> 07

Surpreendentemente, a vida com um demônio dentro daquele castelo gelado no centro do pântano mostrou-se incrível em vários aspectos e completamente fácil em todos os outros. Ao longo de três semanas, Louis já havia estabelecido uma rotina de afazeres e obrigações para com a casa e consigo mesmo como maneira de agradecer pela tão bem servida hospitalidade. Às vezes, ele mal se recordava da vida nas ruas quando precisava sobreviver de lavagens para porcos e lidar com as pedras e maldições sendo jogadas em direção às suas asas. Agora sempre havia bom alimento para lhe encher o estômago, roupas quentes e fresca, vários pares de sapatos e meias de lã para seus pés que costumavam andar sempre feridos depois de toda uma vida alheio a qualquer conforto. Durante as manhãs que costumavam ser livres, a fada apenas se enfiava na cozinha com Gigi e algumas das outras gárgulas e aprendia tudo o que podia, tentava se fazer útil da melhor forma possível e, apesar dos olhares atravessados de Honda – a gárgula responsável pela cozinha e, também, a mais velha dali – todas as outras sempre adoravam sua companhia, fosse na cozinha ou nos jardins, na horta ou no momento de lustrar a prataria. Onde quer que se mostrasse útil, lá estava Louis com sua roupa mais parca e mãos à obra, ouvidos sempre atentos a uma boa conversa uma vez que descobriu-se realmente amigável depois do temor inicial das criaturas do lugar o acharem uma grande aberração assim como o restante do mundo parecia pensar. Não foi o que aconteceu, no entanto. Louis foi bem recebido por todos apesar de suas asas defeituosas, incorrigível falta de magia e sexo averso ao de sua própria espécie. Nenhum deles parecia se importar com esses pontos que sempre pesaram no coração da fada, somente seguiam suas vidas da melhor maneira que podiam e pareciam satisfeitos com a companhia, algumas longas trocas de palavras e risadas sorrateiras pelos cantos.

O almoço era servido no salão de jantar, religiosamente ao meio do dia. Kendall quase nunca compartilhava o momento com os outros dois e as gárgulas apenas sequer cogitavam a ideia absurda de sentar na mesma mesa que o demônio dono do castelo apesar de sempre o terem em grande estima. Louis pensava que isso se dava à carranca que o senhor demônio do pântano, Harry, sempre trazia consigo em seu rosto bonito e de bons traços. E, também, aos chifres. Até mesmo as gárgulas não utilizavam de sua verdadeira aparência mágica para o dia a dia, optando sempre por aparência humanoide e comum. E, bem, a fada não poderia culpá-los uma vez que claramente faria o mesmo se fosse capaz de esconder suas asas defeituosas por meio de uma magia que não tinha. De qualquer forma, os almoços eram quase sempre apenas Louis e Harry com suas conversas sobre a história milenar da magia, de todas ela. O demônio ainda insistia fielmente que havia algo escondido dentro de Louis, enrolando-se como uma serpente sob sua pele e ansioso para ser desperto apesar de não responder a nenhum dos esforços que vinham sendo aplicados todas as tardes por horas seguidas enquanto ambos se perdiam pelo pântano e o demônio lhe mostrava todos os tipos de feitiços, encantamentos e maldições que poderia ajudar alguém. E ferir, também. Possivelmente matar. Após a metade da segunda semana, Louis desistiu de dizer que era apenas um aborto sem uma única gota de magia válida e então passou a beber todo aquele conhecimento como se fosse realmente útil, a verdade era muito mais sombria no entanto. Louis sentia suas bochechas corar somente com a ideia de admitir que gostava da maneira como o senhor demônio do pântano falava arrastando a língua sobre os dentes brancos e alinhados com grande perfeição, ele também sentia-se satisfeito com como as palavras pareciam enrolar em sua boca numa dança suave antes de serem cuspidas para fora, era uma forma estranha de descrever suas sensações, mas a fada não conseguia colocar em vias de fato todas s coisas estranhas que aconteciam dentro de seu estômago sempre que Harry estava por perto com seus olhos muito verdes que eram tingidos de preto sempre que usava da magia em seu ser, assim como as pontas dos longos dedos e unhas bem feitas crescendo em garras afiadas. Até mesmo dos cascos de bode e espinhos por todo o ombro, Louis achava incrivelmente bonitos à luz da tarde quando o sol refletia seu explendor nos terrenos lamacentos do pântano. Entretanto, para a fada, nada poderia se comparar aos belos chifres sobre a cabeça do demônio, lugar onde ele se permitiu perder os olhos várias vezes, contando as voltas que o escuro contorno formava, memorizando as ondulações e imaginando quase vívidamente demais como seria arrastar seus dedos por todo o comprimento, a sensação gelada ao toque ainda que houvesse clara reação por meio do demônio porque aquilo, obviamente, fazia parte de seu corpo tanto quando o sorriso mortal que sempre oferecia à Louis depois de falar algo que ele julgava coerente e digno de estar em um estandarte.

Em pouco tempo, a fada masculino aprendeu que Harry era orgulhoso assim como todo demônio deveria ser, ele não escondia seus gostos excêntricos e tampouco se diminuía por eles. Parecia sempre disposto a esclarecer suas origens meio humanas e levantar a memória de sua mãe a um verdadeiro pedestal cheio de sentimentos não necessariamente próprios de humanos, Louis diria. Ele também gostava disso, no entanto. A maneira como o senhor demônio do pantano parecia um espécime único e singular naquele mundo encantado cheio de semelhantes supostos... bem, lhe aquecia o coração quase grosseiramente. A fada sabia que não deveria se comparar a uma criatura tão majestosa quanto Harry, mas apenas não conseguia evitar de colocar lado a lado a unidade particular que ambos eram. Obviamente que Louis não havia escolhido todas aquelas desgraças ordinárias para sua vida, porém agora não se sentia tão amaldiçoado por tê-las.

— Você está silencioso demais hoje.

A voz reconfortante chiou pelo ambiente, trazendo Louis de volta para o momento presente onde revirava um filé de coelho em seu prato, olhos fixos abaixo e aquela sensação já familiar pressionando-lhe o estômago com força. Conforme os dias se passavam e tornavam-se semanas, ele não pôde deixar de admitir o quão difícil vinha sendo estar na companhia do senhor demônio do pântano durante as refeições sozinhos. Em suas caminhadas pelos pântanos quando a magia lhe era ensinada de forma teórica, Louis sentia-se mais confortável uma vez que sempre havia algo apropriado em que pensar. Algo que não era a sensação quente entre suas pernas, a mesma que lhe trazia sonhos invariavelmente quentes, manhãs úmidas e banhos cada vez mais longos. "A sexualidade é bem comum, Louis. As criaturas se apaixonam como qualquer outro ser sobre a terra, o amor é a matriz de Gaia tanto quanto o equilíbrio natural" havia sido a resposta de Zayn para suas indagações sobre os motivos escondidos que o levava a colocar-se tão incrivelmente duro por pensamentos nada morais sobre o demônio. Normal, tornou-se o veredicto final. Ainda assim... oh, pelos deuses de todo o universo mágico, Louis não se sentia nada normal. Nada mesmo. Nadica.

— Está tarde.

Empurrou as palavras com grande esforço, sentindo-se quase tolo pela clara mentira que escorria de sua língua como se Harry não fosse capaz de perceber. Ele era. Claro que era. Nunca antes em toda sua existência, Louis conseguia se recordar de conhecer criatura mais poderosa do que seu anfitrião. O demônio não costumava usar nem mesmo uma única mísera fração de sua magia durante as aulas vespertinos e, ainda assim, não havia outra palavra com que a fada pudesse descrevê-lo além de espetacular. "Não" corrigiu-se imediatamente, o garfo de prata clara girando um pedaço simetricamente cortado de cenoura muito laranja. "Harry é glorioso".

— Sinto que exigi muito de você esta tarde — o demônio disse então, seus olhos quase escuros demais. À meia luz de todas aquelas velas quase flutuantes nos cantos o fazia parecer maior, os ombros mais largos e os chifres indiscutivelmente tão brilhantes quanto o céu noturno. — Talvez eu lhe deva desculpas apropriadas sobre isso — largou seu próprio talher sobre o prato e dedicou-se a apenas engolir todos os membros de Louis com aquele olhar sangrento e degustador de almas. Se a fada pensasse que houvesse uma forma de ser devorado, então ali estava. Sentiu-se estremecer sem que pudesse controlar o maldito tremor inconsistente em seus ombros estreitos. — Desculpe-me, Louis. Apenas estou tentando meus meios conhecidos para fazê-lo despertar, achei que magia da morte fosse a chave. Claramente não é. Não voltarei a forçá-lo a coisas assim, prometo.

Para ser realmente justo, Louis não sentiu-se em nenhum momento pressionado. Tudo o que se permitiu processar adequadamente enquanto o senhor demônio do pântano rolava seus dedos através da penugem daquele pássaro – um canário cinzento com plumas macias e olhos muito claros para uma ave – era admiração. Ele, contudo, tampouco poderia negar o tremor suave de excitação em seus dedos porque isso o tornaria um completo mentiroso além de todas as outras coisas. Quando Harry torceu aquele pescoço fino do pássaro em um estalo surdo e então o trouxe de volta com olhos sangrentos... wow, Louis decidiu que nunca antes havia visto nada tão intenso antes. "A alma dele agora é minha e a minha é um pouco mais escura do que supostamente deveria ser" ele disse logo após de deixar o animal voar de volta para o topo das árvores, livre e vivo ainda que morto. "A magia da morte é algo simples e complexo demais em medidas semelhantes. Mas, lembre-se que assim como toda a sorte de magia, a da morte também exige algo de quem a faz. Trazer um pequeno pássaro de volta à vida pode parecer algo sem grande importância. Não pense assim, Louis. Jamais".

— Demônios fazendo promessas? — o tom da fada era calmo, enrolando em sua língua com suavidade. Tranquilo. Quando ergueu seus olhos imensuravelmente azuis e os chocou com o verde escuro meio musgo do demônio, algo dentro de seu corpo rolou quente, quase uma presença. Louis engoliu a seco antes de continuar. — Não sabia que isso era algo possível.

— Talvez não seja, mas ainda o estou fazendo de qualquer forma.

Com os lábios pressionados em uma linha estreita, a fada não pôde deixar de pensar em todas as coisas que vinham acontecendo com sua consciência crescente sobre si mesmo, seu corpo e ansiedades indescritíveis que corria através de suas veias, transformando as longas noites de descanso em uma tortura aguda dentro de sua própria cabeça. Por Harry. Louis parecia sempre se sentir ansioso quando perto do demônio, constantemente preso no fascínio que agitava seus sentidos e fazia o coração de carne e sangue dentro de seu peito pular como um maldito insano. Oh, por Gaia, ele quase sentia-se sucumbir aos seus próprios temores sempre que os dedos do demônio encostava em sua pele nua durante os ensinamentos de magia, fosse casualmente ou não. Mais do que às vezes, Louis pegava-se em um mundo onde ele não era uma fada masculino quebrado e torcido, sem magia e com asas defeituosas. E, nesse mundo, estaria tudo bem dar um passo a frente e tomar aquilo pelo qual seu corpo parecia cada vez mais ansioso para ter. Harry. O senhor demônio do pântano com aqueles olhos viajantes entre o verde e negro, belos chifres e voz calma de alguém que pode trazer seres de volta a vida e ainda assim sentir-se claramente culpado por isso. Excepcional, era essa a descrição adequada para aquela criatura do outro lado da mesa.

— Está tudo bem — Louis afirmou, as bochechas quentes ao finalmente desviar o olhar. — Sobre a magia da morte, está tudo bem. Foi algo bem legal de se ver, sendo honesto. Me fez pensar em todas as coisas que você é capaz de fazer, coisas gloriosas.

— A maioria nem tanto, eu diria.

— Zayn me disse que foi você quem construiu esse lugar, sozinho — a fada disse, seus dedos batendo suavemente sob a mesa, no colo. — Isso é suficientemente glorioso para mim.

— Zayn?

— Um dos gárgulas — justificou rapidamente, sentia-se como se precisasse. — Um amigo, acho.

— Bem, ele está certo então, eu o fiz — Harry recostou-se em sua cadeira, as feições relaxadas em completo contraste com o negro de seus olhos. Em suas palavras não havia nenhum tipo de soberba, apenas a contestação de um fato inevitável. — Mas, antes que possa dizer qualquer coisa tola, lembre-se que não há um único demônio que não seja capaz de algo semelhante ou, até, melhor.

— Ainda acho impressionante.

— Há muito o que achar impressionante além da construção de castelos, Louis.

A fada não saberia dizer o que lhe provocou o tremor recorrente em suas pernas juntamente com uma estranha sensação de calor atingindo-lhe todos os órgãos internos simultaneamente, talvez tivesse sido a maneira como o senhor demônio do pântano o encarava com firmeza, seus olhos jamais deixando os de Louis. Ou, ainda, possivelmente a reação apenas fosse um reflexo sem escrúpulos de todas as noites longas nas quais ele sonhou ser dominado por aquelas mais largas cheias de magia. "Oh, deusa, por favor faça-me moral" suplicou ao redor de uma reza silenciosa em busca de alguma calmaria enquanto aproveitava do silêncio que se seguiu para beber um pouco mais de vinho. Desde que tornou-se um verdadeiro residente daquele lugar, Louis vinha se habituando muito rápido com a maneira como a vida se arrastava ali. Ele se alimentava boa e abastada comida o bastante para desenvolver seus próprios gostos particulares sobre quais pratos o agradava melhor ou não, ele também bebia vinhos e destilados, dormia em uma cama de verdade, macia e suave sobre sua pele geralmente nua. Vestia belas roupas, lavava-se em longos banhos de sais e ervas, mantinha seu cabelo sempre sem nós e... bem, sua cintura já havia crescido o suficiente para que a primeira troca de roupa que tinha surgido em seu quarto não lhe passasse mais através das coxas fartas e quadril cada vez mais largo, tomando formas arredondadas quase femininas, exatamente como uma fada de verdade deveria parecer. Em suma, Louis sentia-se quase digno ali apesar de todas as duas frustrações de nascença. Era como fazer parte de algo, ser finalmente... normal.

— Uh... — murmurou com os lábios umedecidos pela bebida agridoce enchendo seus sentidos, deixando-o mãos corajoso para uma conversa realmente adequada. — E quanto à minha suposta magia, senhor, ainda crê que exista alguma?

Harry não se moveu de forma alguma, seus olhos fixos na fada mudaram para o próprio prato antes de focarem novamente na janela estreita do outro lado do cômodo, por onde um último feche de luz do dia brincava de se atrasar. Por um momento curto demais, Louis pensou que não obteria resposta alguma.

— Sim — o demônio respondeu depois do que poderia ter sido julgado uma eternidade. — Apenas precisamos encontrar o gatilho certo.

Gatilhos.

O senhor demônio do pântano havia falado sobre isso a algum tempo desde então, Louis havia engolido as palavras soltas no ar com avidez esperando que pudesse encontrar um meio para tocar na magia escondida dentro de si da qual todos pareciam estar cientes, exceto ele. "A magia demoníaca é diferente de todas as outras, especialmente para aqueles que nasceram assim" disse Harry em uma tarde de caminhada pelo pântano com os sapos de olhos arregalados coachando ao redor como que em uma sinfonia estranha. "Ela é quase como uma consciência, você precisa entendê-la, despertá-la. Dobrar sua própria magia à sua vontade, fazê-la ceder aos seus quereres e somente então se unificarem como deve ser". Quando questionou a razão de tudo aquilo, recebeu apenas uma incógnita em resposta. "Ela é poderosa demais para as mãos de leigos, é preciso que haja luta e resistência". Desde então, eles vinham tentando encontrar aquilo que faria com que essa magia demoníaca dentro de si – supondo que realmente houvesse alguma – enfim fosse capaz de florecer. Sem resultado algum, no entanto.

— Falando em gatilhos, uh?

A voz de Kendall ecoou pelas paredes, arranhando a estranha tensão na sala e então despedaçando aquele sentimento agudo na base da coluna de Louis que, por sua vez, não pôde deixar de se sentir incrivelmente satisfeito pela interrupção da familiar. Ken trazia um grande livro de capa de couro cru e retorcido com escritos meio quase incompreensíveis em tinta escura, parecia pesado sob seu braço e provou-se ser quando a familiar o jogou aberto contra a mesa, diante de Harry, apenas segundos depois de afastar os pratos com um aceno suave. Louis sentiu suas bochechas arderem ao presenciar – mais uma vez – a facilidade com a qual Kendall podia fazer magia muito melhor do que ele, uma fada. "Não sou capaz de trazer os mortos de volta à vida, mas também tenho meus grandes truques sob a manga".

— Aqui, veja — apontou o indicador com longas unhas vermelhas para uma das páginas, os olhos do demônio imediatamente seguindo seu caminho para as páginas. — O que acha?

— Onde o encontrou?

— Estava dando uma olhada nisso, sabe, tentando outra perspectiva e então...

— Não o feitiço — o demônio cortou rapidamente, seus olhos concentrados apesar de tudo. — O grimório.

Louis sabia o básico sobre magia de bruxos, nada muito aprofundado uma vez que ele jamais veio a conhecer qualquer tipo de feiticeiro durante toda sua vida, ainda assim... as coisas eram ditas pelos cantos e quando se é completamente invisível para os demais, interceptar pedaços de conversas alheias era uma distração decente para todo o resto. Portanto, a fada masculino entendia que alguns humanos nasciam com habilidades mágicas, capaz de entrar em contato direto, indireto ou intermediário com o mundo de Gaia e, então, conduzir-se de maneira gratificante através dos dons da deusa maior. Não era algo fácil de se manusear, uma magia instável e que precisava sempre ser alimentada com pedaços de insistência e estudo. Talvez por isso, bruxos fossem escritores de grimórios tão assíduos, constantemente encontrando novas maneiras de dobrar o poder de Gaia à sua vontade. Às vezes, Louis pensava que gostaria de ser como eles, sem nenhum tipo de vinculo real com sua própria espécie, livres para desenvolver-se da melhor forma que poderia, em seu próprio tempo, sem grandes olhos cheios de maldições acorrentados às suas costas.

— Ah, certo — ela pareceu vacilar por um momento, não passando despercebido pelo demônio que, quase imediatamente, arrastou seus olhos para fora das páginas amareladas, uma das sobrancelhas arqueadas em claro questionamento. — Consegui emprestado — disse. — Com uma antiga amiga bruxa, velha conhecida acho que é mais apropriado.

— Nenhuma bruxa cederia seu grimório para alguém que não fosse de confiança — nisso o senhor do pântano estava certo e até mesmo Louis poderia dizer, voltando aqueles olhos verde musgo escurecidos para o livro, Harry continuou: — Além disso, eu não estava ciente de sua capacidade de fazer amigos e manter-se em relações, Ken.

— Oh, querido, as paredes desse castelo são uma cela para você. Não para mim.

Aquela não era a primeira vez que Louis ouvira algo semelhante, sempre bem acostumado a esticar seus ouvidos por onde quer que fosse, a fada não teve alternativa além de se fazer ciente de todos os rumores circulando através das pedras frias do castelo no centro do pântano, algo sobre como o senhor demônio havia se fechado para o mundo depois de uma terrível perda, supostamente, e vinha desde então colocando a culpa de sua reclusão nos pedidos sem cabimento de todas as criaturas capazes e corajosas o bastante para chegar até ali. Louis nunca sentiu-se confiante o bastante para questionar alguém sobre o assunto, portanto apenas contentou-se com suas migalhas sendo preenchidas pela imaginação malditamente fértil dentro de sua cabeça. E, para ele, havia uma bela criatura de seios fartos envolvida. Loira, muito provavelmente. Ele esperava que uma ninfa de brejos porque, certa vez, escutou algo sobre sua beleza ofuscante e achou que apenas algo assim – glorioso – poderia combinar em perfeição com o demônio do outro lado da mesa.

— Não é uma cela e você...

Harry parou imediatamente, piscou um lar de vezes como se tivesse decidindo para consigo mesmo sobre o que havia acabado de ler ali. Dois segundos depois e o livro pesado foi fechado com um baque surdo, uma camada fina de poeira mágica – suavemente púrpura como uma neblina e brilhante, cheia de pequenos cristais róseos – se ergueu e rodopiou pelo ar antes de desaparecer como se nunca sequer houvesse surgido. Aquele tipo de manifestação mágica era o melhor, para Louis. Ele amava a maneira como o poder de Gaia se mostrava nas pequenas coisas, deixava pegadas por onde passava, memórias que demorariam séculos para sempre apagadas, um rastro brilhante que agia como um farol para casa. "Magia da deusa foi feita aqui, a reconheça e então ajoelhe porque este é o seu destino final" era o que a fada imaginava ouvir sempre que essas manifestações lhe alcançavam os olhos. Nunca aconteceu com ele próprio, por motivos óbvios, mas o pequeno detalhe não era capaz de lhe arrancar toda a beleza da coisa.

— E então? — havia algo nos olhos da familiar, um brilho meio sinistro nas íris castanhas. Ela estava ansiosa, Louis percebeu.

— Não.

O senhor demônio do pântano por cortante, cru e rápido. Afiado como navalha. Suas feições escuras demais agora, olhos sempre longes de Louis.

— O que diabos quer dizer com 'não'? — Kendall miou. — Você sabe que essa é uma chance válida, quer dizer, considerando as circunstâncias.

— Nós não conhecemos as malditas circunstâncias, Ken!

— Mas imaginamos.

— Imaginar não é o bastante para mim — rosnou quase como uma besta vinda direto do próprio inferno, a voz grave causando calafrios tenebrosos na vértebra de Louis. E algo mais também. Droga. — Minha resposta é não. E isso é tudo.

Louis que, até então, estava apenas alheio à conversa com seus olhos correndo de um para o outro com grande entusiasmo, finalmente decidiu que era hora de intervir. Ele não parecia ser genial – coisa que obviamente não era – para perceber qual era o assunto em questão. Kendall vinha passando muito tempo fora do castelo em busca de algo que a fada não tinha certeza do que era, ainda que estivesse mais do que ciente se tratar de si. E, durante as palavras rápidas e trocou com a familiar nas últimas semanas, tinha formado uma ideia meio absurda dentro de sua cabeça. Seu pai. Um suposto pai, claro. Louis nunca tinha pensado ser filho de alguém além de sua mãe, a fada sarcedotisa de Calia com suas majestosas asas e magia impecável. Mas... bem, os outros dois pensavam que sim. Também pensavam que deu suposto pai era um demônio, o que não fazia sentido por uma quantidade relativamente grande de motivos, porém ele não estava prestes a começar a listá-los naquele momento. Ainda assim e apesar de não acreditar em tudo aquilo, Louis sentia que deveria participar da conversa, fosse ela o que fosse. Se era sobre si mesmo, então ele deveria estar incluso.

— Acho que posso decidir por mim mesmo, senhor — disse, ambas as mãos agora entrelaçadas sobre a mesa e o prato quase cheio devidamente afastado. — Seja o que for, quero participar da conversa. Afinal, sou o maior interessado nisso, não?

— Não há para para decidir.

Ainda de pé ao lado do demônio, Kendall girou os olhos nas órbitas com força.

— Aparentemente há — Louis não se sentia bem em desafiar alguém como Harry, mas... uma vez que ele tinha certeza de que não seria devorado, não tinha muitas perspectivas sobre o que de muito ruim poderia acontecer se erguesse sua voz e expressasse sua vontade. "A miséria não me assusta, não depois de ser a única coisa que conheci desde sempre" pensou tentando acalmar as batidas ruidosas de seu coração. — O que está escrito no grimório? Qual o feitiço?

— Não é um feitiço...

— Kendall! — o demônio do pântano chiou.

— É uma magia — continuou sem dar muita importância para a maneira como o rosto de Harry parecia prestes a entrar em colapso. Puxando uma cadeira, a familiar se acomodou ao lado de Louis, seus olhos concentrados nos dele. — Você já conhece o princípio básico de todas as formas da magia, não é?

Sim, ele conhecia. Em suas primeiras lições com Harry, o demônio lhe deu uma pequena e curta palestra sobre como a magia funciona no mundo. "Há todo tipo de feitiço a ser utilizado, de fato, mas todos são apenas consequências de suas magias. Como lhe mostrei, há a magia da transfiguração. Do tempo. Da vida. Do fogo. Dor. Tempestade. Flora. São todos fluxos por onde se seguir inconscientemente a partir do momento em que decidi fazer mágica. É como um conjunto de fatores, regras e possibilidades a serem exploradas dentro de seu próprio grupo. Você, por exemplo, não pode fazer magia da terra estando evocando magia do ar". Portanto, acenou em concordância tentando ignorar a sensação crua e crescente torcendo seu estômago. Do outro lado da mesa, Harry parecia furioso agora. Olhos negros demais, brilhantes. Devoradores.

— Certo — continuou. — Algumas magias respondem melhor às suas semelhantes. Eu, por exemplo, sou filha da fauna. Minha magia primária é a fauna, portanto todo o meu alterego responde a ela com mais propriedade. Reconhecendo-se.

— Então eu preciso encontrar a minha — as palavras explodem em sua língua como se sempre tivessem estado lá. Kendall concorda com lentidão. — O que diz no grimório?

— Magia sexual — ela não vacila em momento algum e Louis a agradece mentalmente por isso porque... por Gaia, ele poderia apenas enfiar seu rosto vermelho dentro do prato de sopa naquele instante. — A sexualidade é um poderoso vórtice, Louis. Tanto quanto o amor e, possivelmente, mais intenso do que o ódio. É uma possibilidade.

— Não — o demônio contrapos imediatamente. — Não é.

— Deixe-o decidir por ele mesmo, Harry.

— Ele é uma fada, porra, entenda!

Em um momento de quase fúria enegrecida, Louis assistiu o demônio se afastar da mesa com as pontas de seus dedos completamente negras, olhos famintos e a respiração tão acelerada que... oh, diabos, ele nem sequer poderia conseguir começar a imaginar o motivo daquela comoção toda. Quer dizer, sim, ele era uma fada em tese e fadas não costumam ser seres sexuais. Entretanto, por Gaia, todos aqueles sonhos nas últimas semanas, seu corpo ardente em febre e sede e ansiedade, e a ideia do toque parecia fasciná-lo de uma maneira quase obscena. "Talvez ela esteja certa e, se não estiver, o que de tão ruim pode acontecer? Sexo. Não é uma grande coisa" disse a si mesmo ao imitar o demônio e colocar-se de pé, ambas as mãos em punhos ao lado do corpo na esperança de esconder os tremores. Seus olhos fixos em Harry, a língua arrastando-se por sobre os lábios, umedecendo-os.

— Tudo bem — disse, a voz mais clara e do que nunca jamais antes. — Vamos fazer isso.

— O quê?!

Ele parecia chocado. Não. Parecia horrorizado, para dizer o mínimo.

— Sinto minha própria magia chegando em seu ápice agora — Louis voltou a dizer. — Talvez também ajude, no que quer que seja tudo isso. Se há um momento próprio para experimentar coisas novas, então o momento é esse.

— Louis, você...

— Essa é a minha decisão — cortou rapidamente, o peito cheio e nariz para cima enquanto tentava manter a droga de seus joelhos firmes. — Aceite-a, Harry. Não deve ser algo tão difícil para um demônio como você.

— Pode não funcionar.

— Então não será uma grande surpresa — para ser honesto, Louis não entendia por que sentia a necessidade de convencê-lo a fazer aquilo, o que quer que fosse aquilo. — Tudo o que tentamos até agora, tampouco deu algum resultado.

O silêncio que se seguiu pareceu durar uma eternidade até explodir em algo maior, mais quente. Espesso. Escorrendo pelas paredes, arranhando as fundações. Corroendo Louis, fazendo-o arder em seus pés e incendiar-se a ponto de imaginar que a suposta magia dentro de si poderia vir ser a do fogo. Mas não. Claro que não. A culpa era dele, Harry, e seus olhos obscenos.

— Não finja que não quer, querido, para um demônio... uh, vamos, você sabe que é um péssimo mentiroso — a familiar miou.

Antes da resposta, seus olhos escureceram mais um pouco antes de voltar ao tom brilhante de verde. Quando o senhor demônio do pântano os levou para longe de Louis, a fada quase implorou para que voltassem. Às vezes, ele sentia-se viciado naqueles lagos negros.

— Tudo bem — Harry disse enfim. — Vamos fazer isso.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top