25 - Cortando As Cordas Que Me Protegem Do Abismo

FIQUEI SENTADA EM UM DOS banquinhos que tinha no balcão da cozinha enquanto o anjo mantinha-se sentado no sofá de cara amarrada. Eu entendia seu lado, mas por que ele não entendia o meu?

Esperei meu pai descer do segundo andar para resolvermos logo isso. A ansiedade percorria meu corpo com intensidade de forma que as dores nos meus músculos e na pele eram mascaradas pelas batidas da ponta dos meus dedos na superfície de mármore branco do balcão.

— Sabe que o que quer é desnecessário — Samael falou do sofá sem se virar para mim, mantendo seu foco em algum ponto invisível à sua frente.

Eu me virei para ele.

— Você vai fazer o que te pedi?

Ele não me respondeu e continuou parado. Eu repeti a pergunta, e ele se mexeu desconfortável no sofá e cruzou os braços.

— Sam, existem três tipos de pessoas; uma sai correndo e pula de um penhasco sem nem olhar para baixo antes; a outra, para na ponta, olha, e não pula. Prefere a consequência de não pular do que saltar o penhasco; e tem a última, que para, olha para baixo, analisa a queda, se prepara e pula. — Fiz uma pausa. — Eu sou a terceira pessoa. Então, por favor, não diga que me preparar é desnecessário. Porque eu vou pular... Você vai fazer o que eu te pedi?

Ele não me respondeu de imediato, e eu suspirei. Mas daí ele concordou com a cabeça, contrariado. Houve até mesmo um momento em que ele virou a cabeça para o lado oposto do meu, e passou a mão no rosto.

Eu queria ser o segundo tipo de pessoa como você ou a primeira, para não precisar da sua ajuda, mas não sou.

— Você, rapaz, por um acaso vai jantar aqui e não estou sabendo? — Meu pai havia voltado com roupa de ficar em casa, uma calça moletom cinza claro e uma blusa branca, sem esquecer um sorrisinho que tinha no rosto.

Samael não se deu ao trabalho de respondê-lo, ou se mexer.

— Houve alguma coisa aqui que eu deva saber? — ele perguntou com um olhar confuso de Samael para mim, o sorriso morrendo.

Eu me levantei e fui até ele e o abracei forte, com os braços ao redor de seu pescoço.

— Só precisa saber que eu te amo — lhe disse. — Sei que já te tratei muito mal durante esses anos, foi por causa do álcool, mas eu te amo, pai. — Algumas lágrimas acabaram surgindo junto com falhas na minha voz.

— O-oque houve? A...Assim você me faz passar mal — ele gaguejou.

Ele me agarrou contra si.

— Quero que saiba que eu não guardo raiva de você, eu te perdôo. E quero que você não para de continuar vivendo sua vida decentemente como está começando agora.

— Amélia, não entendo o motivo disso, filha. — Ele disse confuso, me afastando para me olhar no rosto.

— Quero que viva sua vida bem e feliz... Eu e a mãe vamos ficar felizes se fizer isso.

— O que? O que tem sua mãe? — sua voz falhava.

— Samael... — eu chamei.

— Amélia! — meu pai começou a elevar a voz, se alterando. — Do que você está falando? Por que você e sua mãe vão ficar felizes comigo vivendo a vida?! Por que infernos está chamando ele!?

— Samael!

Meu pai, que estava quase aos gritos de desespero, congelou. Os olhos âmbar de cor suave, nervosos e com excesso de umidade.

Funguei, me sentia tão mal.

— Você pode fazer o resto? — Direcionei minha pergunta a Samael, mas ainda olhava para Amaro, minha voz saiu rouca e baixa.

— Você tem certeza? — o anjo perguntou sombrio por trás de mim.

Concordei com a cabeça devagar e apenas escutei-o suspirar.

— Vai levar algum tempo, pode sair se quiser, vou atrás de você quando terminar.

Eu não me virei para ele. Dei as costas e sai, contendo as lágrimas. Fui para a porta a passos largos e a bati quando a fechei. As coisas à minha volta pareciam girar. As casas, a rua, a árvore do meu quintal. Minhas pernas vacilaram. Eu estava exausta.

O chão encontrou meus joelhos com brutalidade, e eu deixei o resto do meu peso cair sobre minhas pernas e a minha cabeça para trás. Algumas lágrimas e soluços saíam sem autorização. Tudo que eu via eram os galhos com as folhas verdes escuras da amoreira e o céu noturno com poucos pontos brilhantes visíveis e uma lua fina como um sorriso.

Houve algo, alguma sensação nova e antiga, conhecida e desconhecida que me fez parar por um momento. A minha mente se limpou e só conseguia pensar na amoreira.

Essa árvore foi plantada por Azebel...

Eu olho para ela, e encosto em seu tronco áspero com a ponta dos dedos. A mesma sensação faz meu corpo se contrair e retirar minha mão de perto dela.

— Que segredos você guarda...?

Só havia uma forma: me lembrando. Vasculhando por entre as lembranças da minha mãe. Uma tarefa difícil, eram muitas. Mas a árvore ali para me guiar pelo caminho certo... Só precisaria de um pouco de energia. A controlando bem, não me traria tantos males.

Levei minhas mão para o tronco negro por causa da noite, e flui minha energia delicadamente pelo meu corpo, me ligando com a árvore.

Minha consciência foi levada para outro mundo, um mundo de formas coloridas borradas, com luz estourada. Para um jardim morto.

Minhas mãos... As mãos de Azebel se seguravam em um galho espesso bem acima do chão. Utilizando o peso do corpo, ela o quebrou, ainda assim com dificuldades. Quando o galho se separou do resto da árvore nós perdemos o fôlego, como uma facada diretamente no coração.

Ela se afastou da árvore e o mundo se fragmentou à minha volta e se perdeu na escuridão voltando à noite, na minha casa finalmente. Uma latência retumbou por dentro do meu crânio, e um zumbido agudo porém baixo nos meus tímpanos, de dentro pra fora. Meu corpo estava cedendo.

... A árvore da qual ela retirou esse galho era a árvore da vida e da morte.

A nossa árvore.

Ela havia retirado um pedaço seu e plantado aqui... Longe do jardim morto para que crescesse.

O que isso poderia significar?

Que mais surpresas Azebel tem para mim? Porque pelo visto elas nunca acabam.

— Ele está dormindo... E consegui modificar as lembranças. — Samael surgiu por trás de mim, vindo de dentro de casa.

Eu desviei minha atenção da nova descoberta para o anjo.

— Como... Do que ele vai se lembrar?

Ele se aproximou, olhando para o chão e se sentou com as costas para a árvore, ficando de frente para mim.

— Que você se acidentou, um carro te atropelou quando voltava da casa da Katheryne.

— Acha que ele vai se recuperar? — minha voz saiu torta.

Samael deu de ombros suspirando.

— Não sei, mas eu deixei a lembrança do que você disse a ele. Torça para que ele te ouça.

Agora, se... Quando acontecer o que tiver que acontecer, ele não sofrerá sem explicações.

O Sam pegou minha mão carinhosamente e ficou fazendo carinhos com o polegar. Essa, assim como o resto da minha pele, tinha se recuperado das erupções de sangue e dos esfarelamento, ainda que estivesse sensível ao toque. Minha divindade me ajudava a me recuperar de modo mais acelerado, mas minha carne humana não a suportava, o ferir e o curar bruscos logo cobrariam seu preço. E eu não estava disposta a ser obrigada a pagar, eu o faria, mas no meu tempo, nas minhas condições.

— Esquece isso Amélia, por favor — Samael como se soubesse no que eu pensava se pronunciou. — Faça ao menos uma única vez algo que peço.

— Isso, não.

Ele ameaçou retirar sua mão da minha e o segurei com firmeza. Jogando meu corpo para frente fiquei sobre os joelhos e me inclinei para beijá-lo, algo leve e carinhoso. Sua mão veio para meu rosto.

— Prometo que farei algo pra você. — Saí de cima dele e me sentei sobre as pernas. — Mas...

Ele balançou a cabeça sorrindo.

— Lá vamos nós... O que você arranjou nesse tempo sozinha? Demônios enviados por Lilith?

— Demônios, não. — Sorri. — Mas... O que você sente vindo dessa árvore?

— Desta? — Samael franziu o cenho. — Cheiro de árvore?

Dei um empurrão no seu ombro.

— É sério, não sente? É muito sutil, escondido, mas está aí.

Ele ainda me olhou de canto de olho antes de tocar no tronco com a mão... E afastou seus dedos sem acreditar, ainda olhando para a madeira negra graças a noite.

— A árvore do jardim? — Piscava incrédulo, confuso.

— Azebel a trouxe — respondi.

O anjo deu um sorriso mínimo.

— Acho que causar confusões deve ser alguma graça divina de vocês duas — suspirou.

— Tá, mas e aí?

Samael deu de ombros.

— Nada, sinceramente não vejo uma única diferença que isso traga para nossa situação. Azebel sempre teve vontade de ver o jardim florescer de novo, deve ter a trago apenas para que... Crescesse, tivesse uma recordação. Não sei.

Deixei o ar sair pesadamente dos pulmões.

— É, deve ter razão. — Mas, ainda assim... — Vamos atrás da Carly? Quero vê-la, ver os machucados e... — Me despedir. — Ver a Katharyne, estou morrendo de saudades dela.

O anjo assentiu, deu um beijo na minha testa e disse que sabia onde elas estavam.

A noite já estava de uma escuridão profunda, com ares gelados e úmidos. A falta de nuvens fazia o luar brilhar sua luz prateada com força.

No primeiro momento que Samael falou que estávamos indo para a casa da Katheryne encontrá-las, eu não entendi, mas logo os pensamentos se ordenaram e pude compreender, e me lembrar, Carly e Kath estavam juntas. Essa confusão tão simples, tão boba, tão curta, me abalou porque não estive perto dela; não fui presente desde que a loucura na minha vida começou. Fico feliz de não tê-la trago para isso tudo, mas mal por saber que não estive com ela nesse momento importante de sua vida: de descobrimento e aceitação, aventura ao desconhecido.

Quando chegamos na residência da Kath, não demorou muito para que a Carly abrisse a porta — mesmo sem eu ou o anjo termos tocado a campainha. Talvez ela tenha nos sentido chegar.

— Como você está? — Carly perguntou.

Podia ver que os machucados tinham um aspecto melhor, agora limpos, costurados e com curativos. Eles não estavam se decompondo, e nesse ponto positivo uma suposição dolorida se tornava confirmada: Carly era filha de Lilith.

— Melhor, e você?

— Melhor — ela deu de ombros. — Vou ter marcas pra me gabar sobre ter lutado contra uma cobra gigantesca.

Uma figura alta de cabelo preto em um curto rabo de cavalo surgiu ao lado da Carly com um sorriso brincalhão.

— Vocês vão conversar aí fora? Entrem logo! — Kath apareceu ao lado da Carly, olhou para mim e para Samael e deu outro sorriso — Você tem umas coisas para me falar.

Eu ri do casal tão oposto.

— Então foi por causa dele que você andou distante?

Kath e eu estávamos sentadas na mesa da cozinha, onde tinha umas frutas coloridas e vistosas a enfeitando, no meio da conversa peguei uma maçã extremamente grande e vermelha para comer. Ela se referia ao Samael, logo após trocarmos algumas palavras e Carly me lançar um olhar significativo eu entendi que ela sabia de toda a história numa versão... Mais normal.

A explicação era: eu andava sumida porque estava me envolvendo com Samael e ajudando a Carly a lidar com a mãe biológica; que foi encontrada com a ajuda de Samael. E as feridas da Carly tinham sido feitas numa briga com sua mãe, onde ela usou uma faca — até que essa parte não é tão fora da realidade.

Concordei com o que ela havia perguntado.

— Sim, mas, eu não fui a única que deu uma sumida — Dei um olhar por trás da maçã na minha boca para ela e para Carly que estava com Samael no outro lado da cozinha conversando sobre algo, com um sorriso discreto. — Eu demorei pra entender, sabia? Só fiquei sabendo por um comentário do irmão dela, e depois ela me contou. Você sabe que podia falar comigo, né?

Kath ficou levemente corada quando olhei para a Carly.

— Eu sei... É que estava tudo estranho, e... e... Você não estava tão presente assim. E também eu queria tentar entender sozinha... Ou melhor, aceitar; que não era amizade, não era só porque eu gostava dela, ou porque achava ela bonita, simplesmente como qualquer outra pessoa. Era porque eu tinha interesse nela. Mas o que levou as coisas para algum lugar foi quando ela veio aqui me ajudar em matemática por sua sugestão.

Eu tentei sufocar uma risada mas falhei.

— No fim, acho que a matemática foi a última coisa que você conseguiu pensar, não foi? — Quase engasguei com os risos.

— Tirei três no teste que tive no dia seguinte, isso te responde? — Ela ficou vermelha pela risada e pelo constrangimento.

Nós rimos mais um pouco, e tudo parecia desaparecer com as risadas, todas as preocupações.

— Mas e ele? Ele é mais velho, com certeza. Eu confio no seu julgamento, não daria trela para gente que não presta, mas... Ele é bom, amiga?

Desviei o olhar rapidamente para o anjo do outro lado, os fios ondulados escuros, os olhos verdes mais brilhosos que vi concentrados na conversa que tinha com a Carly. Pensei nele e eu em casa, quando ele me abraçou, os olhares demorados, a preocupação que foi crescendo para me manter bem, o jardim...

— Ele é, Kath, sinceramente penso em como pude fazê-lo gostar de mim. Mas ele é... Tudo o que eu quero.

Quando olhei seu rosto, ela sorria doce.

— Que bom, fico feliz mesmo Amélia.

Ela segurou minha mão e eu sorri.

— Desculpa atrapalhar as duas, mas logo seus pais devem chegar Katy, e não acho que eles vão gostar de saber que tem gente na casa deles a noite com apenas você aqui. — Carly apareceu por trás da Kath, com Samael pouco distante.

— Meu Deus! Já são onze da noite? Eles devem estar chegando mesmo, acho que seria bom se fossem embora agora, nós podemos marcar um dia e sairmos juntos, mas por favor, parem de chegar aqui de surpresa no meio da noite.

Kath se levantou em quase um pulo e foi cumprimentar o Samael, com quem apenas tinha dado um "oi, fique à vontade"; neste momento Carly veio até mim.

— Ele me falou o que está fazendo... Me pediu para tentar convencer de não fazer besteira — sussurrou-me.

Eu bufei.

— Você não vai me convencer. Carly, você viu o que a luz está fazendo com meu corpo... Vai ser questão de tempo até... — Suspirei. — Eu só quero me preparar, preparar a todos. — E olhei para Kath, que parecia conversar sobre mim com Samael.

Carly me observava e limpava os olhos, tentando segurar as emoções.

— O anjo falou o que fez com seu pai, o acidente de carro quando estivesse voltando, e que veio porque queria se despedir. Só... seja gentil, não deixe ela notar, não quero que ela sofra antes da hora. — Ela se virou e foi para outro cômodo.

Kath e Samael se separaram e vieram até mim.

— Para onde a Carly foi? — ela perguntou.

Eu a abracei firme.

— Você sempre foi para mim uma irmã, sabe disso não é? — falei ainda no abraço. — Saiba que eu nunca, nunca, vou te abandonar, que eu te amo.

Ela afastou seu rosto para que nós pudéssemos nos ver. Ela sorria e seus olhos estavam turvos.

— Claro que sei, e para você é a mesma coisa. Você é minha irmã, não vou deixar de cuidar de você, te amo.

Eu quebrei o abraço, mas ainda queria um pouco mais, então fiquei grudada com um de seus braços.

O meu conforto foi saber que a Carly estaria com ela, que ela não ficaria sozinha.

Falando nela, ela estava na porta, nos esperando, eu soltei de vez Kath e fui abraçá-la. Eu acabei indo com muita força, me esquecendo dos seus machucados.

— Ei, vai com calma — ela riu.

— Saiba que mesmo nos conhecendo há pouco tempo, você foi muito especial, você é especial, não importa que sangue tenha — sussurrei-lhe. — Cuida dela, e se cuida, ok?

Ela me apertou com força contra seu corpo, como se eu pudesse desaparecer naquele mesmo instante.

— Eu vou, anjinha — ela resmungou, segurando o choro.

Eu a soltei, com as lágrimas descendo silenciosas e agradeci pela escuridão porque assim Katheryne não veria.

— Você vai ficar aqui Carly? — Kath perguntou.

— Se você não se importar, eu vou. Não quero te deixar sozinha. A gente faz aquele mesmo esquema de me esconder no seu quarto, seus pais nem vão se ligar.

— Bom, — eu comecei. — Eu e o Sam já vamos indo. Até mais, meninas.

Eu passei pela porta, e o Samael que estava mais distante nos dando algum espaço passou também logo depois de mim. Kath acenou com a mão e disse para termos cuidado na rua, Carly tentou forçar um sorriso mínimo enquanto me olhava.

A porta se fechou.

Samael segurou minha mão com firmeza, uma firmeza que estava começando a faltar nas minhas pernas.

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