OITO|
— Você tem certeza? Posso ficar no ensaio do coral com você, assim voltamos juntas para casa — Bella sondou enquanto andávamos pelo corredor da faculdade, rumo a sala de ensaios.
— Não, não precisa. Saindo daqui, pretendo encontrar com o Comitê de Evangelismo — avisei e aproveitei o ritmo lento da nossa caminhada para responder a algumas mensagens acumuladas no aplicativo. Eu mal tinha tempo para respirar e já começava a receber broncas de minha mãe sobre a demora em atender as ligações ou Apolo puxando minha orelha pelo mesmo motivo.
— Tudo bem. Eu também tinha um compromisso com os jovens da igreja — ela contou. — Por falar nisso, pastor Tiago sempre pergunta de você. Estava preocupado com sua ausência nas reuniões de oração.
Por coincidência, enquanto estava me desculpando com minha família, recebi uma mensagem do pastor, perguntando se eu estaria disponível para participar do piquenique com os jovens no próximo sábado a tarde e prometi a ele me esforçar para estar lá.
— Sabe como é a vida corrida de universitária, não é? — questionei e Bella assentiu. — Espero me adaptar logo. Ainda assim, diga ao pastor que estarei na próxima reunião.
— É bom mesmo. Você precisa ver com seus próprios olhos como nosso pastor Tiago tem sido bem tratado. — Fez uma pausa — Principalmente pelas moças solteiras.
Sorri ao imaginar a cena.
— É, é sempre assim no começo. — Dei de ombros, lembrando de algumas recordações de Nova Canaã. — Embora ele seja gentil com todos, é também reservado e prefere passar seu tempo com livros. Talvez, por isso, nunca vi nenhuma moça manter interesse por muito tempo. É uma pena.
— Talvez seja diferente dessa vez — Bella uniu os lábios.
Olhei para a minha amiga e algo me disse que ela estava escondendo informações preciosas.
— Por que acha isso?
— Bem, é que...
— Ester Clarice, eu te vejo na reunião do comitê? — Asafe interrompeu Bella, nos dando um susto. Ele colocou o braço por cima do meu ombro e puxou minha trança, como Apolo fazia para me irritar.
Olhei feio e me afastei do aperto dele, depois deu uma risadinha.
— Claro, Asafe Joaquim.
— Não revele meu segundo nome perto da sua amiga — ele sussurrou um pouco ansioso com a presença de Bella, sem se importar com o fato dela ter voltado sua atenção para o celular. — Ela ainda se lembra de mim?
— Não sei. — Dei de ombros e chamei a atenção da minha amiga. — Bella, já te apresentei ao Asafe?
— Sim, mais de três vezes. — Ela esticou a mão para o rapaz, dando um sorriso simpático. — Na última vez, você até prometeu ir visitar nossa igreja, não é?
Asafe a cumprimentou nervoso e sorriu.
— Foi mal. Me programei para ir nas férias, mas precisei ir ajudar minha mãe com o sítio dela. — Ele fez uma pausa ao ouvir seu celular tocando. — E por falar nela. Com licença, meninas.
Aproveitando a deixa, me despedi de Bella, pois notei que estava atrasada para o ensaio.
Apressei meus passos e cheguei a sala. Entrei e, como de costume, vi os coristas divididos em seus naipes, aguardando pela regente. Cumprimentei alguns colegas e fui para o piano esperar pelo aquecimento. Aproveitei para analisar mais uma vez as partituras do nosso próximo repertório, até ser interrompida.
— E aí, minha pianista favorita? — cumprimentou Carol ao se aproximar e tomar um lugar ao meu lado.
Era meu dia de folga do instituto, mas, mesmo assim, com o ensaio, foi inevitável encontrar Carol.
Durante a minha primeira semana de trabalho, cheguei a conclusão de que nossa convivência não era muito agradável, isso porque o passatempo dela se tornou me provocar usando as palavras de Ítalo quando se referiu a mim na primeira reunião. Isso me constrangia bastante, ainda mais porque minha relação com o maestro não estava assim tão boa desde o meu pedido para ser tratada com profissionalismo.
— Alguém me contou que nossa regente vai ganhar um auxiliar temporário. Quer saber quem é?
— Um novo auxiliar? — Me esforcei para manter minha atenção nas partituras e não nela. — Pode contar quem será, se quiser.
Ela passou o braço por cima do meu ombro.
— Seu namoradinho. — Riu e quando viu a dúvida estampada na minha cara, pareceu entediada. — Ítalo.
A menção do nome dele, fez meu coração disparar.
Brincadeiras daquela natureza só serviam para fomentar ilusões e eu não queria ter meu coração enganado por si mesmo outra vez. O certo seria cortar o mal pela raiz.
— Ítalo não é meu namorado e nem quero que seja — respondi séria, o que assustou Carol.
— Que pena. — Jogou seus cabelos loiros para trás do ombro. — Ele perguntou muito sobre você. Parecia interessado.
Até parece!
Embora eu não tivesse certeza dos sentimentos de Ítalo, eu conhecia Carol e seus truques. Ela já havia brincado comigo assim, afirmando que um dos rapazes tenores gostava de mim, mas uma semana depois ele apareceu namorando outra moça.
— Isso é coisa da sua cabeça, Carol — declarei, fazendo-a revirar os olhos.
— Se não quer acreditar em mim, então tudo bem, mas digo logo que, se continuar lerda assim, caipira, vai morrer sem casar — provocou de um jeito rude e dessa vez foi em quem me assustei.
Um nó se formou em minha garganta e apesar da indignação do momento, não consegui responder.
— Isso é jeito de falar com a Ester, Carol? — questionou Ítalo, vindo do quarto das pastas ali perto, se aproximando com discrição. — Devia respeitar sua colega, não acha?
Senti meu coração errar o compasso ao ser defendida daquela forma.
— Desculpa. Eu estava tentando te ajudar — ela rebateu.
— Não pedi sua ajuda, ainda mais dessa forma. — Colocou as mãos na cintura. — E deveria se desculpar com a Ester e não comigo.
Contrariada, Carol bufou.
— Foi mal, Ester — ela pediu e em seguida saiu, sem me dar a chance de dizer que eu a desculpava.
O clima ficou um pouco esquisito e eu me vi bastante constrangida com aquela situação. Ter Ítalo ali também não era nada confortável.
— Sinto muito. Ela passou dos limites — ele me consolou, preocupado. — Você está vermelha. Quer beber um pouco de água antes de começarmos o ensaio?
Toquei minha bochecha quente.
— Estou bem — garanti.
Ítalo me olhou por alguns segundos.
— Eu pego para você, então. — Ele começou a andar em direção a porta, porém eu, preocupada com alguns olhos curiosos observando toda aquela cena, me levantei e segurei o braço dele.
— Não, não precisa. Eu vou sozinha.
— Senta lá e me deixa cuidar de você — disse sério e tocou minha mão, o que quase me fez morrer de vergonha.
— Agradeço a ajuda, mas posso me cuidar sozinha. — Afastei meu braço dele. — Já disse, não quero que as pessoas pensem as mesmas bobagens que a Carol.
E sem dar a ele a chance de responder, saí por alguns instantes para tomar um ar e me acalmar.
Há poucos dias eu era invisível e agora alguém se importava com meus sentimentos e o meu estado. Como isso foi acontecer?
A situação me deixou muito confusa e inquieta. Eu não queria ter gostado tanto de me sentir especial daquela forma. Parte de mim me alertava a desconfiar de rapazes com o perfil de Ítalo. Ele era cristão, bonito e simpático o bastante para me fazer acreditar que muitas garotas mais bonitas e qualificadas o agradariam, eu não podia me enganar. A outra parte, porém, tinha quase certeza do interesse dele e se apegava com esperança às minhas fantasias.
Antes de voltar, fiz uma oração ao Senhor e pedi sua ajuda: "Pai, acalme a minha alma".
Retomei meu posto no piano e o ensaio foi iniciado, me fazendo desviar o foco do meu coração tolo para algo que eu amava. A música era mesmo um abraço quente em mentes aflitas e, graças a Deus, pude ocupar os pensamentos com notas em partituras. Para ser sincera, a presença de Ítalo, apesar de me atormentar um pouco, foi boa no fim das contas. Estando ali, ele auxiliava dona Nilce e ela também ficava mais tranquila, sem gritar ou dar lição de moral em nenhum músico.
Quando fomos liberados, já no fim da tarde, saí às pressas para meu próximo compromisso com o Comitê de Evangelismo. Encontrei Asafe no caminho e participamos juntos da reunião. Ele me ajudou a manter os olhos abertos, mas ao precisar ir embora mais cedo para atender a uma emergência familiar, ninguém pôde me impedir de dar uma cochilada vez ou outra.
Uma hora e meia depois e com todas as pendências resolvidas, a esperada hora de retornar ao lar e descansar se aproximava.
Ao sair, encontrei o mundo desabando em água e desanimei. Na cidade de São Paulo chuva era sinônimo de trânsito sem fim e isso significava demorar horas para chegar em casa.
Enquanto caminhava para o ponto de ônibus em frente a faculdade, murmurei e senti falta de Nova Canaã. Meu estresse estava no nível mais alto e quando achei que nada poderia piorar, me deparei com o maestro, parado em frente aos portões da instituição, debaixo de um guarda-chuva verde escuro.
Me perguntei o que ele ainda estaria fazendo ali e não suspeitei ser por minha causa, até vê-lo abrir um sorriso para mim.
— Eu estava te esperando — ele avisou ao se colocar ao meu lado. — Está chovendo bastante, então fiquei preocupado e pensei em te oferecer uma carona.
— Não acho apropriado — respondi procurando evitar contato com os olhos bonitos dele. — Não precisa se preocupar comigo, já estou acostumada com o caos dessa cidade.
Ele ficou quieto, mas não saiu de perto até chegarmos ao ponto. Já estava noite e sim, era mais seguro esperar meu transporte na companhia de alguém. Entretanto, com meus sentimentos tão bagunçados, preferia ficar sozinha.
— Pode ir embora agora — pedi baixinho.
Ele cruzou os braços e se manteve imóvel.
— Carol tinha razão quando me contou sobre você ser arisca com os rapazes — ele comentou com um tom engraçado. — Queria entender a razão.
— Eu? Arisca? — Balancei a cabeça. — Não é verdade. Quem me conhece diz que sou um amor de pessoa.
Deu de ombros.
— Sei disso, mas comigo é sempre arisca. Não gosta de mim, por acaso?
Por que ele se importava com isso?
— Apenas não te conheço o suficiente para me sentir à vontade. Só isso — expliquei um pouco impaciente. — E, desculpe, mas acho melhor continuarmos assim.
— Está vendo só? Acabou de provar meu ponto. — Ele sorriu e as borboletas em meu estômago alçaram voo. — Está tudo bem. Mesmo não sendo recíproco, continuo gostando de você e também te acho um amor de pessoa.
Com aquelas palavras acabei me dando conta que talvez eu estivesse exagerando. Guardar meu coração não era uma desculpa para ser grossa.
— Sinto muito, Ítalo. Não é nada contra você, mas... — refleti um pouco, sem saber ao certo como explicaria minha facilidade em me apaixonar por rapazes como ele — , primeiro de tudo, sou complicada e depois, fico ranzinza quando estou exausta e com fome.
— Se aceitasse minha carona, eu poderia poupar uma viagem cansativa e ainda te levar para comer, dona Arisca. — Ele franziu o nariz. — Mas, na sua cosmovisão, minha gentileza é inapropriada.
Apenas balancei a cabeça, concordando. Eu não queria me dar o trabalho de explicar meus pontos de vista naquele instante.
— Sabe — continuou —, Carol me contou que nunca te viu dando trela pra nenhum rapaz. Não é da minha conta, mas, por acaso, você namora aquele garoto esquisito ou é uma daquelas celibatárias?
Ergui as sobrancelhas e o encarei. Ele não parecia estar brincando.
— Não. Não namoro Asafe e também não sou celibatária. Muito pelo contrário. Desde criança, tenho orado para me casar. — Cocei a nuca, constrangida. — Estou esperando pelo rapaz certo e é um pouco difícil encontrar alguém com os mesmos princípios sobre relacionamento que eu. Mesmo assim, quero ser firme naquilo que fui ensinada por meus pais. Eles se guardaram um para o outro e eu pretendo fazer o mesmo, me guardando para o meu futuro marido.
— Isso é bom, Ester. — Ele tocou o queixo. — Admiro moças cristãs com convicções fortes. Você ama a Deus e quer fazer a vontade Dele, qualquer um pode ver isso. — Ele se calou por alguns segundos e pareceu concentrado em seus próprios pensamentos, até que deixou os ombros caírem. — Vejo no seu exemplo quão bom teria sido para mim se meus pais tivessem me ensinado, se fossem inspiração para mim. Meu pai era um homem cristão, mas minha mãe sempre foi um tanto vacilante na fé. Fiquei perdido nas confusões deles e quando meu pai faleceu, tudo piorou. Mesmo assim, venho buscando amar o Senhor e pedindo para Ele me corrigir naquilo que ainda não entendo ao certo. É difícil do mesmo jeito.
Senti um aperto no peito e me solidarizei pela situação complicada que a ausência repentina de seu pai causou.
— Entendo seu sentimento, Ítalo. — Eu o encarei com compaixão. — O Senhor me ensinou duas coisas com a morte do meu pai. A primeira delas é que Ele sempre supriu minhas necessidades como sua filha e a segunda é que Ele envia professores para nos instruir nos bons caminhos. Mesmo quando pensamos que estamos desamparados, não estamos.
— Isso é profundo, Ester. — Ele olhou para baixo. —Você sempre foi firme assim na sua visão de relacionamento? Não vacilou nenhuma vez ou pensou que estava sendo radical demais?
— Algumas vezes sim, mas sempre lembro do que Elizabeth Elliot diz: "Se o seu objetivo é a pureza de coração, esteja preparado para ser visto como alguém muito estranho". — Franzi o cenho quando ele assentiu. Aquele assunto delicado, me deixava um pouco ansiosa. — A maioria não entende meu ponto de vista e pensam que se eu for exigente demais ou estudar muito sobre relacionamentos segundo a bíblia, não vou me casar nunca.
— Bobagem. O Senhor é bondoso com aqueles que esperam na providência Dele.
Aquilo sim me impressionou.
— Também penso assim. — Sorri, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
Ficamos em silêncio por alguns instantes. Ítalo parecia bem intrigado.
— Sabe, eu nasci e cresci na igreja, mas ninguém nunca me ensinou muito além do "você deve se guardar para o casamento". Eu queria mesmo fazer um estudo aprofundado sobre relacionamento bíblico. — Ele quebrou o silêncio. — Por isso, pensei em fazer umas perguntas para uma especialista, posso? Gostaria mesmo de aprender sobre os seus princípios.
Nesse momento, senti minhas mãos suando. O fato dele estar disposto a entender mais sobre minhas convicções era muito bom. Abri minha boca para começar a falar, mas vi meu ônibus cruzando a rua e estiquei meu braço, dando um sinal.
— Olha, mesmo que eu quisesse te mostrar meu ponto de vista, agora não daria tempo — ameacei sair, mas ele segurou meu braço.
— Por favor, eu não tenho ninguém para me ajudar com isso. Estou mesmo perdido nessa área e só quero que você me ajude com materiais. Só isso. — Olhou em meus olhos e mais uma vez me compadeci. Eu era uma boba mesmo. — Posso te mandar uma mensagem? Prometo não falar nada impróprio, nem te incomodar.
Hesitei, confesso.
Senti um frio na barriga. Por que eu sentia como se a armadura envolvendo meu coração estivesse prestes a rachar?
— Tudo bem. Vou te ajudar.
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