Capítulo 9

          Vítor Hugo

      Me adiantei às bailarinas que já haviam competido assim que a canção de Ludwig Minkus começou a tocar. Ver a Danny caminhando com graça em frente ao público, mostrando seu en dehor perfeito, parecendo nem pisar no chão por causa da leveza dos seus passos, fez com que um meio sorriso se formasse em meu rosto. Era como se eu também estivesse lá com ela.

      Com certeza, ela devia estar com o coração à mil. Sentindo um pouco de medo, sei lá. Todo bailarino se sente inseguro antes de dar a cara pra bater.

      Mas uma coisa dizia dentro de mim que aquela garota iria encantar.

      Todos os bailarinos que até então estavam largados no chão da coxia e do corredor, teclando celulares ou tirando selfies junto ao velho piano de cauda, vieram ver a filha do Cisne Branco. Não tem nada a ver, mas as pessoas acreditam que uma bailarina não é escalada para fechar uma noite de competição por acaso.

      Depois de tantas danças com músicas pulsantes, estávamos agora vendo um balé singelo, ouvindo uma música que curava e tocava almas sensíveis, que ganhava vida nos movimentos perfeitos e suaves de uma moça linda predestinada a dançar.
     
      Eu não tinha dúvida alguma de que ela era uma bailarina talentosa. Porém, não imaginava que ela pudesse passar tanta sensibilidade, tanta beleza, tanto encanto. Eu não sabia se era por causa da música, do brilho que o olhar da bailarina loura irradiava atingindo à todos nós cada vez que se virava ou aquele sorriso tão puro, de uma garota que dançava por amor. A verdade era que eu sentia algo bom, que fazia meu coração bater forte.

      Danny levantou a perna num incrível developé, quase tocando sua cabeça, e gritos de oh! acompanhados de palmas e assobios partiram da plateia.

      — Linda! Arrasa, gata! — Angel vibrou.

      Mas Danny não podia ouvir o incentivo dos seus amigos. Estava feliz em seu mundo. Distante de tudo. Vivendo o momento que dava sentido à sua existência, encantando com pas de bourrés perfeitos, impressionando com sua graça, beleza e carisma.

      Uma princesa bailarina, disse a mim mesmo.

      Notei pelo canto do olho a aproximação da Micaela. Ela estava em estado de choque e sua boca semiabriu quando viu a altura absurda que a perna da bailarina que se apresentava subiu em mais um developé.

      — Ela é maravilhosa — foi a coisa mais sensata que podia ter saído de sua boca.

      Sorri com sarcasmo.

      — Sorte a sua que você não tá competindo com ela, né? — provoquei-a. — Acho que hoje não dava pra você ganhar.

      — Idiota! — ela grunhiu. — Eu sou melhor que ela.

      Todo mundo devia estar pensando a mesma coisa que eu: que a Danny era incrível. Que ela era uma bailarina que desafiava todas as leis da gravidade, mantendo-se sempre com aquela postura linda, nunca oscilando, jamais perdendo o equilíbrio, como se um fio invisível estivesse prendendo-a à uma estrela.

      Nós, bailarinos, sabíamos que a garota estava exigindo uma resposta violenta e brutal  de seus músculos e ossos. Os pés dela estavam gritando de dor, sofrendo dentro das apertadas sapatilhas de ponta. As panturrilhas também deviam estar queimando.

      E mesmo assim, ela continuava a sorrir, a se dar por inteira, porque apenas dançar era pouco para uma princesa bailarina. Danny queria que todos se lembrassem dela. Para sempre.

      Aquele corpo, aquele bumbum gracioso, mal coberto pela saia bandeja tão pequena. Aquelas pernas compridas.

      Na parte final, uma série de piqués, um primeiro arabesque, fechando com quinta posição de braços.

      A música chegou ao fim e ela se curvou em reverance.

      O que aconteceu nunca mais sairia da minha memória. O teatro, que a aplaudia antes mesmo do fim da apresentação, quase veio abaixo. Danielle foi ovacionada, com todas as pessoas a aplaudindo em pé. Gritos de bravo, linda, arrasou, explodiram de todos os cantos. 

      Ela havia conseguido. Ela conquistara todos os corações. Havia tocado o céu.

      Danny saiu graciosamente do palco, sob o barulho interminável das palmas, e quando se viu fora do campo de visão da plateia, veio correndo em nossa direção.

       Angel abriu os braços e ela saltou, entrelaçando suas pernas compridas em torno do corpo dele e abraçando-o.

      — Você arrasou! Você conseguiu, gata! — Angel não segurava a emoção. Uma de suas mãos a apoiava pelas costas, e a outra apertava a bunda dela.

      — Eu sei. Não tô acreditando…!

      — Pessoal, escutem! — Nicole pediu, pondo um dedo no lábio.

      Ficamos quietos. Os gritos mudaram.

      Danny! Danny!

      — Estão gritando meu nome! Eles estão gritando meu nome, não acredito! Que lindo, que lindo…!

      Os bailarinos vieram cumprimentá-la com abraços e beijos, parabenizando-a pela apresentação perfeita. Nicole, que havia se afastado um pouco do grupo para atender uma chamada, voltou sorridente.

      — Danny, a Letícia ligou da cabine. Ela disse que você pode voltar ao palco e dançar a coda. Vai lá e arrasa, ela disse.

      Um sorriso iluminou o rosto da Danielle, que se soltou dos braços do amigo e voltou correndo para diante de seu público apaixonado, que repetia seu nome sem parar.

      A luz se projetou em volta do corpo dela. 

      De repente, a coda de Lago dos Cisnes foi tocada e Danny começou a virar fouettès, como um furacão irresistível. Uma máquina. Os gritos e palmas se intensificaram, as pessoas entraram em catarse ao verem a garota girar os 32 fouettès do balé mais famoso.

      Eu não tinha palavras. Então, era assim que uma princesa bailarina dançava. Próxima da perfeição. 

      Ao voltar sorridente do palco, a felicidade irradiava do rosto da bailarina. As lágrimas borravam sua maquiagem. Era um choro de felicidade, antes contida, agora à vista de todos. 

      Ao passar por mim, ela parou e me encarou quase colando seu corpo magro e perfeito ao meu. Meus instintos me empurravam a fazer algo nada inocente.

      — Onde aprendeu a dançar assim?— perguntei. — Foi incrível, eu...

      — Vítor Hugo — ela me interrompeu — , fique quieto. Não posso te beijar enquanto você fala.

      Sem que eu pudesse dizer mais nada, a garota pôs seus braços em volta do meu pescoço, e puxando minha cabeça, colou os lábios dela aos meus e me deu um beijo de língua.

      Minha reação foi instintiva. Puxei-a pela cintura, nos beijamos diante de todos os bailarinos estarrecidos. 

      Era a primeira vez que uma garota roubava de mim um beijo sem que eu esperasse e sentir o gosto da boca dela na minha foi algo que eu não sabia explicar com palavras.

      Ela tinha uma expressão de “quero mais” quando desfizemos o contato. Garota atrevida. E eu achando que era comportada. Seu sorriso maroto me provocava sem pudor algum, como se ela quisesse testar meus limites.

      Não era a mesma garota de hoje de manhã que me pediu com tanta ternura que a girasse, mas outra, totalmente oposta.

      A cor dos olhos estava diferente. Os contornos agora eram dourados, ao invés de pretos. Não eram mais olhos cautelosos, inseguros, mas desafiadores.

      — O que foi? — ela perguntou. — Não está acostumado que uma garota tome a iniciativa e te beije?

      Que garota afrontosa.

      Me limitei a sorrir sem nada dizer.

      — Esse é um beijo de verdade — a garota apoiou suas mãos em meus ombros.

      Todas as minhas estruturas sofreram um abalo diante daquela mulher gigante, provocante e sexy como a própria Odile, e senti meu pau endurecer ao fantasiar com a Danny algo ainda mais forte do que um beijo.

       Bastava ela dizer que sim.

      — Danny! — alguém gritou.

      Olhamos ao mesmo tempo para o lado e as meninas de quem a Danny havia feito os coques saltitavam alegres e sorridentes . A garota se abaixou para receber abraços da turminha de pequenas bailarinas.

      — A gente viu você dançar. Você dança muuuuuuiiiiiitoooo! — vibrou uma garotinha de nariz arrebitado.

      — Obrigada — Danny se sentou e foi envolvida pelos abraços das pequenas. 

      Como não poderia deixar de ser, os amigos dela vieram comemorar. Abraços, beijos e muito choro; medos que ficaram para trás.

      Angel a ergueu sob sua cabeça, os dois fazendo a pose clássica do pas de deux. Nicole e Duda choravam e sorriam ao mesmo tempo. Alice Chamowitz não tomou participação na comemoração, mas notei que ela tinha um sorriso, ou um esboço de sorriso. No fundo, também estava orgulhosa.

      A noite de comemorações seria longa para os bailarinos da Letícia Ballet.

      Já que eu estava sobrando, girei nos calcanhares e comecei a andar em direção ao vestiário, não sem antes olhar por sobre meu ombro para a garota loura que era envolta pelo carinho dos amigos.

      Vendo sua felicidade, sorri. Então, me distanciei.

                            . . .

      Entrei no camarim e vesti novamente meu figurino de Paquita, para subir ao palco e participar da cerimônia de premiação. Os solistas da Alliance entregariam as medalhas aos vencedores, e eu tinha esperança de que a Danny estivesse entre eles.

      As tensões haviam chegado ao fim, pelo menos até amanhã. Nada mais de unhas sendo roídas, corre corre.

      No feminino da nossa categoria, ninguém ousava apostar que a Rafa não sairia premiada.

       A categoria Júnior tinha muito equilíbrio. Pelo desempenho em festivais internacionais, a Duda era favorita à medalha de ouro, e Danny podia ficar em segundo lugar, o que era bastante honroso para ela.

      Micaela ficou do meu lado, na saída do palco, junto com solistas e demisolistas da nossa produtora. Ela entregaria duas medalhas, e eu, uma. Maria Luíza Pomini, a super bailarina do Ballet São Paulo, carregava o filho nos braços, e pelo que nos foi avisado, entregaria a medalha para a primeira colocada da variação clássica feminina da categoria júnior. Micaela entregaria para a vice campeã.

      Virei a cabeça em direção dos alunos da Letícia Ballet. Angel estava na cadeira da frente, tirando fotos da Danny, da Duda e da Nicole. As meninas ainda estavam caracterizadas como as personagens dos balés que dançaram e riam, felizes e travessas.

      Os olhos da loura acabaram encontrando os meus. Sorrimos um para o outro. Ela fez um coração com as mãos.

      O locutor surgiu no palco, com os envelopes dos resultados na mão.

      Muitos nomes foram anunciados e cheguei a bocejar de tédio, incomodado com a calça justa e com o fio dental enfiado no meu rabo.

      — Vencedores da Categoria Júnior. Feminino.

      Soltei outro bocejo.

      — Terceiro lugar. Centro Cultural de Bastos, com variação de Harlequinade. Emanuelle Cordeiro.

      Uma menina magra e bonitinha subiu ao palco e recebeu sua medalha sob aplausos. Danielle tinha ainda um sorriso no rosto, porém levemente apreensivo. Duda, por sua vez sorria expansivamente, certa da vitória. 

      — Segundo lugar, Letícia Ballet…

      Meu coração se acelerou de repente. Olhei para as cadeiras, para o grupo da Danny. Duda teclava o celular toda sorridente, desinteressada. Danielle tinha os lábios semiabertos e segurava as mãos da Nicole. As duas estavam apreensivas.

      Alice, Nicole ou Danny?

      — Com variação de Ganzatti,  Maria Eduarda dos Santos.

      Duda fez cara de quem tomou uma bofetada inesperada. Seu sorriso se desmanchou no mesmo instante em que seu nome foi pronunciado, e mesmo não estando muito perto do grupo da Letícia, consegui ver seus lábios se moverem nervosamente.

      — Como assim, a melhor bailarina da Promoarte não ficou em primeiro? — uma solista comentou com a Micaela.

      Duda não acreditava. Levantou-se como um robô e recebeu seu prêmio das mãos da Micaela com um semblante de pura frustração, sem agradecer, voltando ao seu lugar de cabeça baixa.

      Danny e Nicole abraçaram a amiga. As três levantaram-se para sair do teatro, talvez para tomar um ar.

      Todas as atenções se voltavam agora para o anúncio da vencedora da noite.

      Duda havia feito uma apresentação irretocável. Era surpreendente que ela tivesse ficado em segundo lugar. Quem a havia suplantado só poderia ter dançado algo próximo da perfeição.

      — Primeiro lugar. Letícia Ballet. Com Quinta Variação de Paquita…

      Precisei prender minha respiração.

      — Danielle Răducanu!

      Gritos apaixonados irromperam de todos os cantos do teatro, com ovações. Danielle, que já estava quase saindo, olhou desnorteada para os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Com uma das mãos no peito e o indicador da outra apontando para si, perguntando: “eu?”

      As palmas não cessavam. Todos estavam em pé, aclamando a melhor bailarina Júnior da noite, e até às solistas da  Alliance vibraram.

      Com muito custo, Nicole arrastou-a pela mão até o palco, para receber a medalha de primeiro lugar das mãos da Maria Luíza, que sorria emocionada. Elas trocaram palavras entre si e se abraçaram.

      Danny adiantou-se aos demais, sob aplausos e gritos intermináveis de Danny, te amo. Ela agradeceu o carinho, fazendo um coração com as mãos.

      Os olhos dela encontraram os meus ao se virar e lhe ofereci um sorriso, que ela devolveu enquanto chorava, se desnudando, mostrando que era humana.

      Parabéns, melhor bailarina da noite.

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