Parte III
Como eu podia simplesmente pegá-la? Por acaso tinha eu uma foice para enfiar em seu peito? Comecei a me perguntar como matar alguém sem orientação, sem nada. Não queria desobedecer ao tempo. Esperei alguma ordem. Kelly não tinha data nem causa de morte.
Para minha surpresa, ela parou em uma esquina na rua de casa, onde estava aberto um estabelecimento de quinta categoria com uma grande fachada vermelha onde se lia "Casa do Baiano". Aquele tipo de comércio era bem característico do país abaixo da linha do equador.
Possuía na frente uma vitrine com salgados para vender, um corredor com algumas mesinhas de bar amarelas encostadas nos ladrilhos encardidos da parede, e um balcão lotado de copos vazios e pratos com resto de pastel. Do outro lado, um freezer desligado, fogão e prateleiras de ferro contendo garrafas de todo tipo de cachaça. Na calçada, do lado de fora, Kelly sentou-se na única mesa, sozinha. Cruzou as mãos e pegou um dos guardanapos para limpar os lábios.
Eu não sabia o que fazer. Por que eu não tinha uma foice? Seria fácil com uma.
Lá veio seu Baiano, que não se chamava Baiano. Qual o sentido daquela fachada, então? Essa era a parte ruim de ser a morte, não saber nada sobre a vida, não tive nenhum palpite do porquê Lucas odiou tanto Kelly ao ponto de tentar matá-la ou por qual razão alguém que não se chamava Baiano nomeava seu estabelecimento como "Casa do Baiano"
Raimundo Elton, 14 de fevereiro de 2031, 78 anos, cirrose.
O senhor gordo, barba por fazer, usava uma camiseta de time que não cobria toda a barriga e um calção largo encardido. Tive a impressão de já ter levado várias cópias idênticas dele daquele país, passou as mãos no cabelo ralo, o rosto enrugado e queimado de sol sorriu para Kelly de forma quase paternal. Ver a contagem de dias dele me tranquilizou, significava que meu sistema não tinha falhado, o problema era Kelly.
— O que faz aqui, querida?
—Um copo de café, por favor, Baiano. Amargo.
Seu Baiano, ou Raimundo Elton, entrou para buscar o café de Kelly. E eu não entendi também o conceito de pedir uma bebida quente aquela hora da noite. Ao redor, a rua estava quase vazia. Ninguém ali queria comemorar o Halloween, algumas luzes abertas e carros estacionados, dois adolescentes jogando conversa fora. Nada de anormal.
Se você fosse uma entidade maligna e temida pelos humanos, como apareceria a eles pela primeira vez? Eu precisava falar com Kelly, pedir gentilmente. Talvez tivesse pena de mim e facilitasse o trabalho, era assalariada e entendia situações como essa, quando o chefe te exige algo impossível, e você obedece mesmo sem saber o motivo, simplesmente porque já o obedeceu há anos e não sabe dizer não para caprichos idiotas.
Não muito longe, havia uma boca de escoamento por onde passava o esgoto, e decidi fazer uma entrada triunfal por ali. Assim, Kelly podia se assustar e seu coração parar, eu sabia que isso acontecia com humanos. Era questão de inteligência, de maneira sobrenatural, assumi a forma que a garota entendia como a personificação da morte, naturalmente seria uma aberração de foice e capa.
Me materializei na boca de escoamento do esgoto, dentro de um caixão destampado com um remo, usando-o como barco. Musgo gosmento e cheio de vermes escorria de dentro do caixão, com folhas de Jasmim branquíssimas pregadas. Um barco-caixão. Não sabia remar na água imunda de dejetos, nunca tive braços antes. Dei um jeito, desengonçado. O olhar de Kelly pousou sobre mim quando a luz do luar me alcançou, boquiaberta ela me fitou, e para o meu azar não morreu. Remei até o caixão de madeira clara ficar preso em algo nojento, e saltei para fora do escoamento com agilidade. Pernas serviam bem pra saltar, por que humanos andavam?
Minha pele era roxa, roxa como o céu crepuscular. Toquei meu rosto e encontrei dois buracos fundos, sem globos oculares, mesmo assim consegui enxergar. Me faltava um nariz, no lugar também havia um buraco e meus lábios eram costurada. Tive que arrancar as linhas com as unhas. Boca. Uma linda boca funda e escura, sem dentes e língua. Era tão emocionante ter finalmente uma boca, a parte mais importante e destrutiva do ser humano. Só é preciso de uma boca para gerar estragos irreparáveis. Enfiei a mão e o punho na garganta, feliz. Meu cabelo, assim como o de Kelly, era longo, preto e sedoso. Não pude deixar de enfiar um jasmim ali. Andei aos tropeços, sem entender a roupa que usava, tinha mangas e a saia só cobria uma das pernas. Sem sentido.
Concentrando-me no objetivo de agarrar a humana fujona, deixe pra lá as sensações grotescas que era ter um porco, e andei até a frente da casa do Baiano para conversar.
Ela bebericou o café que o homem lhe deu e me observou sem correr. Por que ela não temia? Todos me temiam. A forma como ela me imaginava era realmente adorável, até fofa se comparada com outras personificações. Não tinha nem a foice! Mesmo assim, por que ela não correu?
— Legal a maquiagem.
— Você pode morrer? — Fui direto ao ponto.
— Não.
— Você pode morrer, por favor? – Repeti, minha voz era rouca.
— Não.
— Por que você não morre? É só morrer! Sabe morrer?
— Isso é uma pegadinha do programa Silvio Santos?
— O quê!?
— Olha, a festa fica na avenida. A maquiagem está tão real... — Ela tentou me tocar e me afastei velozmente, ser tocada por um humano já ia além dos meus limites. — Como entrou no esgoto? Sua doida!
— Kelly, eu preciso que você morra.
— Como sabe...
— Outra! — Exclamou Raimundo Elton, puxando a cadeira para mim. O fitei, incrédula, o mundo já não é o mesmo. Não se fazem mais humanos como antigamente. — Esses jovens! Tratei mais café.
Sentei, obediente. Seu Raimundo me serviu meio copo de café, café para a morte. Lá estava eu com Kelly, na mesa da casa do Baiano tomando café.
Ela me olhava com admiração, meio nervosa até. Já que estava lá, resolvi tomar o café. O líquido quente passou direto pela fenda chamada boca escorreu para dentro do meu corpo, o primeiro sabor que já senti.
— Credo! Credo! Que nojo, como conseguem? Que horror! — Afastei o copo na mesa. — Vocês realmente ingerem esse veneno nojento? Por isso o metabolismo não aguenta e vocês morrem! Que horror! Que horror!
Kelly deu uma risadinha e olhou para as mãos, também foquei nas minhas, bem engraçadinhas.
— Desculpe, pode procurar outra pessoa para pregar peça ou assustar? Não tive um dia bom.
— Procurar outra pessoa?
— Sim, essa pegadinha não vai pegar bem no seu canal do YouTube, sério. Não tô com ânimo. Dia horrível, vida horrível.
— Vida horrível? — Contorci minha boca para imitar um sorriso de gente. — Poxa, então tu podias ajudar nós duas morrendo agora, vai!
— Sinceramente, não faria diferença mesmo — respondeu com a voz agressiva. — Eu não sou importante, se eu morresse hoje ninguém ia sentir falta.
— Interessante, 3,5 bilhões de anos recolhendo vidas nesta terra e nunca encontrei ninguém que não fosse importante.
— Mesmo, dona morte? — Referiu-se a mim com deboche. — Vai encher o saco de outro!
— É sério, estou tão cansada de protozoários, humanos, tigres. Mas todos vocês são importantes, se não o fossem, o tempo não se incomodaria em findar pra vocês. Veja os gatos, por exemplo, vivem no máximo até 16 anos, porque na ordem de importância eles estão na frente, as tartarugas, menos importantes, estão na casa dos 150! Mesmo assim, humanos e protozoários, todos um dia morrem, mesmo que me odeiam e eu não queira fazer isso.
— Pois escolheu uma péssima cliente. Já estou morta em vida.
Fui promovida de morte a psicóloga.
— Por que?
— Ninguém gosta realmente de mim, nem tenho plano funerário. Se eu morrer, só vão perceber pelas faltas no trabalho, e, como não vão pagar as despesas do meu enterro, meu corpo será encaminhado para alguma faculdade e dissecado em nome da ciência. Só assim pra mim entrar na faculdade, como um corpo.
— E a sua... — Tentei lembrar o nome daquela coisa importante. — Sua família?
— Não tenho família, sou indesejada, um erro no mundo. Meus pais me abandonaram e não os conheço. Vivi em um abrigo até os cinco anos, quando um casal me adotou, e do nada, quando descobriram que iam ter seu próprio bebê, eles me devolveram. Fiquei na fila de adoção, quanto mais você cresce e deixa de ter bochechas fofinhas, mais tempo fica nessa fila. Nunca mais saí. O governo me amparou como um estorvo aos cofres públicos até me enfiarem num emprego ruim, e então sumiram. Não tenho ninguém. Sou descartável
— Estou te rondando desde essa manhã, vi seu importantíssimo trabalho de empacotar pães, alimentos. Tentei te pegar várias vezes na festa de halloween, e escapou mim. Quando alguém escapa de mim, o tempo presenteia a pessoa com um pouco mais de si. Mas dessa vez ele exige que eu te leve! Então só pode ser importante.
— Como sabe tanto da minha vida? Como sabe da padaria? — Indagou com raiva. – Moça, para com isso.
— Vida, eu não sei nada sobre a vida e nem porque ela é tão legal assim! Vocês gostam da vida ou só têm medo de mim?
— Moça, para com isso, por favor. Dia difícil, meu ex-namorado tentou me matar!
De trás do balcão, seu Baiano ouvia tudo empalidecendo aos poucos, inerte.
— Eu sei, eu estava lá.
— Para! — Ela levantou-se, empurrando a cadeira violentamente. — Vou me atrasar pro emprego amanhã, boa noite.
— Você sempre se atrasa, se atrasou até pra me encontrar. Te vejo agora, mas não sei o número de seus dias. Por enquanto está atrasada alguns minutos, mas quem sabe não se atrase mais meio século. És um mistério.
— A morte não existe, não assim.
— Esse é só o jeito que me imaginas.
Sacudiu a cabeça com força, como que espantando marimbondos.
— Por que você existe?
— Enquanto a humanidade viver sob a face da terra, existirá peste, guerra e dor e tudo é culpa de vocês mesmos.
— Tá dizendo que é obrigada a me levar?
— Sim, o tempo de cada um está prescrito. Prescrito por meu chefe, o tempo.
— Diga para o tempo me dar mais tempo!
Eu sabia que Kelly estava prestes a me agredir, não consegui convencê-la a vir comigo, e depois de seus gritos, eu queria fazer o contrário e convencê-la a ficar, pela primeira vez, interceder pela vida. Como todos os humanos, ela queria viver mesmo diante das adversidades.
Talvez seja por isso que sou proibida de saber sobre a vida das pessoas, porque quando se sabe, não se consegue simplesmente acabar com elas. Deixam de ser criaturas com metabolismo funcional e células, transformam-se em seres emocionais, tristes, felizes, em algo além do orgânico.
— O que você vai fazer se eu pedir pro tempo te poupar?
— Vou... — Ela parecia tão em choque e surtada, que simplesmente aceitou quem eu era e levou o questionamento a sério. — Vou parar de lamentar o passado, tentar aproveitar a vida. E eu... Eu não tenho medo de você, nem tem uma foice. Te chamei tantas vezes... Resolveu vir justo quando quero ficar!
— Não sou eu quem resolvo, mas por que quer ficar exatamente agora?
Seu Baiano correu para dentro, ela quase não elevou a voz o suficiente para me responder.
— Não sei.
— Talvez não queira morrer, apenas matar a dor e a incerteza.
— Dona morte, me dê mais tempo. Alguém ainda pode me amar, quero saber como é isso.
Compadecida, encarei ela, aquele metabolismo funcional, o coração batendo. Soube o significado de viver, seria mais difícil trabalhar dali pra frente. Por 10 segundos ninguém na terra faleceu, mas tive que continuar, de um jeito ou de outro.
Foram os primeiros 10 segundos de férias da morte, e isso pode ter impressionado o tempo, o dia em que a morte parou por 10 segundos. O cálculo foi refeito, saltei para trás.
Kelly Vasconcelos, 100 anos, 19 de novembro de 2094, infarto.
O tempo foi generoso e lhe deu mais diversos anos, sorri para ela, daquele jeito contorcendo o rosto, sem dentes, apenas o vazio preto profundo. A coitada tremia, se achava louca talvez, questionando se minha forma era real demais para ser uma fantasia de Halloween. Era melhor eu ir.
— Kelly, você tem mais tempo. Te vejo daqui há algumas décadas. Aproveite.
Em silêncio, ela desviou de mim. Senti que estava prestes a me desfazer e deixar o corpo material, tive medo disso. Era assim o medo da morte?
— O cara que tentou te matar morre daqui há um ano em uma briga por política, fique tranquila — gritei.
— Se ele morrer mesmo daqui há um ano, acredito que você é a morte.
— Combinado.
— O tempo me deu mais tempo?
— Sim.
— Agradeça a ele por mim, devia sair com ele. Eu saí com meu chefe uma vez. Até logo, amiga.
Então Kelly correu como louca, vi quando enfiou com as mãos trêmulas a chave na fechadura do portão e entrou na casa, um pouco depois do esgoto. O que aconteceu naquele dia, se dormiu, voltou à padaria ou foi ao psiquiatra, eu não sei. Só sei que vai viver, e muito. Ela me chamou de amiga, então acho que posso perguntá-la daqui há 73 anos se ficou tudo bem. Espero que não se torne um ser humano terrível e sanguinário, se ela apenas viver, mesmo sem inventar a cura de uma doença ou ganhar o prêmio nobel, ficarei satisfeita. Só sei que ela é importante, que fará diferença. Todo mundo faz, mudando o mundo inteiro ou mudando o mundo de alguém.
— Precisa de um pouco mais de mim, dona morte?
— Seu desgraçado!
Me virei, dando de cara com o tempo, ele se personificou em uma forma normal para os padrões humanos, estonteante e bonito. Parecia ter experiência em fazer aquilo.
O tempo gostava de café, bebeu o que ainda tinha no meu copo e no de Kelly com um sorriso bobo no rosto.
— Você me aboliu por 10 segundos! Aboliu o tempo e ninguém morreu na face da terra. Incrível. Acho que subestimei você. Mostra atitude, gosto disso.
— Ora, cale a boca!
— Adorei a forma como a senhorita Kelly lhe imagina, está muito bonita.
Sentei na mesma cadeira e o encarei, zangada. Queria jogar na cara dele como era idiota e desnecessário, sua imponência já não me assustava mais. Eu o derrotei por 10 segundos.
— Quer sair comigo?
— Claro que não! As pessoas te querem e me repudiam, não temos nada a ver.
— Então podemos pelo menos tomar um café aqui na Casa do Baiano?
Então, o seu Raimundo Elton, ou Baiano, como gostava de ser chamado, lá naquele país abaixo da linha do Equador, serviu café para a morte e para o tempo, e empalideceu atrás do balcão ouvindo a conversa interminável, da hora que nunca passava, o tempo e a morte tinham muito o que conversar.
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