QUATRO:
Enquanto eu, deprimida, colocava a última mala no bagageiro do ônibus, uma nova onda de tristeza me invadiu. Passei a noite pensando em como era rejeitada pela minha família. Primeiro meu pai me abandonou, depois foi a vez do Rodrigo me dar um pé no traseiro e, para completar, minha mãe decidiu me jogar fora como um cachorro qualquer. Mas, sem problemas, eles não teriam que me suportar por muito tempo. Só mais alguns meses bancando a boa moça e eu estaria livre.
— Todos os seus documentos estão na bolsa, inclusive os de transferência escolar. Não vá se esquecer de dá-los ao seu pai — avisou mamãe enquanto estávamos na fila para entregar a passagem ao motorista antes de eu embarcar. — Sei que está me odiando no momento, mas pode ao menos telefonar de vez em quando?
— Para quê? Você não quer saber de mim — acusei, sem tirar os olhos do livro de romance em minhas mãos. — Nem mesmo vai ter a decência de me levar até meu novo reformatório.
— Acredite, será melhor se eu não encarar seu pai após desses anos. Ele me fez muito mal.
— Mesmo assim, você quer que ele “dê um jeito” em mim. Ótima ideia, Eva — escarneci e ela não disse mais nada até ser minha vez de embarcar.
Para o meu azar, não haveria a menor chance de escape. Minha mãe cuidou de todos os trâmites legais para que eu pudesse ser despachada o mais rápido possível e combinou com meu pai que me apanharia na rodoviária em Nova Canaã.
— Todo mundo já entrou. É a sua vez, suba logo — mandou e em seguida me abraçou à força, aproveitando para sussurrar ao meu ouvido: — Não esqueça quem te criou e não vá acreditar em tudo o que seu pai disser sobre mim.
Eu ainda estava muito magoada com as atitudes dela, por isso não prolonguei a despedida. Quando pude, me soltei de seus braços, dei um breve “tchau” e, após entregar minha passagem, entrei naquele ônibus frio e agradeci por não haver ninguém ao meu lado.
Tentei ficar impassível diante de tudo o que estava acontecendo na minha vida e prometi a mim mesma ser forte, entretanto, seria mentira alegar que não senti um aperto no peito quando vi mamãe caminhando rumo à saída do terminal, sem nem mesmo esperar que meu ônibus partisse. Ela não sentiria minha falta. Ninguém sentiria. Até mesmo Isabella me esqueceria em um piscar de olhos, como meu pai, que só se lembrou da minha existência porque minha mãe me declarou como um caso perdido.
“Bem, que se danem todos eles!”
Eu só precisaria suportar seis meses de uma vida nova e indesejada antes de alcançar minha sonhada liberdade. Apenas seis meses ao lado de um pai que nunca me quis.
A viagem começou tranquila, mas o tédio logo se apossou de mim. Tentei me concentrar na leitura do livro que trouxe comigo, mas minha mente não se atentava às palavras. Enquanto ainda tinha acesso à internet, abri meu Instagram e me deparei com aquelas fotos lindas ao lado de Rodrigo. Senti um misto de saudade e raiva. Para o bem ou para o mal, passei um ano e dois meses ao lado daquele traste. Éramos muito bons juntos. Ele fazia de tudo por mim e, do jeito dele, mostrava o quanto se importava comigo. Eu me sentia bem recebendo seus elogios, presentes e sabia que tudo poderia ser diferente se nós tivéssemos dormido juntos àquela noite. Ele ainda me amaria.
“Nossa, qual era o meu problema? Será que esqueci de como fui tratada?”
Rodrigo não merecia nada de mim! Nem mesmo aquela lágrima sorrateira que escapou dos meus olhos. Sendo assim, sequei minha bochecha, apaguei todas as fotos do meu perfil e deixei claro aos meus dois mil seguidores e amigos nas redes sociais que eu estava solteira outra vez e, ao acabar aquela tarefa, ao invés de pensar no garoto, resolvi desenterrar minhas memórias de Nova Canaã.
Sim, eu já estive lá quando ainda era muito pequena e possuía poucas e boas lembranças do sítio da minha avó, meus primos e tudo mais. Por alguma razão, minha mãe não permitiu que eu tivesse contato algum com a parte da família do meu pai. Eu entendia que o fato de ter se divorciado dele tornava tudo complicado, ainda mais porque ele era um cretino, porém, eu não queria ter me tornado uma completa estranha para todos, o que, sem dúvidas deveria ter acontecido.
Durante um bom tempo, tudo o que fiz foi refletir, ouvir músicas e observar cada detalhe das paisagens por onde o ônibus passava. Conforme me distanciava de São Paulo, o cenário foi mudando, tornando-se mais rural, com montanhas e vacas pastando aqui e ali, mas nem tão rural quanto eu recordava. Aliás, se eu podia dizer alguma coisa sobre Nova Canaã é que ela ficava, literalmente, no fim do mundo, por isso nem me animei quando entramos em Monte do Calvário, a cidade vizinha, até porque eu sabia de que ali, mesmo sendo um lugar sem sombra de dúvida muito melhor para morar do que a roça, não era meu destino. Na verdade, senti mesmo uma grande agonia ao concluir que estava chegando à minha primeira parada antes de ser condenada ao exílio.
Não demorou muito e, quando menos esperei, o ônibus entrou na rodoviária onde deveria haver alguém me aguardando na área de desembarque. O motorista estacionava devagar enquanto eu espiava pela janela, tentando encontrar alguém familiar. Não vi ninguém. Como raios eu saberia quem era o meu pai entre toda aquela gente, se tudo o que lembrava a seu respeito eram as vagas memórias de infância?
O desespero tomou conta de mim.
E se Samuel tivesse mudado de ideia? E se tivesse me rejeitado novamente? Seria muita humilhação.
Demorou algum tempo, mas logo vi um homem mais alto, usando roupas surradas e um chapéu marrom, que se destacava entre as outras pessoas ali. Eu tive certeza de que era ele.
Desviei o olhar no mesmo instante e senti minhas mãos transpirando. Não resisti, olhei de novo. Era ele mesmo.
Eu tinha tantas perguntas, mas meu choque não me permitiu formular nada. Fiquei apenas o analisando, buscando semelhanças entre nós que testificasse nosso parentesco. Eu era pálida e meus cabelos longos e loiros, já ele era mais moreno e seus cabelos castanhos. Ele também era bastante alto e magro, ao contrário de mim de estatura mediana, com as curvas nos lugares certos, como eu gostava de dizer. Ainda assim, as poucas características compartilhadas, como o formato da boca e a cor dos olhos, no caso, azul, me davam algumas garantias de que aquele era o meu pai.
Se eu apenas pudesse saber como ele se sentia. Será que queria mesmo me encontrar? Ele ficaria feliz ou irritado comigo quando me visse? Bem, o fato de andar de um lado ao outro, aguardando, denunciava que, pelo menos, estava ansioso. Eu também fiquei ansiosa de repente e, para manter as expectativas baixas, repeti para mim mesma que aquele era o mesmo homem que me abandonou há doze anos.
Na hora de descer, não fiquei sozinha nem por meio minuto e logo fui reconhecida.
Para o meu choque, Samuel veio muito rápido em minha direção, portando um sorriso largo. Eu não sabia o que fazer e olhava para os lados, procurando uma saída, caso ele quisesse me machucar ou algo assim. Imaginei os piores cenários possíveis, mas receber um abraço saudoso não estava entre eles.
— Glória a Deus! É você, minha filha, minha filhinha!
Ele me apertou como se eu fosse uma boneca de pano, porém, permaneci estagnada e confusa, apenas sentindo o coração dele batendo acelerado contra o peito. Foi estranho, mas, por alguns segundos intermináveis, eu me senti segura e aconchegada, quase como se eu estivesse acostumada a ser abraçada daquela maneira. Quando Samuel se afastou um pouco e me encarou, pude ver seus olhos marejados, os lábios trêmulos e um sentimentalismo que só serviu para aumentar minhas dúvidas.
— Você está tão linda! — Afagou meus cabelos com carinho. — Ah! Como cresceu! É quase uma mulher agora — acrescentou, acariciando meu rosto com o polegar. — Graças a Deus seus olhos ainda são os mesmos da minha menininha.
O que eu estava fazendo? Não podia me deixar enganar. Aquilo tudo não passava de remorso dele por ter sumido sem deixar pistas, ou um jeito de fugir das explicações que eu exigiria quando não estivesse tão petrificada. Se ele pensava que podia me ganhar com um abraço e gracinhas, ele estava muito enganado.
— Sua menininha? — falei secamente, escapando dele com pressa. — Não precisa fingir. Você foi obrigado a me receber e sei que não se importa comigo. Nunca se importou. Não se incomode em começar agora.
Minhas palavras fizeram o sorriso sumir do rosto cínico dele no mesmo instante. Estava claro que parti seu coração e isso não me causou pena alguma. Ele também partiu o meu um dia.
A mente dele pareceu demorar para processar e eu até quis aproveitar a deixa para pegar minhas malas, mas fui impedida.
— Desculpe, talvez eu tenha exagerado — ele declarou, embaraçado, segurando meu braço. — Mas não estou fingindo. Meu coração está explodindo de gratidão a Deus. Pensei que nunca a veria de novo, minha filha.
Senti meu coração palpitar e segurei o ar. Precisava controlar minhas emoções.
— Por favor, posso pegar minhas tralhas para irmos embora? — Meu tom foi de súplica.
— Sim, claro. — Ele uniu os lábios e me acompanhou até o bagageiro. — Você está com fome? Sua avó está preparando um banquete real em sua homenagem, mas se não puder aguentar posso te comprar alguma coisa agora.
Meu Deus, que homem irritante! Eu já havia entendido o jogo dele, por que insistia? Por que não podia ser apenas como um agente condicional supervisionando um infrator?
— Não preciso de nada vindo de você — declarei, entredentes e, após conseguir meus pertences de volta, saí andando na frente.
***
O caminho da rodoviária até o sítio da minha avó demorou cerca de uma hora. A hora mais massacrante de toda a minha vida, sem dúvidas. O clima entre meu pai e eu era o pior possível desde que deixei claro meu desgosto por estar ali. Samuel parecia pisar em ovos ao formular uma pergunta simples, e eu também não fiz questão de ser simpática em minhas respostas. Era insuportável imaginar que aquilo era uma amostra de como seria minha vida nos próximos meses.
Percebi que estava bem perto do fim do mundo quando o sinal do meu celular sumiu, logo quando eu devolvia ao meu Instagram minhas melhores fotos sensuais que Rodrigo, por ciúmes, tinha me obrigado a apagar. O asfalto foi substituído por uma estrada de terra vermelha tão esburacada que me deu enjoo, e por muito tempo tudo o que vi foram árvores de um lado e outro. Demorou, mas os montes verdejantes e as casinhas distantes deram às caras e, já próximos do destino, passamos pelo que meu pai denominou de vilarejo, onde havia uma pequena praça com barracas de frutas para todos os lados. Entramos em mais algumas ruas, subimos uma ladeira íngreme e finalmente chegamos na entrada do sítio.
— Bem-vinda ao seu novo lar — Samuel disse quando seu carro velho e barulhento passou diante do cercado.
Eu não falei nada, mas me mantive atenta quando ele começou a descer com o carro por um morro, sendo impossível não me admirar com a beleza daquele lugar. Reparei nas colinas e árvores no horizonte. Elas eram grandiosas e impressionantes, ainda mais com o riacho que cortava logo abaixo. Chegando mais perto, vi o sítio no perímetro, delimitado pela cerca de arame que o separava de outras propriedades. Tudo ali era muito simples, verde e marrom. Havia alguns tipos de casinhas de madeira espalhadas pelo terreno, uma delas reconheci como uma baia de cavalo, e o outro Samuel disse que era um paiol, uma espécie de armazém, em outras palavras. Além disso, vi também um celeiro de tamanho considerável só para as galinhas ciscarem e não gostei muito quando o motorista me lembrou de certa parte obscura do meu passado ao contar que meu primo Miguel costumava me prender ali só para provocar. Também vi um chiqueiro com alguns porcos gordos, um pequeno pasto onde uma moça escovava um cavalo e, por fim, a horta e o pomar em frente à casa que, por sinal, era humilde também.
— Ali estão elas — meu pai interrompeu minhas observações e me fez olhar para a direção na qual apontava. Vi, na varanda, duas mulheres olhando com expectativa para nosso carro. Um leve nervosismo tomou conta de mim porque, pelas fotos antigas que eu tinha em casa, sabia bem quem eram. — Sua avó Val e sua prima...
— Roberta — completei, sem nem acreditar que eu me lembrava do seu nome e estava prestes a reencontrá-la depois de tanto tempo.
Meu coração acelerou quando, enfim, estacionamos e vi uma das duas descendo as escadas enquanto a outra sumiu entrando na casa. Fiquei um pouco incerta e temi que elas estivessem pensando o pior de mim. Mas que diferença isso fazia? Eu não havia pedido para estar ali, e se não gostassem de mim, ao menos teriam que me suportar, como mamãe sempre o fez. Decidida, me revesti de coragem e atendi quando Samuel me instruiu a sair do carro.
— Ah! Senhor Jesus! Eu não acredito! — exclamou dona Val, uma senhora baixinha, de cabelos curtos pretos, que usava roupas muito coloridas. Assim que me viu, abriu um sorriso largo, apressando os passos para vir ao meu encontro. Era muito esquisito não ter nada além de vagas memórias da sua própria avó. Ao menos eram memórias felizes o bastante para me fazer supor que ela era bastante confiável. — Ah, pequenina, é você mesmo!
— Dá para acreditar em como ela cresceu, mãe? — Samuel comentou, sorrindo outra vez, mas não dei muita atenção a ele, pois me concentrei em observar a senhorinha. — Não quer abraçar sua avó, meu amor?
Nos primeiros segundos fiquei em dúvida sobre o que fazer, mas com uma breve reflexão cheguei à conclusão de que, até onde eu sabia, ao contrário do meu pai traidor, vovó nunca fez nada para me prejudicar. Sendo assim, mesmo insegura, deixei que ela me desse o abraço mais gentil e acolhedor de toda a minha vida. Meu peito ficou apertado enquanto as mãos dela afagavam meus cabelos e a ouvia chorar e sussurrar em meu ouvido o quanto sentiu saudades minhas. Aquilo me deu certo alívio, pois imaginei que não estaria mais tão sozinha assim.
— Você é calada assim mesmo ou só está tímida? — ela me perguntou ao se afastar, secando as lágrimas remanescentes de seus olhos.
— Talvez seja só fome. Ela ainda não comeu nada. — Meu pai resolveu se intrometer e eu me controlei para não revirar os olhos.
— Não é nada disso — desmenti, impaciente. — Estou apenas tentando me acostumar com tudo, dona Val.
— Ora essa, pode tratar de me chamar de vó, ou vovó, se preferir. Nunca deixei de ser sua avó, meu bem — ela disse, mas percebeu meu desconforto e trocou o assunto: — Que tal comermos agora? Roberta foi ver se os pães de queijo assaram e deve estar nos esperando. Você gosta de pão de queijo?
— Sim, mas não quero incomodar.
— Incomodar? Não estará incomodando de modo algum. Vamos lá? — Ela se colocou ao meu lado. Antes de entrarmos, porém, virou-se para meu pai e perguntou se ele iria conosco.
— Vou ver se Ester teve dificuldades para levar a égua para a baia e volto o mais rápido possível — ele avisou e saiu, andando apressado.
Subimos as escadas da varanda e senti meu estômago ronronar quando vi a mesa farta. Eu estava faminta, mas impedida pela educação, me contentei em aguardar enquanto ouvia milhares de perguntas de vovó. Ela quis saber se fiz uma boa viagem, se gostei do sítio, se queria visitar o pomar com ela no dia seguinte e muitas outras questões que respondi afirmativamente. Dona Val, ou melhor, vovó, me alegrava com sua presença cativante e fazia questão de ressaltar a cada minuto quão feliz estava pelo simples fato de me ter ali.
— Olha só! Quem é vivo sempre aparece. — Ouvi uma voz feminina ressoando e sorri quando Roberta saiu do interior da casa segurando uma travessa cheia de pães de queijo fresquinhos que me deixaram de água na boca. Ela foi até a mesa, colocou a comida ali e em seguida voltou para me abraçar. — Ainda lembra da sua prima favorita, certo?
— Claro que eu lembro. — E como não lembraria da prima que vivia me causando inveja por ser mais velha e mais bonita que eu? Uma coisa era certa: o tempo foi mais generoso comigo do que com ela, pois, agora, apesar de bonita, parecia bem brega na escolha de suas roupas.
— Bem, temos muitos assuntos para colocar em dia — ela declarou, animada e, após vovó sair para pegar algumas xícaras a mais, começou seu questionário.
Minha prima queria mesmo saber como era minha vida social na cidade, quantos amigos bonitos eu tinha, se podia sair e voltar a qualquer horário e se conhecia as festas nas matinês . Eu estranhei a euforia dela com aquele assunto, afinal, pelo que mamãe me contou, a família de meu pai era toda muito religiosa, mas gostei dela. Uma pena que não tive tempo de conversar mais, pois fomos interrompidas pelas risadas de meu pai, que surgiu puxando minha mala com uma mão enquanto acompanhava uma garota, com quem conversava com muita familiaridade. Pareciam até pai e filha.
— Quem é? — perguntei à Roberta quando os dois ainda estavam a uma distância considerável.
— Ah! — minha prima murmurou com um pouco de tédio ao olhar para trás. — Aquela é Ester. Ela e a mãe são as protegidas do tio Sam antes mesmo de eu ter chegado aqui.
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Aline Moretho
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