Conto 18 - Agua Marinha

Água Marinha

Suzana abriu a porta do apartamento, jogou a mochila no chão perto da porta e deixou seu corpo cair no sofá e seus tênis voaram para o alto.
- Estou morta de canseira e calor! - anunciou.
- Estou percebendo. Não conseguiu nem chegar à geladeira hoje - retruquei, sorrindo para minha amiga de quarto.
- Vacilei¹ ao aceitar essa bolsa de iniciação científica, se eu soubesse que precisaria me matar aos poucos, preferia continuar comendo macaxeira² e tapioca seca no café e jerimum³ no jantar.
- Deixa de ser abestada⁴ !
- Falo séria!
- Estar de lundu5 . Depois que descansar vai pensar melhor. Vou pegar uma água para você.
Levantei e fui à cozinha. Preparei um lanche e um suco de caju bem gelado, para nós. Levei para minha amiga quase desfalecida.
- Su, levanta! Senta um pouco para se refrescar.
- Van, você é um anjo na minha vida - ela murmurou sem abrir os olhos.
- Su, o que você fez de diferente hoje para ficar tão acabada?
- Para começar o centro de tratamento e dessalinização é uma cambirimba6 . Já começa com uma viagem. Depois ficar naquele sol de torrar os miolos e para piorar, hoje o ar condicionado do laboratório estava quebrado.
- Está vendo, hoje que seu dia não foi bom. Amanhã esquecerá tudo isso. Pois se perder o dinheiro da bolsa, além de mudar o cardápio voltará a usar creme de supermercado e vitamina brasileira.
Ela deu um sorrisinho malicioso e abriu melhor os olhos.
- Van, se eu te contar um segredo, promete ficar entre nós?
- Juradinho - falei, beijando os dedos em forma de cruz.
Ela sentou mais próxima de mim e abaixou o tom de voz.
- Meus cremes e vitaminas não são importados. Eu tenho uma água poderosa que estou tomando faz um tempo. Ela que tem me proporcionado essa pele de veludo e todos os outros benefícios.
- Que água é essa? E por que é segredo? E quais são os verdadeiros efeitos?
- Água marinha. Porque eu trouxe do laboratório e ainda não tem muitos estudos que comprovam. Ela ajuda a combater o estresse, purifica a energia vital, acalma a mente e de proporciona sensação de paz.
- E você está de cobaia?
- Está dando resultado, não está?
- E esse cansaço? E este pessimismo?
- Canseira mesmo. Venha vou te mostrar.
Levantamos e caminhamos para o quarto. Ela me mostrou um pequeno vidro com conta-gotas e um líquido dentro.
- Este é o precioso.
- O que ele tem de tão especial?
- Nesta etapa que estamos trabalhando da dessalinização, tem a água final, que chamamos de água marinha. Ela tem uma concentração de muitos nutrientes e sais minerais que no processo é perdido. E com essa alta concentração ela se torna poderosa. É como ter a tabela periódica inteira nestas gotinhas.
Ela o pegou da minha mão e guardou no armário em sua gaveta de calcinhas.
- Vou tomar banho e cair na cama, quero acordar apenas amanhã.
Sentei na cama e fiquei pensado. Susana de um tempo pra cá, vem realmente aparentando mais viçosa, pele, cabelo radiante e sem contar o bom humor. Hoje realmente foi um dia atípico.
Nós moramos juntas desde que entramos na universidade federal do Ceará a três anos. Somos do interior do estado e morar em Fortaleza já era um grande passo e estudar um sonho realizado. Ela fazia engenharia química e eu arquitetura e urbanismo. Cursos de período integral que não nos permitiam trabalhar, por este motivo nós duas participávamos de tudo que pudéssemos nos render uma graninha.
A Suzana tinha me enganado direitinho que seus cremes e vitaminas tinham poderes milagrosos e eu tapada, acreditei. Bem que desconfiei que aquela sua apetrechada7 toda não podia ser apenas atribuído de uns cremes novos.
Levantei e pequei o seu vidro milagroso e enchi o espaço do conta-gotas e despejei na boca. Quase morri.
- Arre-égua8!!
Aquilo parecia um sal líquido. Queimou minha língua e desceu por minha garganta queimando. Por onde passou, com certeza, foi como uma onda do mar em ressaca, derrubou tudo que viu pela frente. Avexada, corri na cozinha e tomei um copo de água para amenizar aquele ardor infernal. Abri a geladeira e encontrei uma lata de leite condensado aberta e sem pensar de quem pertencia, eu enchi uma colher e enfiei na boca.
Aquela sensação adocicada foi como um vento fresco em dia de calor. Deu um alívio momentâneo naquela sensação de mar revolto dentro de mim.
Voltei para minha prancheta a fim de, tentar, terminar meu trabalho, mas não conseguia me concentrar. Minha cabeça começou a doer. Apertei os olhos para melhorar aquela pressão que se instalou.
Susana entrou na sala depois de algumas horas e ficou espantada com a minha cara.
- Não consigo mais dormir com este calor da égua. O que foi muiê! Parece que está com gastura9 !
Nem respondi. Levantei, entrei no banheiro e parecia que ia vomitar. Aproveitei para tomar um banho. Assim que entrei no quarto, ela perguntou:
- O que aconteceu? Meu armário e a gaveta estavam abertos.
- Tomei umas gotas dessa porcaria e quase batia a caçoleta10 .
- O que você fez? - ela arregalou os olhos ao perguntar.
- Por quê? Era mentira aquela coisa toda?
- Não! A água é porreta11, mas eu pingo uma gota apenas em uma garrafa de água mineral, 500 ml, e tomo durante o dia.
Ân? - Tentei entender o que ela me dizia enxergando uns pontos brilhantes na minha frente.
- Su, eu não estou me sentindo bem - falei sentando na cama.
- Deite aqui, por favor, não me diga que tomou mais de uma gota. - Balanceia cabeça que sim.
- Três gotas, Vanessa, foi isso? - Voltei a balançar a cabeça negando.
Ela colocou a mão na testa e andou pelo quarto, acredito que com medo de perguntar o tanto que tomei.
- Olhe para mim - ela pediu. - Qual a quantidade que você tomou?
Sentindo a cabeça latejar, eu comecei a chorar.
- Pelo amor de Deus, conte para mim a quantidade que você tomou! - exigiu ela.
- Eu... Tomei... Um... conta... Gota... Inteiro.
- Santo Alfred12 Nobel , me ajuda! O que eu faço com você? Tomou água? - Balancei a cabeça que sim - Vamos tomar mais.
Ela correu e voltou com uma garrafa inteira.
- Não vou conseguir tomar tudo isso. Arre-diab13 . - Peguei a garrafa e virei na boca de olhos fechados. Tomei a quantidade que consegui sem vomitar tudo.
Abri os olhos e não enxergava mais nada.
- Su, o que aconteceu? Apagou a luz?
- Van, não me assusta. Não apaguei nada!
- Então eu estou morrendo.
- Veste uma roupa que vamos para o hospital. Agora!
Sua voz foi ficando longe e um zumbido preencheu meu ouvido e um calor subiu por minha cabeça.
- Van! Van!
Eu queria responder, juro que desejava, mas eu não consegui. Muitas borboletas voavam ou eram vaga-lumes? Não sei. Mas tudo foi clareado à medida que o som voltava ao meu ouvido. Percebi e a voz da Suzana aparecia aproximar de mim.
- Bichim14 , por Deus, você quer me ver morta e enterrada?
- Eu não estou bem, Su. Juro que minha cabeça vai explodir.
- Eu vou te ajudar a se trocar e vamos para o hospital. Acabei de chamar o Mateus, ele está vindo.
Com dificuldade de mexer a cabeça eu consegui descer e esperamos nosso amigo na portaria do prédio.
Tudo que aconteceu em seguida foi uma sequência de fleches. Eu tinha a impressão que tive uma sucessão de pequenos desmaios. Até tomar consciência de um teto branco. Olhei para o lado e um tubo de plástico estava pendurado num poste que seguia com uma mangueirinha até o meu braço e este tinha um esparadrapo retangular preso nele. O cheiro de éter ou algo parecido fez com que meu estômago retorcesse.
- Olá. Como está se sentindo? - um rapaz todo de branco me perguntou.
- Arriada15 . - Ele sorriu.
- A dor de cabeça melhorou?
Precisei pensar e prestar atenção em o que eu sentia.
- Acho que sim. O que aconteceu comigo?
- Você chegou aqui com delírio e um quadro grave de hipertensão.
- O quê?
- Mas... Eu... Ãn? Hipertensão?
- Sim sua pressão arterial estava 22 por 16, e para uma moça tão nova é um quadro preocupante.
Ele chegou mais próximo e colocou o aparelho de escutar o coração, estetoscópio, e acionou uma bombinha que agora eu percebi que estava preso no meu outro braço. Sorriu me mostrando todos aqueles dentes brancos.
- Está melhorando, já baixou bastante. Mas vai ter que me fazer companhia essa noite no meu plantão. Assim eu vou te monitorando.
Consegui sorrir.
- Vou pedir para seus amigos entrarem, ver que está melhor e vou mandá-los para casa descansarem. Amanhã eles voltam.
Em poucos minutos entra pela porta com a aparência preocupada a Suzana, acompanhada pelo Mateus.
- Van, que susto! Como você está? Você disse para o médico o que aconteceu? Falou da água marinha? Pelo amor de Deus, diga que não
Eu não conseguia responder nenhuma daquelas perguntas, minha vontade era de fechar os olhos e invadir o mundo do silêncio novamente. E foi o que fiz.
- Ei! Doutor, ela está consciente?
- Estou Su, mas não quero falar... Tchau. Pode ir. Até. - Tentei virar, mas meus braços estavam presos.
- Ãn? Van, tira a macaúba16 da boca !
Senti seu beijo molhar minha testa e abri os olhos de novo e fiz uma tentativa de um sorriso.
- Ela está baqueada17 , doutor. Parece não estar bem. Diz a verdade para mim? Pode falar a verdade! - choramingou - Diz que minha amiga vai está bem amanhã? Eu posso ficar aqui. Deixa-me ficar nesta cadeira - escutei ela falando, pedindo e minha vontade era de gritar e mandá-la calar a boca. Mas meus olhos não obedeciam nem ficar abertos, muito menos a minha boa de falar.
- Vou cuidar dela. Pode ir e se algo mudar eu ligo...
- O que pode mudar...

Acordei com barulho de pessoas falando e custei lembrar onde eu me encontrava. Um rosto familiar apareceu no meu campo de visão. O sorriso que pensei ter sonhado estavam de novo perto de mim. Acompanhei sua inspeção e anotações e quando percebi que tinha terminado, perguntei:
- Eu estou bem?
- É você que precisa me dizer. Como está se sentindo?
- Eu acho que estou bem.
- Precisa ter certeza para que eu possa te liberar. E ainda me prometer que vai procurar um cardiologista para acompanhar essa pressão.
- Eu nunca tive nada.
- Por isso precisa investigar o porquê aconteceu.
Lembrei da preocupação da minha amiga Suzana no dia de ontem. Tenho certeza que ela não contou aquela água horrorosa que tomei e me deixou assim. Ela me fez prometer que não contaria para ninguém. Será que isso significava o médico?
- Vou procurar - limitei a dizer. - Mas eu posso ir para casa?
- Depois que tomar seu café da manhã e se sentir melhor, sim.
Ele chamou a enfermeira e ela tirou tudo que estava preso em mim e eu me senti mais liberta. Na primeira tentativa de sentar eu senti uma vertigem. Ela pediu para que eu fizesse todos os movimentos devagar e não levantasse ainda.
Foi então que percebi que eu vestia uma camisola hospitalar e que estava aberta nas costas. Senti meu rosto queimar ao olhar de longe aquele médico bonitão.
No final da manhã Suzana chegou, sua primeira frase, foi:
- Vanessa, como você foi cagar-o-pau18 desse jeito?
- Você que me arrumou essa presepada19 .
- Agora conta para mim - Olhou para o local onde o médico se encontrava -, mas arrumou um médico pintoso20 , hein?
Olhei, ele sorriu para mim. Acho que minha pressão subiu de novo.

1 - Cometer um erro. Enganar-se.
2 - Mandioca ou aipim
3 - Abóbora
4 - Bobo, Tolo, apalermado.
5 - Mal humor
6 - Lugar longe e indefinido
7 - Adotada de beleza
8 - O termo mais legitimamente cearense. Interjeição de espanto
9 -Mal estar
10 - Morrer
11 - Bom. Excelente
12 - Pai da engelharia química -
13 - Interjeição que exprime dor física
14 -Tratamento carinhoso
15 - Perdida
16 - Fala ininteligível. Você não entende. .
17 - Fraco, adoentado, triste
18 - Fazer uma coisa mal feita. Dar mancada
19 - Confusão
20 - Cearense não acha homem bonito. No máximo admite que o cara é pintoso, ou que tenha uma certa pinta (boa aparência)

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top