeu a unha. Daquele momento em diante, seria justificável que qualquer pessoa quisesse interná-la depois de ouvir o que tinha para falar.
— Eu me senti diferente e ela também. Naquela noite, deixei-a em casa e, no dia seguinte, uma pessoa encapuzada foi até ela.
William franziu ainda mais a testa e inclinou-se para a frente da mesa.
— Essa pessoa afirmou que deveríamos vir até aqui, pois descobriríamos o porquê de tal bloqueio... Não lembro com exatidão de tudo que ela falou. O fato é que este ser indefinido deixou um objeto mais ou menos do tamanho da minha mão. — Apontou. — Uma espécie de pedra no formato do seu amuleto.
O jovem afastou-se, comprimindo os lábios e demonstrando estranheza.
— Você tem esse objeto? — investigou ele.
— Não. — Murchou os ombros. — Acho que o perdi no acidente, por isso fui procurar na estrada. — Com os dedos trêmulos, voltou a tomar suco.
William demonstrou aflição, focando em um ponto fixo acima do rosto da garota.
— Marine... — as palavras morreram em sua garganta.
— E tem mais uma coisa... — o interrompeu. — Na madrugada do incidente com Susan, cheguei em casa e o namorado de minha mãe tentou me estuprar. — Baixou os olhos, constrangida. — E alguma coisa... Surgiu dentro de mim.
O rapaz a observou atentamente e visivelmente revoltado.
— Algo que eu não sei explicar! O quarto todo tremeu e os objetos voaram... — Gesticulou, tentando explicar algo que nem ela sabia como aconteceu. — Tudo foi acontecendo ao mesmo tempo, de forma que resolvemos vir juntas para procurar por essas respostas, já que ela tem casa e parentes aqui, mas desde o primeiro momento tudo deu errado, o acidente... A perda do objeto, a cirurgia, o sonho macabro... Você. — Marine estendeu o braço e colocou a mão sobre a dele na mesa. — Você estava presente no meu sonho. — Desviou a atenção. — E nele, você era o encapuzado e me feria mortalmente com um athame.
— Jamais feriria você! — declarou exasperado.
Marine recolheu o braço e o observou com firmeza.
— Além disso, sonhei com essa praça, com um homem sendo queimado em uma fogueira, foi horrível e bastante real. — Sentiu o medo preenchê-la novamente. — Depois o sonho mudou, eu estava em uma floresta escura, segurando a pedra, e uma árvore seca me hipnotizava... Então eu voltei para a casa da senhora Claire, entrei no escritório dela e li um diário que falava sobre o amor... E você surgiu, vestido como essa pessoa encapuzada, e me perguntou sobre uma chave e pediu para eu ir para a floresta.
— Que sonho estranho! — disparou, umedecendo os lábios.
— E você me disse que Nicolas Hayden sempre mente — lembrou-se das palavras certas.
Assim que Marine terminou de falar, William congelou em uma expressão de choque, os olhos arregalados e a boca aberta. Tudo o que fora relatado tinha sido impactante aos ouvidos dele, o que de certo modo concretizava sua tese a respeito da bela desconhecida, no entanto, a última frase, a citação de um nome peculiar ao seu universo, o fez crer que jazia ainda mais verdades entrelaçadas a serem exploradas. Logo, uma certeza aterrorizante se infiltrou em seus pensamentos. Atravessar a estrada no exato momento em que elas trafegavam não fora uma mera coincidência, percebeu em assombro.
— E eu não faço a menor ideia de quem seja o tal do Nicolas. — Afundou na cadeira, sentindo o peso em seus ombros diminuir, após ter exteriorizado um pouco do que sentia e estava passando. — Você deve me achar louca — murmurou, não surpresa com a expressão atônita dele.
— Não, longe disso — a garganta dele estava seca, fazendo sua voz sair rouca. — Você precisa descansar, eu acho. São muitas informações. — disse ele, sem saber o que falar.
— Descansar? — frustrou-se. — Despois de dormir um dia inteiro, você sugere que eu descanse?
— O que quis dizer é que você sofreu um grave acidente, sua amiga foi operada em Cork, e você está com alguns ferimentos, apesar de aparentemente estar bem. Você deve estar abalada, psicologicamente falando.
Um ódio maciço e decepção explodiram no peito da garota.
— Eu abro a minha vida e você diz que eu devo procurar um psiquiatra? — Ficou de pé, indignada.
— Veja bem, eu não falei isso — atrapalhou-se, engasgando pela reação violenta de Marine e lamentando-se pela sua escolha de palavras.
— Tchau — falou, afastando-se.
William apressadamente deixou dinheiro sobre a mesa e correu atrás da garota.
— Espera, você entendeu mal — tentou se corrigir.
— Por favor, me deixe sozinha — falou com os dentes cerrados, sem desperdiçar uma olhada sobre o ombro.
— Marine... — Segurou delicadamente no braço dela. — Por favor.
A garota puxou o braço e seguiu pela calçada enquanto o rapaz a observava afastar-se com pesar. Instintivamente, retirou o celular do bolso e buscou na agenda o número de Wagner, que atendera na segunda chamada.
— Wagner, está ocupado? — a voz mal saía, o olhar continuava nela, cada vez mais longe.
— Não, estou saindo de uma reunião aqui no Pentagrama, por quê?
— Preciso falar com você, agora. — Ainda observava a garota, que acabara de dobrar a esquina. — Tenho informações sobre a chave.
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