QUATRO|
"Próxima estação: Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do metrô"
Essas eram as palavras oficiais que marcavam o fim dos meus dias tranquilos.
Após vencer o período de preparo para a primeira apresentação do ano e me despedir da minha família, a realidade da minha vida longe da roça se fez presente e já na segunda-feira de manhã minhas aulas voltaram.
— Que aventura! Quase não conseguimos descer — Bella exclamou com certa dificuldade para respirar. Nós nos recuperávamos do trauma de quase termos sido esmagadas como sardinhas na lata naquele vagão de metrô lotadíssimo, saindo pouco antes das portas fecharem. — Estava com saudades disso?
— Saudades de acordar às cinco, tomar café se engasgando, fazer devocional rápido e passar cerca de 4 horas por dia em transportes públicos? Não sei se esse é o tipo de coisa que dá para sentir falta — comentei com graça, me agarrando à esperança de que faltavam poucos meses até a formatura. — Se São Paulo não fosse tão intensa e não tentasse me matar esmagada todos os dias, talvez o sentimento seria outro.
— Olha lá como fala da Terra da Garoa, hein, caipira? — Bella brincou e nós rimos.
Seguimos para escada rolante, onde sempre me batia desespero, afinal, como uma boa jeca, ali adquiri meus maiores traumas, que incluíam ter caído uma vez, quase perder um sapato, cujo cadarço desamarrado ficou preso em um dos degraus e ter me esquecido da regra básica de sobrevivência no metrô: sempre deixar a esquerda livre para quem quisesse passar antes de ser empurrado por algum mal-educado.
— Presta atenção, Ester! — Minha amiga paulista, cuidando de mim como sempre, me puxou antes que um homem carrancudo me tirasse do seu caminho à força. Quando saí, pedindo desculpas, ainda fui xingada.
— Está vendo só, Bella? Na roça, eu não seria tratada assim nem pelos bichos. Bem, talvez pelas vacas do Sr. Orácio que correm atrás de todo mundo. Mas, mesmo assim!
— A cidade tem suas desvantagens, realmente — Bella admitiu ao sairmos da escada. — Porém, veja pelo lado bom. A rotatividade é tão grande que não temos tempo nem de guardar mágoa de quem passou por nós ou foi rude conosco e... Nosso metrô chegou. Corre!
E mais uma vez, testando toda a minha resiliência, fui obrigada a me exercitar — ou me humilhar, para ser mais exata — e correr para fazer a baldeação antes das portas do transporte fecharem.
Nós entramos ofegantes, mas, graças a Deus, recebemos algum alívio, pois, dessa vez, conseguimos entrar em um vagão mais vazio. Aliás, vazio ao ponto de me permitir enxergar uma passageira específica.
— Aquela ali não é a Camila? — questionei ao ver uma moça bonita, de longos cabelos lisos e loiros, usando roupas elegantes e maquiagem perfeita. Ela estava sentada em um dos bancos azuis escuro a alguns metros da gente. Camila era membro da nossa igreja há muito tempo e se destacava por ser bem ativa nas atividades congregacionais.
Assim que a viu, Isabella torceu o nariz. Desde que comecei a congregar na igreja onde o pai da minha amiga pastoreava, notei alguns conflitos de convivência entre os jovens. Ao contrário do pensamento comum, nenhuma congregação onde pecadores redimidos se reuniam era perfeita e lá não era diferente. Eu, que havia sido incluída entre os membros há pouco tempo, vinha me esforçando para colocar em prática o que o Apóstolo Paulo dizia em Romanos 14.18 "se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos".
— Você não vai me obrigar a falar com ela como fez no domingo passado, não é? — Bella sussurrou e me olhando de canto.
— Deus não se agrada disso, ouviu, mocinha? — relembrei e logo vi o bico se formando no rosto dela. — Sei que vocês duas tem seus desentendimentos do passado, mas, goste ou não, ela é nossa irmã em Cristo, vamos ser, no mínimo, gentis e educadas e cumprimentá-la.
Bella expirou com uma visível cara de tédio.
— Camila está com fone de ouvido e isso significa que não quer ser incomodada — choramingou. — Além disso, sempre que nos encontramos assim, ela me ignora. E antes que me dê bronca, eu a suporto, em Cristo. E só por causa Dele.
— Você pretende ignorá-la também? Não, não. Vamos imitar nosso Senhor e dar exemplo de cortesia, assim como minha mãe me ensinou.
A garota crispou os olhos e manteve sua postura firme, até que após pensar um pouco, soltou os ombros, dando claros indícios do meu sucesso em conseguir a proeza de amolecer aquele coraçãozinho rancoroso.
— Tá, tem razão. Preciso agir como Cristo e não como ela. Mas você vai chamá-la.
Eu não gostava muito de me expor a situações como aquela, é verdade, mas sabia que era necessário agir em prol da união e paz entre irmãos em Cristo.
— Tudo bem.
Dito isso, coloquei um sorriso simpático no rosto e segurando nas barras, andei até estar perto do banco onde a garota se encontrava.
— Bom dia, Camila — saudei alegre.
— Ester e Isabella! Que coincidência encontrar vocês por aqui — Camila expressou ao notar nossa presença e, apesar de não se mostrar tão animada quanto eu com aquele encontro surpresa, foi simpática mesmo assim.
Conforme meu plano, fui gentil e fiz aquelas perguntas corriqueiras desejando saber sobre o estado dela, se estaria na igreja no domingo e por fim, como ia sua faculdade, o que foi seu tópico favorito, pois a instiguei a deixar as respostas monótonas de lado.
— Já me formei em teologia no fim do ano passado, com honras, aliás — ela contou com orgulho. — E pretendo usar muito o meu dom para ensinar. Se querem saber, estou indo hoje mesmo para minha primeira aula de evangelismo infantil em um centro de treinamento missionário muito renomado. Assim que acabar, inicio minha pós-graduação, mas antes resolvi me aprimorar para ajudar os pequeninos com o conhecimento que Deus me deu.
Sorri, admirada por um lado e constrangida por outro, afinal eu nem queria imaginar o quanto eu parecia burra diante de tanta inteligência. Eu me considerava uma pessoa dedicada no quesito aprender da bíblia e compartilhava do interesse de Camila pela teologia, mas meu nível era muito básico e eu sabia que nem se estudasse muito, chegaria a altura dela.
— Que bênção, Camila. Não é, Isabella? — Cutuquei minha amiga que até então estava calada como nunca vi na vida.
— Sim! Que criança não ficaria animada em aprender soteriologia tão cedo, não é? — Bella comentou com uma ironia sutil. Camila não percebeu, pois, além de concordar com ela, fez questão de dar detalhes sobre todas as estratégias teológicas possíveis para que o evangelho chegasse ao coração dos pequenos o mais rápido possível.
Embora fosse lindo ouvi-la falando com tamanha paixão sobre aquele tema, eu não pude deixar de lembrar dos projetos do pastor Tiago em Nova Canaã. Ele também era um entusiasta com aquele tipo de evangelismo e durante o tempo em que fui pastoreada por ele, participei de inúmeros trabalhos voltados para crianças, como aqueles que a Camila relatava. Entretanto, tive a impressão que o pastor Tiago era mais realista em certos aspectos, já Camila, um tanto sonhadora. Talvez, só precisasse de um pouco mais de prática.
— E eu não vejo a hora de levar meus projetos de evangelismo para o pastor Antônio, Isabella. — Camila sorriu animada, mas em seguida ficou mais séria. — Quer dizer, já tentei outras vezes, mas a saúde do seu pai não tem colaborado, infelizmente. Se não fosse por isso, sem dúvidas, eu já teria começado algo. Talvez com a chegada do novo pastor auxiliar, a área evangelística volte a funcionar, até porque, uma igreja sem missões, é uma igreja com dias contados.
Quando Camila terminou seu discurso não muito delicado na forma de se expressar, eu sabia que ela tinha cutucado uma onça com vara curta.
A onça, no caso, uniu as sobrancelhas e cerrou os punhos de uma forma que só me restou pedir por um milagre, no caso, um anjo segurando os lábios de Bella e não lhe deixando rebater as sutis ofensas feitas ao ministério do seu amado pai.
E o milagre veio com a chegada da nossa estação, livrando-nos de uma possível e quase inevitável discussão. Nos despedimos de Camila e somente ao ver o metrô levá-la embora sobre os trilhos é que resolvi remediar a situação.
— Viu? Não foi tão ruim, não é? — pontuei preocupada com a forma que Bella respirava. Parecia um touro antes do rodeio. Ela me olhou com uma cara feia. — Não fique brava. Você agiu certo, amiga.
— Sabe de uma coisa? — ela começou após um longo suspiro. — Eu poderia mesmo ficar brava, mas vou orar. Orar para que Deus dê logo um marido a Camila. E ele a leve para evangelizar o mundo! De preferência alguém que more a doze horas de fuso-horário daqui!
Ri do seu exagero, mas disfarcei quando ela me encarou.
— Não ria, Miss. Simpatia ou vou orar para que você também se case e seja vizinha dela.
— E deixar você sozinha no Vale das Solteiras? Não sei não. Vou orar também, assim fechamos um condomínio em algum país da Ásia — brinquei também e ela enfim riu. — Chega de bobagens ou vamos nos atrasar.
E, de fato, nos atrasamos.
Depois de passar mais alguns apertos, desembarcamos no nosso destino.
Bella foi para o seu campus e eu para o meu, ambas apressadas e correndo em direções opostas.
Os primeiros dias costumavam ser sempre animados e faziam minha melancolia passar, afinal era bom rever os colegas e se empolgar com as novas matérias. Meus professores eram ótimos, experientes e traziam projetos legais para estimular nossas habilidades musicais e oferecer oportunidades de servirmos ao Reino de Deus.
Assim que cheguei a classe, me sentei no canto, próximo a janela e enquanto a aula não começava, retirei meu diário da mochila.
Adquiri o hábito de transcrever meus sentimentos para o papel após ouvir minha mãe contar que esse era o método usado por papai para não se sentir sufocado, já que tendia a engolir tudo, a ponto de ficar adoecido.
Eu, semelhante a ele, também costumava fugir de encarar minhas lutas internas, até despejar, em palavras, todo o peso carregado em meu peito. Foi assim que cheguei ao meu terceiro diário.
Folheei as páginas escritas até chegar ao meio do caderninho vermelho e reli meu último relato, escrito enquanto eu ainda estava de férias na roça. Sorri ao relembrar quão desastrada minha cunhada era na cozinha e as horas intermináveis sendo modelo para os vestidos de noiva costurados por minha mãe, ouvindo ela me dizer o quanto esperava que eu casasse logo. Depois comecei a escrever:
[Segunda-feira]
Oi, diário!
Prometi que não demoraria para escrever e aqui estou para cumprir minha palavra.
Dessa vez não tenho histórias sobre bodes raivosos ou queimaduras em fogão a lenha.
Voltei àquela velha rotina e já me sinto sufocada com a cidade grande.
Eu não queria começar minhas aulas reclamando e, não se engane, estou feliz e grata a Deus por voltar para o meu amado mundo da música
É só que...
Sinto falta da minha casa acolhedora e seu cheiro de biscoito de nata, dos bichos fedidos do vovô, principalmente dos cavalos. Ah! E como me faz falta ver as estrelas todas as noites (Chega a ser impressionante a ausência de estrelas aqui em São Paulo. Todas as noites parecem nubladas e sem vida. Que tristeza!)
Pelo menos não fui a única a passar por isso.
Recebi um diário velho do meu pai. Apolo acertou em cheio no presente e não por menos, ele me conhece bem e sabe o quanto significa para mim ter acesso às memórias de alguém de quem sinto saudades todos os dias.
Por ser um missionário que viajava durante algumas épocas do ano, papai lamentava todos os dias a falta que sentia de seu lar, o quanto ansiava retornar e como nunca se acostumaria a nossa ausência.
Talvez um dia eu me adapte. Talvez um dia eu retorne de vez.
Quem sabe?
Eu só espero vencer esse último semestre, sem perder o juízo de vez.
Será que consigo?
Nos vemos em breve.
Ester C. Carvalho.
— Vamos nos inscrever no Comitê de Evangelismo nesse semestre, dona Ester Clarice? — questionou Asafe, um dos companheiros de classe, roubando minha atenção.
Nossa amizade era engraçada, pois, além do fato de compartilharmos a mesma fé e sermos dois caipiras que migraram da roça para a cidade, não tínhamos muito em comum. Ele se achava estiloso, usando apenas roupas pretas, tal como um artista de rock, nunca perdia a piada e era um verdadeiro autodidata instrumental, o que lhe garantiu a posição de violonista na orquestra da nossa universidade. Aquilo que eu levava dias para entender e executar, ele fazia sem muito esforço. Contudo, seu maior defeito era ser um pouco relapso e preguiçoso, por isso, nos ajudávamos. Eu o mantinha na linha e ele me explicava tudo de maneira simplificada. Éramos a dupla perfeita.
— Estou pensando ainda, Asafe Joaquim — respondi um pouco tímida enquanto separava meu dinheiro para comprar um café na lanchonete.
— Não tem essa de pensar não. — Ele se espreguiçou de um jeito nada discreto e tirou sua toca, revelando seu cabelo preto todo bagunçado. — Vou te ver lá, ou vamos encerrar essa amizade aqui e agora.
Dei risada e semicerrei meus olhos para o engraçadinho.
— Você quer me ver lá só para testemunhar mais um vexame meu, não é? Ou se esqueceu da vez em que fomos cantar no hospital e eu pisei sem querer no pé daquele pediatra, fazendo aquelas criancinhas doentes rirem dele?
— Não apenas me lembro como também caí na gargalhada junto com as crianças. Você é uma comédia, Ester e o grupo será chato sem você. — Ele colocou as mãos no bolso da jaqueta de couro. — Aliás, você também deve ter se esquecido como foi fácil falar de Cristo com os pequeninos depois desse ocorrido. Seu feito deixou todo mundo mais relaxado.
Pensei um pouco e realmente, participar do comitê de evangelismo transformou minha forma de enxergar a vida e eu não podia perder a chance de viver aquilo novamente.
— Certo! Me avisa quando o grupo estiver formado? — pedi e ele assentiu. Depois olhei para minha agenda e aquela lista interminável de tarefas do semestre me lembrou de algo. — Mudando de assunto, será que posso contar com você nos próximos trabalhos?
— Depende. O que eu ganho com isso? — ele brincou.
— Hum! Vejamos. Quer algo da lanchonete? Estou indo pra lá.
Ele franziu o nariz.
— Não! Lá eles não vendem aquele seu bolo trufado divino. Essa é a única coisa que mataria minha fome agora — ele lamentou, me fazendo rir. Sua gracinha me fez lembrar que aquela era uma das minhas receitas mais pedidas por meus amigos e, curiosamente, a favorita do pastor Tiago, que sempre pedia por um desses doces quando nos víamos.
— Ok, você venceu. Prometo saciar essa sua vontade logo, mas agora você precisará se contentar com pão de batata da cantina. Tá bom?
— Pelo visto, não tenho outra escolha. — Ele expirou e pegou sua carteira, não sossegou enquanto eu não aceitei que ele pagasse a conta. — Vá logo lá ou não vamos poder comer juntos, antes que a aula comece.
Dito isso, saí andando da classe e segui até o refeitório, entrando na fila da cantina.
"Será um ano agitado" pensei e enquanto esperava a minha vez de ser atendida, senti meu celular tremer no bolso da minha jaqueta.
Responder mensagens era algo que eu geralmente fazia em casa, mas o ócio me levou a adiantar isso e eu poderia dizer que foi providencial, pois se tratava de um recado do Sr. Ageu dizendo o seguinte:
"Bom dia, querida Ester. Espero que não tenha se esquecido da nossa conversa no teatro. Tenho uma boa oportunidade de emprego para te oferecer e já cuidei de todos os trâmites antes da minha viagem. Venha até a Primeira Igreja de São Paulo, sábado, às 13 horas. Procure pelo maestro Ítalo. Ele é um dos idealizadores do projeto e se encantou depois de te ver tocando no sábado passado. Considere aceitar a proposta dele, se for possível. Saudações em Cristo".
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