Conto 17 - Lembranças adormecidas
Lembranças adormecidas
- Aqui estão às caixas que consegui para você - falou meu futuro marido entrando de repente no quarto, e ao mesmo tempo me tirando do transe em que me encontrava. - Que cara é essa?
- Lembranças - limitei-me a dizer.
- O que foi? Achou alguma preciosidade escondida? - ele perguntou quando fiz menção de esconder.
Olhei para ele com os olhos lagrimejantes.
- Não! - Fechei a caixa - Pode levar aquela ali, por favor, apontei para uma perto da porta.
Ele abaixou perto de mim e disse:
- O que foi meu bem? São suas recordações, não precisa esconder de mim. Pode levar com você, afinal a casa vai ser nossa.
- Obrigada, mas vou deixar esta aqui na mamãe.
- Posso saber o que é? - perguntou.
- Sim, são algumas fotos.
- Posso ver? - perguntou, sentando no chão junto a mim.
- Tem certeza que deseja mesmo?
- Sim. Se você não se importar.
- Tudo bem, mas vou levar esta caixa mais leve para o carro. Seja rápido, por favor.
Peguei algumas caixas e saí do apartamento, fui devagar até a garagem. Meu carro já se encontrava lotado e o dele quase todo ocupado com minhas caixas. Coloquei-as no chão, abri uma delas e tirei de dentro uma pequena caixinha. Abri meu carro e antes de guardá-la no porta luvas, abri de novo e a olhei com indecisão.
- Levo ou não? - perguntei-me.
Em minhas mãos estava uma pequena caixinha de música. Um presente que ganhei no meu aniversário de dez anos de um amigo especial e que se tornou meu namorado aos quinze anos.
Lembro como se fosse hoje o dia em que escrevi uma redação, e li em sala de aula, nela eu contava que tinha um sonho de ter uma caixinha dessas. E frisava que precisava ter uma bailarina rodopiando ao som da música.
Uma lágrima solitária desceu pela minha face e chegou em meus lábios, me fazendo sentir o líquido salgado. Por muito tempo eu tive um gosto amargo de tanta tristeza guardada no coração.
Marquinho foi meu melhor amigo na infância, meu maior companheiro na adolescência e meu primeiro amor.
Um dia ele foi à minha casa para brincar e quando ia embora me entregou um embrulho. Quando eu levantei a tampa uma linda bailarina começou a dançar ao som delicado de Beethoven, Für Elise (para Elisa).
Após o fim da música e com minha emoção a flor da pele eu o beijei no rosto e falei que era o presente mais lindo, mas que eu não poderia aceitar.
- Por que não? - ele quis saber.
- Porque é um presente caro e você não tem dinheiro para comprar. Minha mãe não permitiria que eu aceitasse.
- Mas eu comprei com meu dinheiro - afirmou. - Vendi minha coleção de figurinhas e alguns gibis raros.
- Você não poderia ter feito isso!
- Por que não? Eram minhas e eu queria presentear você, que é a pessoa mais importante da minha vida.
Lembro que fiquei lisonjeada, mas mantive a postura de não aceitar. Porém, combinamos que ela seria dele e sempre me deixaria escutar e olhar a bailarina dançar. E assim fizemos por muito tempo. Às vezes ela ficava comigo no final de semana e eu a devolvia na segunda-feira.
Quando fiz quinze anos ele me presenteou novamente com um pedido de namoro, eu aceitei os dois.
Todos os dias eu dormia escutando e muitas vezes me imaginava dançando vestida com uma saia fluflu, um coque bem preso e sapatilhas de pontas.
Um dia ele não foi à escola e a tarde eu soube que tinha sido hospitalizado. Depois de muitos exames descobriram a doença, foi um diagnóstico que tirou nosso chão. Seria um tratamento longo e delicado.
Durante esse tempo fui todos os dias em sua casa com minha caixinha de música e nós dois escutávamos, muitas vezes sem dizer nada, apenas sorrindo e de mãos dadas.
Como essa dor não fosse bastante, meu pai resolveu sair de casa e dizer que precisava ser feliz. E essa felicidade seria longe de nós e com outra família.
A caixinha de música ficou em silêncio. Já não fazia sentido escutá-la, pois meu coração não conseguia se alegrar.
Um barulho me chamou atenção, olhei para trás e encontrei o meu noivo com os olhos cravados em minhas mãos.
- O que você tem em suas mãos?
- A caixinha de música - respondi num fio de voz.
- Sério? Você havia me falado que não a tinha mais... - ele interrompeu a fala e se aproximou pegando-a em minhas mãos. - Por quê?
- Você sabe o porquê.
- Mas você sempre foi apaixonada por ela.
- Não! Eu sempre fui apaixonada por você.
- Mas...
- Nada de mas... Foi uma escolha que eu fiz por você. Apenas não tive coragem de me desfazer dela.
- Ô meu amor - ele me abraçou -, me perdoa. Eu tirei de você algo tão precioso.
- Não. O essencial permaneceu e foi o mais importante: você. Eu apenas escolhi guardá-la e por muito tempo nem lembrava mais dela. E hoje, por acaso, eu a encontrei.
- Quando eu te falei que essa música me lembrava um período ruim da minha vida, não significava que era para você excluí-la da sua também. Apenas não gostaria de escutá-la.
- Sabe Marcos, foram dois momentos que essa música me marcou, ela teve seu lado bom e o ruim. Alegrias e tristezas. E, como eu disse, o mais importante continuou comigo.
- E vai levá-la para nossa casa?
- Não, se você não quiser.
Ele me abraçou e no meu ouvido, falou:
- O mais importante eu vou levar: você. - O abracei forte também. - E as fotos com seu pai?
- Vou deixar na casa da mamãe como fotos de família, como um dia fomos. Afinal, ele é o avô dos nossos futuros filhos. Já superei este assunto há tempos.
- Eu sei, Elisa. Vamos começar a nossa vida sem deixar lembranças adormecidas.
- Sim. Sempre!
Composição de Beethoven, música instrumental mundialmente conhecida: Für Elise, conhecida por "Para Elisa",
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