Teias da Sorte
O dia amanheceu ensolarado na pacata cidade de Crossroad Valley e, com exceção de Edward Castaway, o restante dos moradores da cidade seguiam o fluxo normal de suas vidas, apesar de que, se pararmos para pensar na vida de Edward Castaway no geral, dá para dizer que ser despejado de sua casa, também pode ser considerado um fluxo normal.
Desde que se lembra, a sua vida era assim: uma desventura atrás da outra, quase sem tempo para se recuperar da anterior. Ele podia dizer que a maior alegria de sua vida tinha sido Siobhan se apaixonar por ele a ponto de se casarem, e chegou inclusive a pensar na época que a sua sorte tinha virado, mas, como tudo em sua vida, deu um jeito de acabar com seu casamento também.
A mãe de Edward morreu um pouco antes de ele se formar no colégio e, ao invés de usar a herança que recebeu para financiar seus estudos em uma faculdade mais conceituada, teve a brilhante ideia de procurar uma faculdade pública e usar o dinheiro da herança e o de uma poupança que sua mãe pagava desde que ele era criança, para comprar uma fazenda de extração controlada de madeira, para iniciar um negócio próprio.
Por um tempo ele prosperou em seus negócios e pediu Siobhan em casamento, vindo a se casarem imediatamente após terminarem as respectivas faculdades e ela ser promovida a xerife da cidade, mas o seu karma o encontrou e, uma praga de cupins se abateu sobre a sua fazenda, destruindo em poucos meses o que ele tinha construído, forçando-o a declarar falência e vender a propriedade para pagar as dívidas que tinha assumido para tocar o negócio.
O que se seguiu após mais essa desventura em sua vida, foi uma espiral descendente, onde ele investiu em diversos negócios duvidosos, a fim de se recuperar da falência, acabando de gastar a reserva financeira que tinham sem escutar os conselhos de Siobhan, o que culminou na separação deles. Desde então, Edward Castaway vivia cada dia de uma vez. Entre um evento social e outro, tirando fotos e escrevendo as suas colunas sobre a vida em Crossroad Valley.
Ele preparou o café com o restante de pó e açúcar que tinha na dispensa e serviu uma xícara para si mesmo e outra para Nahemah, se perguntando se no inferno existia café. Só o cheiro do café recém-coado já lhe dava algum ânimo, mesmo com todo o desânimo que se abatia sobre os seus ombros, então a bebida quente certamente iria agradar a demônio também.
Subindo as escadas, ele entrou no quarto e viu a jovem mexendo na câmera fotográfica que ele tinha deixado em um canto da casa, por não estar funcionando mais. Para a sua surpresa, o visor do aparelho estava ligado e ela olhava as fotos que ele tinha tirado no dia anterior. Colocando as xícaras sobre a mesa de cabeceira, ele se sentou na cama e pegou o objeto das mãos dela, certificando-se que tinha voltado a funcionar perfeitamente.
— Você consertou? — ele perguntou, olhando fixamente para a tela, enquanto passava foto por foto do nascimento do bezerro — Como é possível?
— Eu só apertei um botão e ela voltou a funcionar — Nahemah respondeu meio incerta, sem saber se tinha feito algo certo ou algo errado —, vi esse objeto jogado em um canto e fiquei curiosa. Me desculpe se mexi onde não devia.
— Não, Nahemah, isso é maravilhoso! — ele exclamou, sem entender o que estava sentindo. Tantos anos tendo só desventuras em sua vida o deixaram sem saber como reagir quando algo bom acontece.
— Que cheiro bom é esse? — ela pegou uma das xícaras em cima da mesa de cabeceira.
— Ah, é café — Edward deixou a câmera em cima da cama e foi até ela, pegando a outra xícara —, nós tomamos pelas manhãs para dar disposição durante o dia.
— Toma quente assim mesmo? — a jovem perguntou sentindo o aroma preencher as suas narinas.
— Sim. Tomamos em goles pequenos para apreciar o sabor.
— É uma delícia! — ela exclamou após tomar o primeiro gole — O Zell iria adorar isso!
— Ele é o meu melhor amigo — continuou, deixando cair o semblante —, ou melhor, meu único amigo. Queria ter trazido ele junto comigo, mas não tive tempo para pensar quando o portal se abriu.
— Ele parece ser importante para você — Edward percebeu o semblante dela e se aproximou. — Talvez vocês se reencontrem algum dia.
— É, talvez — Nahemah deu um leve sorriso e mais um gole no café, esvaziando a sua xícara —, mas enquanto isso, será que tem mais café?
— Tem sim. Vamos descer, eu vou fazer torradas também.
Eles fizeram a refeição matinal e depois terminaram de pegar as roupas e objetos que levariam para a casa de Siobhan. Móveis e decoração estavam no inventário da hipoteca e não poderiam nem ser vendidos para levantar algum dinheiro, mas Edward estava estranhamente tranquilo depois de ver que a câmera que pensou ter estragado, tinha voltado a funcionar e que as fotos que tinha tirado com ela estavam salvas na memória interna. Poderia fazer algum dinheiro com aquelas fotos, o que seria muito bem-vindo na sua atual situação.
Indo até a garagem, ele colocou as coisas na entrada e seguiu até o carro. O mais normal seria levar as coisas com ele para o carro de uma vez, mas aquele veículo tinha lhe deixado na mão tantas vezes, que ele nem confiava que ele iria funcionar. Para a sua surpresa, assim que sentou em frente ao volante, viu que Nahemah colocou as coisas que ela trazia no banco de trás e, antes que ele pudesse falar qualquer coisa, já estava sentada no banco do carona, olhando para o interior do carro com admiração. Imediatamente, ele deduziu que não existiam carros lá no Inferno, por isso era tudo uma novidade para ela.
— Ela vai se decepcionar tanto quando essa lata velha não ligar — ele pensou, enquanto levava a mão até a chave que tinha deixado na ignição quando saiu com pressa no dia anterior, mas para a sua surpresa, o veículo ligou de primeira.
— CARALHO, O CARRO LIGOU! — Edward gritou. Nem quando era novo, aquele carro ligava tão rápido e emitia um ronco tão bonito de seu motor.
— Eu não conheço nada sobre carros, mas imagino que seja normal eles ligarem quando as pessoas giram a chave. Ou estou errada?
— Não, Nahemah, não está errada — ele respondeu, dando uma gargalhada que há muito tempo não dava —, mas esse aqui nunca funcionou tão perfeitamente assim. Estou começando a pensar que você me traz sorte!
— Eu não entendo o conceito de sorte — ela disse, olhando para ele —, mas consigo ver uma mudança de espírito em você. Quando te vi depois de sair do portal, recebi muitas informações sobre você e vi a sua tristeza, mas agora eu vejo o contrário disso. Tem a ver com essa tal sorte?
— Deixe-me ver como posso te explicar — Edward levou a mão até o queixo, pensativo. — Você queria escapar do inferno e do nada um portal se abriu, certo?
— Então — ele continuou após ela concordar com a cabeça —, a coincidência de um portal se abrir naquele momento é o que chamamos de sorte. Algo bom que acontece contra as probabilidades é sorte e o contrário disso é azar.
— Então eu posso dizer que foi você quem me trouxe sorte — ela respondeu sorrindo —, e se você está tendo sorte também, é só uma compensação pelo que fez e está fazendo por mim.
— É, talvez seja — ele disse, enquanto saia com o carro da garagem.
Era fato que algo tinha mudado em sua vida depois que Nahemah saiu daquele portal e, a princípio, estava sendo uma mudança positiva. Ele não fazia ideia de até quando aquela sorte ia continuar, mas pretendia aproveitá-la ao máximo. Parando o carro na entrada da casa e saindo sem desligá-lo, para não dar chance ao azar, ele pegou as coisas que tinha deixado na porta da garagem e as colocou no banco de trás, antes de voltar para o veículo e seguir na direção da casa de Siobhan, que ficava na área rural.
— O que é aquilo nas árvores? — Nahemah perguntou, apontando para algumas árvores no pasto da região — Parece um tipo de tecido.
— Eu nunca vi algo parecido por aqui — Edward respondeu, encostando o carro e saindo do veículo para observar melhor.
— Parecem teias de aranha — ele disse, vendo que a cobertura branca, semelhante a um tecido e que cobria várias árvores, tinha vários pontos pretos, que daquela distância pareciam aracnídeos de diversos tamanhos.
— Se você nunca viu algo parecido, por que não registra, como fez com o nascimento do bezerro? — Nahemah perguntou, após ir até o carro e pegar a câmera dele — Não é esse o seu trabalho?
— Eu vou fazer melhor — ele disse, pegando o aparelho celular em seu bolso —, tenho um amigo de infância que é zoologista, acho que ele irá gostar de ver isso.
Vinte minutos depois, Edward estava fotografando as aranhas que teceram a teia de aranha gigante. Austin Parker, o zoologista que ele chamou, estava admirado com aquele fenômeno. Segundo ele, com exceção de algumas espécies, as aranhas tinham comportamentos solitários e teciam teias individuais, sendo inclusive predadoras umas das outras, mas o que eles estavam vendo ali era uma enorme colônia mista, com aranhas de diversas espécies. Cada árvore estava coberta por uma grande teia e outras teias ligavam as árvores como se fossem avenidas, onde os aracnídeos transportavam alimentos de um lado para o outro, ou simplesmente caminhavam juntos, como se estivessem passeando.
Após um telefonema para a emissora de tv local, ele conseguiu uma equipe para fazer a matéria, com a condição de que ele seria o repórter, já que tinha chegado primeiro ao local e tinha conseguido a participação de um especialista no assunto. Orientando o dono da propriedade, eles fizeram uma cerca maior e algumas horas depois, outros repórteres e muitos curiosos estavam até pagando para ver a incrível Aracnópolis, como Edward batizou a colônia dos aracnídeos. Siobhan também ajudou, cedendo oficiais para fazer o policiamento do local e se alegrou quando Eddie lhe disse que tinha conseguido um contrato como jornalista de variedades no Crossroad News, principal noticiário local.
Aquele evento tinha tomado grande parte do dia deles e eles só seguiram para a casa de Siobhan no meio da tarde e se acomodaram nos quartos de hóspedes. Charmie surgiu imediatamente na sala, assim que ouviu a voz de Edward, que correu para pegá-lo nos braços e apertá-lo o máximo que era fisicamente possível sem machucá-lo, sob protestos do felino, que tentava se esquivar.
— Essa bolinha de pelo e fofura é o Charmie, Nahemah — Edward o apresentou para a jovem, que sorria ao ver a cena, mas quando ela levou a mão para acariciá-lo, foi surpreendida por uma ação violenta do felino, que, expondo unhas e dentes, bufou e sibilou antes de atingir a mão dela com as unhas afiadas expostas.
— Meu Deus, Charmie! — Siobhan exclamou, correndo até eles e pegando-o do colo de Edward, que por sua vez, foi ao auxílio de Nahemah.
Com uma toalha que pegou no encosto de uma poltrona, Edward se apressou em cobrir o corte que as garras de Charmie tinham causado na mão da jovem e que começavam a sangrar e imediatamente, ela sentiu algo que nunca tinha sentido antes: dor.
— Tem um kit de primeiros socorros no armário do banheiro — a Xerife disse, segurando o felino, que estava tão calmo em seu colo, que faria qualquer um acreditar que era o mesmo que protagonizou aquele ataque feroz segundos antes. — Eu sinto muito, Naheema, ele não costuma agir dessa maneira, eu não sei o que aconteceu.
— Está tudo bem — Naheema disse, estampando um sorriso em meio a sua expressão de dor —, foi só um arranhão.
— Vem, prima — Edward chamou, ainda segurando e pressionando a toalha enrolada sobre o ferimento, enquanto a puxava para o banheiro —, vamos limpar isso e fazer um curativo.
No banheiro, assim que removeu a toalha e limpou o sangue, ele teve outra surpresa ao ver que não havia corte nenhum na pele. Ela não sabia explicar como, mas o ferimento havia se curado. Edward tinha visto o corte profundo que as garras de Charmie tinham feito na palma da mão dela, mas agora a pele estava lisa e intocada, sem sequer um arranhão ou cicatriz.
Sem pensar muito, ele fez o curativo mesmo assim e enfaixou o local. Siobhan não entenderia aquele pequeno milagre e ele precisaria de tempo para contar a ela a verdade, se é que faria isso algum dia. Naheema era um ser sobrenatural, saído de um portal vindo direto do inferno e não era qualquer um que acreditaria ou absorveria essa verdade.
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