Poderíamos ter nos encontrado em qualquer outro lugar, mas foi debaixo daquela marquise esburacada. O céu raivoso descarregava sua ira, num açoite líquido. Tarde maldita.

- Deixa eu acender pra senhora... - disse o homem da marca no rosto, segurando o isqueiro.

Traguei. Agradeci. Reparei o olho fechado, atravessado por uma cicatriz vertical num possível lembrete de algum antigo descuido.

- Que ônibus demorado! - soltou, com visível intenção de aparentar inocuidade. - Pior que não posso me atrasar para pegar minha filhinha. Sabe que horas são?

Eu já havia visto muitos rostos mentirosos, dos que usam todo o treino possível para aparentar bondade. Já ouvi muitas vozes marteladas de falsidade para atingir maciez. Esse sujeito deve ter gasto um tempo considerável em frente ao espelho. Manipulador, com certeza, mas fiz-me crédula.

- Já são cinco e meia. Sua menina está no colégio?

- Teatro. A aula encerrará em cinco minutos e o local fechará. Estou preocupado! Ela tem onze anos.

No momento, imaginei certa lascividade esforçadamente disfarçada em sua abordagem, embora ainda não tivesse certeza. Apenas li sua intenção de conquistar minha simpatia. Deixei-me levar, fingindo compaixão.

- Que chato! Espero que consiga chegar logo até lá!

- Grato!

- Não há alguém de confiança perto de lá que possa buscá-la para você?

Embora para mim não fosse o usual, dispensei o termo "senhor". Deixei brotar a sensação de proximidade.

- Infelizmente, não tenho com quem contar.

Olhou na direção do meu carro três vezes. Havia muitos outros estacionados, mas ficou nítido que era o meu a chamar-lhe a atenção. Deve ter me visto chegar. Omiti o fato de ter percebido.

- Boa sorte! Espero que encontre sua filhinha logo e fique tudo bem. Andarei na chuva mesmo, pois parece que vai demorar demais pra passar. Tá muito forte ainda, mas tenho que correr!

Na ida ensopada até o veículo, percebi-o me seguindo, mantendo certa distância e tentando não ser notado. Abri o porta-malas, fingindo distração na procura por algo.