Quatro: Bianca Zumbí
Teófilo mal havia chegado e sem nem mesmo ter dirigido uma palavra a mim, conseguiu me colocar numa situação complicada.
Por conta da inesperada vinda daqueles missionários, - entre os quais meu velho amigo estava- precisei ficar confinada naquele refeitório mal iluminado enquanto os espiava por uma fresta na porta. Não, não era por curiosidade e sim porque queria saber até quando eles ficariam parados justamente em frente à escada que eu precisava subir se quisesse retornar ao dormitório.
Até me aventuraria a passar pelo grupo, mas não estava nem um pouco apresentável. Eu usava um pijama de patinhos ridículo, para dizer o mínimo, meu cabelo parecia um ninho de passarinhos e como se não fosse suficiente, as olheiras vinham para completar o pacote "Bianca Zumbí".
Se eu quisesse causar uma boa impressão aos novos membros, melhor seria saudá-los na manhã seguinte, de preferência bem vestida, maquiada e modesta, principalmente modesta.
"Por favor, vão dormir" eu desejava com todas as forças enquanto os minutos de conversa se arrastavam. Eu já planejava montar um acampamento e dormir ali no refeitório mesmo, contudo, Deus ouviu minha súplica e algum tempo depois alguém bocejou e comentou algo sobre estar exausto.
Mantive-me atenta, esperando pacientemente que eles liberassem o caminho e finalmente fossem se deitar. Entretanto, sem razão aparente ninguém tomou o caminho esperado escadaria acima, antes, deram meia volta e começaram a caminhar em direção ao refeitório.
Sim, no refeitório! Onde a Bianca Zumbí, no caso, eu mesma, estava!
Rapidamente recuei, encostei a porta devagar e passei a andar de um lado ao outro pensando no que faria quando alguém entrasse.
Inspecionei o ambiente à penumbra ao meu redor e vi apenas uma espécie de quartinho onde os alimentos eram estocados e questionei quão ridículo seria se eu me escondesse ali dentro e ficasse quietinha, torcendo para não ser vista ou ouvida e... É, seria sim, sem dúvidas, muito ridículo.
"Calma, muita calma!" repeti a mim mesma algumas vezes, tentando manter tudo sobre controle.
Segurei o ar, soltei lentamente e após alguns segundos caminhei, como a dama que era, e tomei um lugar na cadeira mais próxima, decidida a aguardar pelo meu inevitável destino.
Se era daquele modo que Téo me veria pela primeira vez depois de tanto tempo, então, que assim fosse!
Não pude evitar ficar um pouco tensa assim que percebi a aproximação do grupo e agonia só piora a a medida que os burburinhos e as risadas iam ficando mais altas.
Momentos depois eu já podia até mesmo ver algumas sombras através da porta entreaberta e no mesmo instante corrigi minha postura, tentando ao menos domar um pouco meu cabelo, de modo que eu não parecesse tão maluca quando eles entrassem a qualquer instante.
— Sendo assim, espero que fique à vontade em nosso meio. Somos sua família também — ouvi Lídia primeiramente e àquela altura julguei que seria impossível não xeretar a conversa. Será que eu devia ir cumprimentá-los como uma pessoa normal? Pensei, mas logo neguei a possibilidade. Já era vergonhoso demais estar naquele estado, imagine interrompê-los. Eu os esperaria quietinha no interior do refeitório, já estava decidido. — O Micael vai acomodá-lo e cuidar do seu conforto.
— E você acha que Téo não vai se sentir confortável? Passou meses dormindo ao relento — dessa vez Micael foi quem brincou e não pude deixar de me alarmar com a menção daquele nome. — Qualquer colchão duro deve deixá-lo nas nuvens.
— Sim, pois é. Realmente durmo em qualquer canto, Lídia. Por isso, fique tranquila quanto ao meu conforto. Não sou de ficar de frescura como uns e outros — a resposta de Teófilo foi bastante irônica e foi impossível não reparar em seu tom de voz consideravelmente mais grave em comparação aos anos da adolescência. Será que ele havia mudado muito? Eu gostaria de descobrir.— Se ficou em dúvida, a indireta foi pra você, Micael.
Teófilo, aquele Teófilo por quem fui apaixonada por anos e partiu sem olhar para trás estava a uma porta de distância de mim, zombando sem piedade de seu amigo. Que loucura!
— Acho que é melhor subirmos antes que meu camarada aqui comece a expor meu passado diante das belas senhoritas. — Micael riu e eu revirei os olhos com sua gracinha. Pra mim já não era novidade alguma que aquele garoto sempre estivesse atirando para todos os lados, tentando acertar o coração de uma moça desprevenida! — Vai demorar, Téo?
— Não, já estou indo também. Amanhã o dia será corrido — meu velho amigo concordou e eu sorri aliviada ao perceber que possivelmente meu encontro com ele ficaria para o dia seguinte. — Você cuida das meninas, Lídia?
— Fala como se não fôssemos maior de idade — uma voz desconhecida por mim, brincou. — Mesmo assim gostamos muito da Lídia.
— Quê isso, é minha função como lider ser acolhedora — Lídia declarou um pouco mais contida. — E pode deixar, Téo. Suas protegidas estarão a salvo comigo. Vou fazer questão de enturmá-las com as minhas garotas rapidinho! — ela se dispôs e eu sorri com o modo como minha amiga se mostrava muito maternal às vezes. — Quem sabe vocês duas não vão comigo e as outras meninas para Canto da Sereia?
— Já que tocou no assunto — Teófilo começou —, você comentou que a Bianca Maia está nesse mesmo grupo e viajará nesse sábado, certo? — ao ouvir meu nome saindo da boca dele, senti o coração dar um pulo.
O que será que ele queria comigo?
— Sim, minha querida amiga Bibi, vai sim — ela respondeu toda orgulhosa. — Fiquei tão feliz porque ela se ofereceu. É uma moça tão talentosa e tem se mostrado tão capacitada nas aulas que dá no Instituto que certamente será muito útil quando formos para Canto da Sereia.
Mordi o lábio. Ela precisava mesmo dar meu currículo completo ao rapaz?
— Não fazia ideia que você conhecia a Bianca, Téo — Micael comentou meio intrigado.
— Sim, conheço — informou sem muitos detalhes. — E tenho alguns assuntos importantes para tratar com ela.
Assuntos? Que assuntos?
Meu estômago doeu só de supor que na pior das hipóteses ele se lembrava da minha atitude em nosso último encontro e exigiria alguma satisfação.
"Isso é besteira, Bianca. Por que ele faria isso? Passado é passado" repeti isso para mim algumas vezes e respirei fundo. Não gostava nada quando minhas emoções perdiam o rumo.
— Aliás, se puder, peça a ela para vir falar comigo amanhã mesmo, se tiver tempo — ele especificou. — Por favor.
— Seu aviso será dado, sem problemas — Lídia se prontificou e em seguida ouvi os rapazes perguntando às moças se gostariam que eles as esperassem. Quando negaram, alegando que ainda precisavam encher suas garrafas, eles pediram licença e eu não mais os ouvi.
Foi então que enfim depois de tanto tempo esperando fui encontrada na cozinha pelas três. E sim, elas levaram o maior susto de suas vidas.
— Meu Deus! Bianca, quer nos matar? — Lídia questionou arfante e colocou a mão sobre o peito enquanto eu ria.
Cruzes! Eu deveria estar mesmo assustadora. Que livramento Deus deu ao Teófilo, poupando-o de me ver daquela maneira. Pena que as outras três não tiveram a mesma sorte.
— Não sou uma assombração, prometo. — Controlei o riso e após pedir mil desculpas fui cumprimentá-las. Comecei por Lídia e logo passei pelas outras duas moças que haviam chegado com Téo. Uma era mais alta, encorpada, tinha pose de durona e usava roupas pretas dos pés à cabeça e a outra parecia a versão oposta, era baixa, bem magra, toda alegre e colorida, ao estilo hippie.
— Essa é a tal Bianca Maia, meninas — Lídia me apresentou com ênfase e eu sabia que se referia àquela pergunta que Téo tinha feito sobre mim. — E essas, Bibi, são Ellen — apontou para a mais alta e depois para a hippie — e Thainá.
— É um prazer conhecê-la — Thainá saudou primeiro. — Já ouvimos falar muito dos seus pais. Paulo e Renata Maia, não é?
— Sim! — respondi alegre. A história de como meus pais ainda quando jovens montaram um projeto para levar água potável para uma cidadezinha no sertão era comentada vez ou outra por alguém que tivera algum contato com eles. Teófilo certamente sabia e deveria ter passado as informações para as meninas. — Eles são meus exemplos.
— Téo nos contou sobre como seus pais sustentam muitos irmãos em lugares remotos — Ellen foi quem revelou exatamente o que previ e isso não me surpreendeu. Até onde eu sabia, meu pai sempre contou do sentimento de admiração e amizade muito grande compartilhado entre ele e Teófilo, sendo o primeiro quem cuidou de tudo para que o segundo pudesse se tornar um missionário. Sem dúvidas, Téo não havia se esquecido da minha família. — Você tem sorte de ter pais tão dedicados ao evangelho assim.
— Realmente e imagine minha felicidade em estar na mesma base onde eles se conheceram e se apaixonaram. — Sorri, sabendo que de certo modo, aquele lugar fazia parte da minha história. — Bem, no tempo deles ainda não havia tantas modernidades e confortos e os cortes de cabelo eram terríveis. Aliás, foi um milagre minha mãe ter achado meu pai bonito com o bigode que ele ostentava por aí. Mesmo assim eles se casaram e deram a luz ao meu irmão e depois a mim.
— Ah, que romântico! — Thainá suspirou. — Agora fiquei ainda mais animada para conhecer esse lugar incrível.
— Bem e que tal se Bianca levá-las amanhã? Assim vocês podem continuar essa conversa — Lídia sugeriu e bocejou, deixando claro que queria logo ir dormir.
— Por mim tudo bem — Thainá concordou e Ellen também. — É melhor enchermos as garrafinhas logo. Está tarde.
Depois de mais alguns minutos, levamos e acomodados as meninas em seus respectivos quartos e enfim consegui retornar ao conforto da minha cama.
— E então, o que fazia lá embaixo? — Lídia sussurrou pra mim enquanto ainda se apontava para dormir.
— Bem, tive dor de estômago e fui tomar um remédio no refeitório. Vocês chegaram de repente e eu acabei tendo que esperar os rapazes subirem para o quarto antes de sair.
— Por que? — Ela sentou em sua cama e afofou o travesseiro. — Deveria ter ido nos cumprimentar.
Fui obrigada a rir daquilo.
— Você ainda pergunta?
— Quanto exagero. — Ela riu também. — Só porque seu cabelo estava um pouco armado e sua roupa é engraçada? Ninguém se importaria. Aliás, seu pijama é mais modesto do que os shorts de algumas moças que já passaram por essa base.
— Obrigada, eu acho. — Fiz uma pausa rápida. — Mas, eu não teria passado por isso se vocês tivessem chegado mais cedo. O que aconteceu?
— Advinha? — Ela fez um suspense, mas logo revelou: — A Kombi do Júlio quebrou. Atrasamos para chegar ao aeroporto e quando retornamos a lata-velha deu problema novamente. — Riu, se divertindo com a situação. — Graças a Deus,Téo sabia bastante de mecânica e nos tirou dos apuros.
Ergui as sobrancelhas curiosa com aquele fato. Minha expectativa para encontrar a nova versão do Teófilo aumentava cada vez mais.
— Aliás, eu não sabia que se conheciam. Ele me fez perguntas a seu respeito, você ouviu?
Um calafrio percorreu minha espinha e o coração palpitou.
— Sim, ouvi. — Expirei, tentando me manter calma. — Vou procurá-lo amanhã.
— Não é por nada não, mas ele é bem bonito, meio carrancudo, mas bonito — ela comentou com um tom de duplo sentido. — Já conversamos bastante, e te garanto que é um rapaz decente. — Ela fez silêncio esperando uma resposta minha, mas como não houve, eu só a esperei chegar aonde realmente queria: — Você ainda pensa em permanecer solteira pelos próximos cinco ou dez anos?
Senti um ardor nas bochechas e me virei apenas para encará-la, sem entender suas insinuações.
— Sim, ficarei solteira por quanto tempo Deus desejar. — Em seguida dei as costas para ela. — É melhor a gente ir dormir agora, o sono já está te deixando estranha.
***
Na manhã seguinte, mesmo exausta e ainda sem ter uma noite de sono decente, levantei antes de todas as outras moças. A primeira coisa que fiz, após meu momento de devocional, foi recuperar minha dignidade. Tomei um bom banho, lavei e penteei o cabelo, coloquei um vestido e até fiz uma maquiagem leve. Quando vi o resultado da arrumação no espelho, dei um sorriso, satisfeita por ter conseguido compensar um pouco do fiasco daquela madrugada.
Já pronta, voltei ao quarto e guardei todos meus pertences. Constatei rapidamente que Lídia já havia acordado e partido para as suas atividades e resolvi imitá-la.
Meu objetivo inicial foi seguir para cozinha a fim de prestar ajuda na preparação do café, caso estivessem precisando. Contudo, meus planos foram logo adiados.
Eu descia as escadas do dormitório tranquilamente quando cruzei caminho com uma moça. Pensei que ela passaria reto, mas ela parou por alguns segundos quando passou por mim e avisou:
— Bianca, que bom te encontrar aqui! Eu já estava mesmo indo avisá-la que estão te chamando lá embaixo.
Franzi o cenho sem entender muita coisa, mas apenas agradeci e segui em frente, descendo um pouco mais rápido. Foi então que prestes a chegar nos últimos degraus, constatei quem aguardava por mim e engoli em seco.
— Bianca?
/////
Não se preocupem, o próximo sairá em breve, muito em breve 😘
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