Capítulo 66

          Danielle

      A sapatilha de ponta não é só um calçado, mas uma parte do corpo de uma bailarina. Quando eu amarrava as fitas de cetim em volta dos meus tornozelos, todas as minhas células pulsavam e eu entrava em estado de plenitude. Eu me sentia capaz de tudo.

      Ninguém podia imaginar o que eu estava sentindo ao ver minhas sapatilhas destruídas, cortadas em vários pedaços. A pessoa que fez aquele maldade não só destruiu minha apresentação. Também matou uma parte de mim.

      — Meu Deus, Danny… — Nicole levou uma das mãos à boca e outra ao peito, chocada com o que via.

      Com o olhar perdido direcionado às pontas destruídas, meio que entrei em estado de anestesia. Minhas faculdades mentais entraram em colapso, eu não consegui dizer nada. Meus dedos passaram pelos cortes que pareciam ser de estilete.

      Andei em direção à porta em passos lentos, como um corpo sem alma. Lágrimas corriam pelo meu rosto.

      Por que haviam me sabotado? Por que alguém faria uma coisa tão horrível comigo?

      De qualquer forma, não importava mais. Já estava feito.

      — Danny, agora não dá mais pra dançar — Nicole disse com voz chorosa.

      Num instante o camarim se encheu de bailarinas. Elas reagiram da mesma forma que a Nicole, quase surtando. 

      — Meu, Deus! Cortaram as suas pontas! — a loura de mecha azul gritou.

      Sons parecidos com sussurros lamentos se instalaram na meus ouvidos como zumbidos de moscas incômodas. Eu continuava sem reação, nem sentia os abraços delas, nem discernia mais palavras de confortos.

      Por quê?

      — O que aconteceu aqui? — Carlos Amaral entrou intempestivamente no camarim. — Danielle, você tem só quatro minutos pra… — então, ele me viu segurando as sapatilhas que já não serviam pra mais nada. — Mas que porra! Quem fez isso?

      Ao fazer essa pergunta como um urro furioso, o coreógrafo olhou para cada uma das meninas. Mas é claro que ninguém iria assumir a culpa. Eu duvidava que alguma delas quisesse me prejudicar.

      — Sabotar uma colega é imperdoável nessa produtora. Se eu descobrir quem foi, vou banir do balé.

      A professora da Miyuki pôs a mão na boca, soltando um meu Deus bem baixinho. Tocou na gáspea do calçado, me dando um olhar terno.

      — Eu não tenho palavras, Danny… Não sei o que dizer.

      — Não diz nada — minha voz saiu por fim.

      — Danielle, você tem um par de reserva? — Carlos me segurou pelos ombros.

      As pontas que eu usei durante o Festival e o curso de verão também estavam em péssimo estado. Aquelas que eu segurava eram as únicas que eu tinha.

      — Não.

      Carlos Amaral fechou os olhos. Seu rosto passou da raiva para a desolação. Tristeza. 

      Todas as meninas caracterizadas como cisnes tinham rosto de choro. Até Alice e Micaela, normalmente frias, estavam afetadas, como que destruídas psicologicamente. Seus lábios tremiam. A loura de mecha azul tinha as palmas das mãos unidas diante da boca, totalmente sem reação.

      Vendo o desânimo das minhas colegas e sabendo que aquele espetáculo não era só meu, mas também delas, tentei buscar forças dentro de mim.

      Aquele não podia ser o fim. Eu não aceitava aquele desfecho.

      O espetáculo não podia acabar.

      — Vou dançar descalça — decidi.

      — Garota, você não pode — Alice me segurou pelo ombro.

      — Eu vou dançar descalça, mesmo que meus pés se quebrem, mesmo que seja meu último espetáculo — andei em direção à porta decidida.

      — Danielle — Carlos me fez parar —, você não pode. Você não tem uma sapatilha de ponta.

      — A sapatilha não seria nada se não fôsse eu para calçá-la — minha resposta firme fez o coreógrafo paralisar.

      O silêncio se instalou na sala. Ninguém se pronunciou, ninguém ousou me contrariar.

      Era um ato extremo ir descalça ao palco, com certeza. A chance de eu me machucar existia. E tanto fazia eu usar uma sapatilha de lona ou não. Os riscos eram os mesmos.

      Mas não era justo jogar de última hora a responsabilidade de dançar o papel de Cisne Branco para uma daquelas garotas, que não conheciam todos os passos.

      Não era justo comigo. Eu me dediquei demais àquele papel, era meu, e ninguém iria me impedir de brilhar ou de pelo menos tentar.

      Além disso, Vítor Hugo estava esperando por mim.

      Olhei meus pés descalços, só cobertos com a meia calça. Meio que me despedi deles.

      Enxuguei uma lágrima, delineei um sorriso triste.

      — Uma bailarina nunca foge de um palco. Nunca foge de uma responsabilidade. Não importa o que vai acontecer, esse é o meu momento, e nada vai me impedir de dançar.

      O coreógrafo suspirou com aborrecimento, tapando os olhos e abanando a cabeça de um lado para o outro, e levantei o queixo em expectativa.

      — Você não tem nenhum respeito pelas leis da gravidade, nem pelo perigo. Você não aceita regras — a voz dele saiu rude. — Mas é isso que faz de você especial, garota. 

      Ele me segurou pelos ombros, e para minha surpresa, beijou minha testa.

      — Só uma princesa de cristal tem essa ousadia. Tudo bem, vá lá.

      Me distanciei sorrindo, pronta para correr para o palco.

      — Espera, Danny.

      A professora da Miyuki veio até mim. Suas mãos seguravam uma caixa de forma retangular, cor de rosa, amarrada com um laço.

      — A Miyuki me ligou agora mesmo, me perguntando sobre o espetáculo — ela informou. — E eu acabei contando sobre o que aconteceu com as suas sapatilhas.

      Minha boca semiabriu em surpresa ao receber da mulher a caixa. Meu coração, de repente, bateu forte no meu peito.

      — Ela me pediu para te dar isso.

      As bailarinas vieram correndo para ver o que era, e sem me conter, tirei a tampa.

      Era um par de sapatilhas de ponta. Não qualquer tipo de sapatilha, mas uma Gaynor Minden, simplesmente o sonho de toda garota que dança.

      — Por uma grata coincidência ou porque os deuses da dança quiseram assim, você e a Miyuki calçam o mesmo número e tem o mesmo formato de pé. Delicado. Ela disse: eu não posso mais dançar, e seria injusto ter de jogar fora uma sapatilha que eu tanto sonhei usar num festival importante. Mas a Danny pode, e eu quero que ela a use.

      Tirei um dos calçados, as lágrimas voltando aos meus olhos. 

      Eram sapatilhas lindas, de uma princesa. A gáspea era estreita, igual a da minha, que foi cortada.

      Prontamente me sentei num pufe e pedi a Nicole que trouxesse minhas ponteiras de silicone. Ela veio toda sorridente, quase tropeçando, e calcei as sapatilhas rapidamente, amarrando as fitas em volta dos meus tornozelos.

      Me senti como se estivesse sonhando, ao ficar em pé.

      Era como se eu não estivesse usando nada, tão confortáveis elas eram. Andei na ponta dos pés em volta da sala para testá-las. Perfeitas!

      As meninas me aplaudiram e me desmanchei em lágrimas ao receber abraços de todas elas. Podia ser impressão minha, mas notei  Carlos Amaral lacrimejando. Ele era humano também, não é?

      — Obrigada — agradeci à professora.

      Ela segurou minhas mãos por entre as suas, as beijou. Tocou meu rosto, uma expressão tranquila e terna em seu semblante de idosa. 

     — Vá e arrase como sempre — me desejou.

      — Cisne Branco em um minuto! — um dos contra regras pôs a cabeça dentro do camarim, me apressando para ir ao palco.

      Soltei as mãos da bailarina mais velha, disparei como flecha pelo corredor com gritos de corre, Danny às minhas costas. Quase atropelei alguns cisnes que voltavam do palco e outras bailarinas abriam caminho quase se encostando nas paredes pra que eu passasse. 

      Observei através das pesadas cortinas Vítor Hugo dançando graciosamente e sendo espreitado por Rothbart.

      Ele era mesmo perfeito.

      Lindo, em todos os sentidos.

      Vê-lo girando pirouettes en atitude, o sorriso através de seus olhos e sua felicidade por estar dançando produziu em mim a certeza de que assim como eu, ele só se sentia pleno ali. E me fez compreender que eu não tinha o direito de impedi-lo de alçar um vôo mais longo em nome de uma paixão adolescente. Não era justo com ele.

      Apoiei minha mão na estrutura metálica que subia do chão ao teto, fechei os olhos por um instante. Tomei minha decisão.

      Senti alguém passando a mão na minha bunda por baixo da saia tutu curtíssima. Semiabri os lábios ao ver Antonella sorrindo pra mim. Ela estava linda e vistosa em seu figurino de cisne.

      — Posso te dar un abrazo?

      O brilho no olhar dela destruiu minhas defesas. Eu dei à argentina um de meus melhores sorrisos, me deixei ser abraçada.

      — Seu príncipe te espera — a loura apontou com o queixo para o palco.

      — Sim — respondi.

      — Vá e brilhe. 

      Muitas sensações tomaram conta de mim naqueles segundos em que ficamos nos olhando, sorrindo uma para a outra. Antonella era uma peste, isso nunca iria mudar. De repente, podia ter sido ela quem cortou minhas pontas. Mas eu não consigo ver maldade nas pessoas. Eu não conseguia mais ver uma garota má diante de mim. Só uma garota como eu, livre. Cheia de sonhos.

      E aqueles olhos azuis escuros, aqueles traços indígenas…

      Antonella era capaz de me fazer sentir excitada e ela sabia bem disso. 

      Aquele festival me fez compreender que eu era uma garota instável. Meus instintos me jogavam para a aventura, para o perigo e para a perdição, e eu sofreria muito se não aprendesse a lidar com as minhas fraquezas carnais, além de fazer as pessoas que eu amava sofrerem.

      Era naquele bailarino de cabelos escuros e olhos impactantes que residia minha esperança de mudar como pessoa e me tornar alguém melhor, constante.

      E quando ele parou de dançar e pôs a mão no peito, olhando em minha direção, caminhei na ponta dos pés para o centro do palco, todas as luzes apontadas para mim. Meus braços se moviam tristemente em semicírculos como asas de cisne, minhas inquietações abafadas pelo som dos violinos dos músicos da orquestra e dos aplausos vindos da plateia.

      A boca do Vítor Hugo semiabriu. Queria poder sorrir para ele, mas me sentia triste por estar presa à minha natureza animal. E eu não confiava nos gestos de aproximação do príncipe tão lindo em sua casaca branca.

      À cada tentativa que ele fazia de me tocar, eu me esquivava graciosamente. Mas meu medo desapareceu quando nossos olhos se encontraram e esse contato visual me mostrou que ele não queria me fazer mal. Pelo contrário, ele queria me libertar da prisão sem muros em que eu estava.

      — Eu te amo — ele declarou baixinho.

      Meus lábios tremeram.

      Eu também te amo, respondi mentalmente sem sorrir.

      De olhos fechados, me deixei ser abraçada por trás e aceitei o toque suave da mão dele no meu rosto.

                                 …

      Nunca me entreguei tanto num pas de deux. Não sei se porque eu incorporei em mim a alma da princesa transformada em cisne, mas eu transcendi meus limites.

      A plateia vibrou com a coda dançada por Vítor Hugo, saltos arrojados com uma sequência de pirouettes parecidas com hélices.

      Logo que ele correu para o canto e estendeu a mão para eu me adiantar, fiz a pose de quarta posição e conquistei a plateia, girando os 32 fouettés. Gritos de linda explodiram de todos os lados. Foi insano.

      Quando todos os cisnes vieram ao palco correndo e mexendo os braços, dançando tristemente em volta de mim e do Vítor Hugo, ele me segurou por trás pela cintura. Me ergueu sentada em seu ombro.

      Tudo ficou em silêncio por um instante que pareceu uma eternidade.

      Olhei para a plateia.

      Para o teto.

      Só escutei as batidas do meu coração e mais nada.

      Fechei os olhos, me deixei cair rolando.

      Vítor Hugo me segurou com uma das mãos na minha cintura e outra na minha coxa. Conseguimos! Segurei minha vontade de sorrir ao ser segurada em posição de pescado. Se por fora eu não podia deixar minha felicidade transparecer por causa da melancolia que o pas de deux de Siegfried e Odette exige, por dentro minha alma exultava.

      Nicole, Antonella, Alice e todas as demais bailarinas continuaram correndo em volta de nós, a música terminando. Por fim, fui erguida por Vítor Hugo. Nos olhamos com magnetismo, fogo, paixão e tristeza, antevendo nosso desenlace trágico. Passei meus braços em volta de seu pescoço, meu corpo se equilibrando na ponta das sapatilhas, toquei seu rosto. Meus lábios semiabriram pela última vez, me deixei cair em seus braços.

      Sem vida. Feliz

      A música termina e toda a plateia, emocionada, se levantou de suas poltronas nos ovacionando. Gritos de bravo, lindos, maravilhosos, ecoaram pelo recinto, aumentando de intensidade à medida que a cortina se fechava.

      — Parabéns, meu amor — Vítor Hugo me levantou gentilmente. — Você foi maravilhosa.

      Nos olhamos com paixão e cumplicidade, por fim pude dar o sorriso que estava preso durante todo o ato. 

      — Nós dois fomos — o corrigi após selar os lábios dele com um beijo. — Eu nunca teria conseguido sem você.

      As bailarinas vieram correndo em minha direção, lindos sorrisos em seus rostos molhados de lágrimas. Nicole foi a primeira a me dar um abraço, me balançando.

      — Parabéns, amiga. Você estava linda, tenho muito orgulho de você.

      — Obrigada, Nic — comecei a chorar.

      A seguir recebi cumprimentos de todas elas em forma de abraços e beijos e formamos um grande círculo nos abraçando. A fotógrafa da Promoarte registrou o momento.

      As cortinas se abriram novamente, cada artista correu para fazer uma reverance ao público. O Ítalo, como mago Rothbart. A Nicole, a Antonella, a Flávia e a Micaela (os pequenos cisnes do pas de quatre).

      Vítor Hugo correu para a beira do palco. Ergueu seu braço direito, em seguida o esquerdo, agradecendo com uma curvatura, me estendeu a mão para que eu também fôsse. Agradeci ao carinho de todos com uma reverance graciosa e um sorriso, fazendo um gesto de braços mais delicado. Em resposta, as pessoas gritaram linda com mais força. Mais uma vez me desmanchei em lágrimas.

      — Obrigada — solucei.

      Os rostos daquelas pessoas ficaram gravados na minha memória. Mesmo quando a cortina se fechou, depois de eu receber um buquê de flores (prova de que naquele fim de semana eu fui a primeira bailarina da Promoarte), eu podia ver cada sorriso, cada gota de lágrima caindo pelo rosto de homens, mulheres, jovens e crianças, e prometi a mim mesma que momentos como aquele passariam a ser rotina.

      — Podíamos comemorar, não é? — Vítor Hugo tomou minha mão (a que não segurava as flores) por entre as suas.

      — O que você sugere? — perguntei.

      — Sei lá. Um pub? Karaokê?

      — Karaokê? Nem pensar. Morro de vergonha de cantar em público.

      Nenhum programa parecia apetecível, visto que estávamos cansados. Concordamos em ir a uma pizzaria. 

      De súbito, alguém segurou minha cintura e dei um grande sorriso ao me virar e ver meu pai de braços abertos.

      — Pai! Você veio! — exclamei.

      — Achou que eu não viria ver minha menina arrasar? Até parece.

      Como no tempo em que eu era criança, ele passou o dedo indicador logo abaixo do meu rosto. Não era sempre que ele sorria daquele jeito, espontâneo, emocionado. Meu pai era um homem sério e de poucas palavras, porém isso nunca foi um empecilho para que a gente tivesse um verdadeiro amor de pai e filha. Não precisávamos de palavras. Só os gestos de carinho bastavam.

      Vítor Hugo pigarreou, claramente aborrecido por eu ter me esquecido dele enquanto Daniel e eu tínhamos um momento de pai e filha.

      — Daniel — ele olhou para o chão, para o lado, para o alto, menos para meu pai. Ri baixinho, com uma vaga ideia do que iria dizer —, eu… queria te pedir…

      Meu pai se revestiu de ar sério, fazendo Vítor Hugo estudar as palavras que diria.

      — A Danny e eu…

      — Pare de gaguejar. Você quer pedir a mão da minha filha em namoro? Fique sabendo que acho isso bem fora de moda. 

      Meu namorado revezou um olhar entre Daniel e eu, a boca semiaberta. A veia do pescoço pulsava de nervosismo e achei fofo da parte dele querer agradar meu pai.

      Mesmo sem que um sim fosse dito, era evidente que meu pai consentiu.

      Puxando Vítor Hugo pelo ombro, o abraçou.

      — Bem vindo à família Răducan.

      Os minutos seguintes foram bem foda pra mim. Não tive tempo nem de fazer xixi, por causa de pessoas querendo que eu posasse para fotos de recordação ou para selfies. Mas encarei de boa, sempre com um sorriso.

      À todo momento pessoas importantes do meio da dança apareciam não sei de onde, para me abraçar e falar coisas que toda bailarina gosta depois de ouvir. Letícia me fez chorar ao dizer que eu era seu maior orgulho e que logo eu iria dançar numa companhia forte. Tânia Dressler, fã incondicional da Duda, confessou que sempre soube que logo eu seria uma das principais estrelas da dança, e que queria me inscrever nas principais competições internacionais de dança.

      Tudo isso, junto da minha superação, fez com que eu sentisse orgulho da minha trajetória e das minhas conquistas. Eu não me sentia mais a filha do Cisne Branco. Agora eu tinha uma idade própria.

      E mesmo minha mãe não estando comigo, sabia que ela estava orgulhosa de mim.

                                …

      Nossa noite foi longa. Muitos bailarinos comemoraram em restaurantes, lanchonetes e pubs. Vítor Hugo e eu fomos a uma pizzaria que ele escolheu num site tipo Busque aqui, e me proporcionou momentos incríveis. Rimos, conversamos sobre tudo (menos sobre balé, deu), e claro, nos beijamos. 

      Foi difícil dormir sem ele.

      De manhã, guardei todas as minhas coisas na mochila cargueira. Dei uma última olhada no quarto, uma sensação de nostalgia apertando meu peito.

      Vou sentir saudade daqui, pensei.

      Meu pai havia levado no carro os figurinos e collants que usei. Ele não entendeu porque eu queria voltar de ônibus e não de carro. Respondi que naquelas duas semanas de festival e curso eu havia feito amigos. E queria ficar com eles mais algumas horas, antes de nos despedirmos.

      E claro: queria ficar com o Vítor Hugo.

      Antonella estava dormindo meio de lado na cama, sem lençol, só usando o fio dental de dança e uma camiseta branca. Sorri por ela estar tão tranquila, passando um ar de paz.

      Tão linda. Tão gostosa.

      Toquei de leve na bunda dela. Pensei em acordá-la para me despedir, mas achei que só complicaria as coisas. 

      A gente se encontraria muitas vezes, com certeza.

      Sem mais nada a fazer, fechei a porta atrás de mim, sai.

      Vítor Hugo parecia aflito sentado no banco da rodoviária, o queixo apoiado nas mãos, balançando os pés e se levantou como que impelido por uma mola quando fiquei à sua frente.

      — Oi. Demorei muito? — sorri.

      Ele envolveu minha cintura, retribuiu com um sorriso e me deu um selinho.

      — Só o suficiente pra me deixar louco.

      — Desculpa.

      — Tudo bem.

      Vi por sobre o ombro do meu namorado os sorrisos travessos da Nicole, do Angel, da Ana e da Rafa. Micaela estava sentada ao lado do Léo. O rosto dela não tinha nenhum sinal de ressentimento, embora os olhos emitissem um brilho diferente.

      — Bom… Vamos?

      Respondi que sim e entrelacei meus dedos com o de Vítor Hugo enquanto andávamos em direção ao funcionário do ônibus que despachava as bagagens.

      Vítor Hugo se sentou do lado da janela, já que gostava de olhar paisagens, e além disso, eu costumava me levantar várias vezes para fazer xixi.

      Nosso grupo ficou no fundo do ônibus. Duda havia ido embora logo depois do espetáculo de carona com a Tânia, que era como uma mãe para ela. Por mais que eu estivesse puta com ela, não conseguia odiá-la. Eu ainda gostava dela.

      Mas nossa relação seria diferente dali pra frente. Mais rivalidade, mais disputa.

      Que se foda.

      — Tá pensando em quê? — aquela voz tão gostosa de ouvir quebrou meus pensamentos, me fazendo sorrir quando ele passou os dedos no meu cabelo.

      —  Num monte de coisa — me virei e prendi meus lábios aos dele.

                            …

      O ônibus parou depois de quase duas horas de viagem num restaurante. Tínhamos meia hora para almoçar e descansar um pouco antes de continuar viagem, e como o tempo era escasso, fui ao banheiro com as meninas para fazer xixi.

      — Vem ver isso — Vítor Hugo me estendeu a mão assim que voltei, me levando para o balcão de salgados. Fez com que eu me sentasse num dos bancos e apontou com o indicador para a tv de plasma no suporte da parede.

      — Não acredito. Somos nós — sorri. — Gente, vem cá — chamei a Nicole e o pessoal.

      Uma repórter falava sobre o espetáculo de encerramento do curso de verão da Promoarte.

      O teatro Pedro II foi palco de uma exibição de gala de alguns dos melhores bailarinos da atual geração e encantou o público que lotou a mais importante e tradicional casa de espetáculos de Ribeirão Preto.

      A seguir, um repórter apareceu à frente de bailarinos que faziam exercícios na barra. Eu apareci fazendo uma pirouette en dehor.

      No olhar da bailarina de apenas quinze anos, o amor e a dedicação pelo balé. Danielle, tão jovem e já considerada uma jóia da dança clássica, parece exercer um magnetismo quase mágico nas pessoas quando dança. Desde os três anos de idade, a filha de Françoise Sacramone, maior bailarina de todos os tempos, encanta públicos de todas as idades com sua graça e beleza acima da média, em saltos e pirouettes que desafiam a gravidade e nos fazem perguntar: ela é voadora?

      Eu não consegui piscar. Por causa dos ensaios, nem me lembrava que essa aula tinha sido filmada, mas me vendo na tv, com a mão do Vítor Hugo segurando a minha e sorrindo pra mim, me deixou super feliz.

      — Não tô acreditando — sibilei sorridente.

      A reportagem mostrou as partes mais empolgantes do espetáculo. Não que eu estivesse sendo convencida, mas os maiores destaques foram Vítor Hugo e eu. Nossos giros e saltos, a parte final em que eu caio de cima em pescado e morro nos braços do príncipe.

      Era simplesmente incrível ouvir os aplausos intermináveis das pessoas nos assistiram.

      — Não sei o que dizer… — me limitei a só olhar para o monitor.

      O beijo que ganhei no pescoço reprimiu minha vontade de chorar de novo. 

      — Moça — uma voz de criança disse ao meu lado —, você é a Danielle, né?

      Me virei prontamente. Uma garotinha de cabelos escuros e pele branquinha sorria pra mim.

      — Sou — retribui ao sorriso dela.

      — Papai me falou sobre você. Eu adoro assistir suas danças.

      — É mesmo? Que legal — respondi. — Seu pai já me viu dançando?

      — Papai! — a garotinha olhou por sobre meu ombro. Vítor Hugo e eu nos viramos para trás ao mesmo tempo e vimos um homem de boné, barba por fazer e com uma camiseta preta se aproximando com uma garrafinha pet de coca cola. — Papai, olha a Danny!

      A familiaridade com que a menina se referia a mim para o pai me deixou desconfiada. 

      Mas essa desconfiança se desvaneceu quando finalmente me lembrei de um rosto parecido com o do pai dela. O rosto de um homem que conheci há cinco anos.

      — Meu Deus. Danielle, quanto tempo?

      Minha voz saiu mais alto do que eu queria.

      — Eu conheço você. Seu Mateus!

      — Então você é a pequena Isadora? — a menina confirmou que sim com a cabeça.

      — Não vai me dar um abraço, guria?

      Adiantei meu corpo, emocionada, fiquei abraçada ao corpo do Mateus por quase um minuto.

      — Como você cresceu — ele disse com surpresa. — Se tornou uma mulher linda. Nem parece aquela menina triste que eu encontrei naquele posto de gasolina. Que bom te encontrar, guria.

      — Vocês se conhecem? — Vítor Hugo queria uma explicação.

      — Amor, lembra daquela história que te contei sobre o Laerte ter me abandonado numa estrada do Rio Grande do Sul e um homem ter me salvado, cuidado de mim e ter me trazido de volta pra São Paulo? É ele — apontei para o caminhoneiro.

      Vítor Hugo e Mateus se olharam com atenção. Não sei porque ficaram quietos de repente, se estudando.

      — Mateus? — meu namorado balbuciou.

      O caminhoneiro franziu o cenho em questionamento.

      — Eu me lembro de você. Seu caminhão quebrou num trecho de Curitiba há cinco anos e meu pai o consertou.

      — Isso! E você é aquele garotinho gentil que me ofereceu um pedaço de bolo de fubá e que dançava na beira da pista enquanto seu pai mexia no motor. Vítor Hugo.

      Agora quem tinha ficado em choque era eu. Não podia ser. Era impossível.

      Aquele garoto que bateu no vidro e me ofereceu um pedaço de bolo era o Vítor Hugo.

      — Não acredito que a gente se conhece há cinco anos — me encostei no balcão pra não cair.

      Os olhos de Vítor Hugo se arregalaram de um jeito que parecia que fossem saltar das órbitas. Mateus não estava menos surpreso. 

      — Não tinha como eu me lembrar do seu rosto — meu namorado explicou. — Você estava careca, tinha dentes tortos, era bem diferente do que é hoje.

      — E as minhas sardinhas, nunca reconheceu? — ri.

      Mateus pôs a mão no ombro da filha, então reparei melhor nela. Era uma criança linda, cheia de saúde, vida. A mesma felicidade que tive há cinco anos, quando meu pai a ajudou com o tratamento, me preenchia de novo.

      Que fim de semana era aquele? O que fiz pra merecer, de repente, que tantas coisas boas estivessem acontecendo comigo?

      Me abaixei, abracei a Isadora, meus olhos lacrimejando.

      — Tô muito feliz de te conhecer — declarei.

      — Eu também, Danny. 

      Mateus observava ao nosso abraço com um largo sorriso no rosto. Uma mulher apareceu, passou o braço na cintura do caminhoneiro, me olhou com desconfiança.

      — Mamãe. Olha a Danny — Isabella gritou.

      Mamãe?

      — Amor, lembra da garota que eu sempre falo e que ajudou nossa filha? É ela.

      — Prazer, Danny. Obrigada por tudo — a mulher se adiantou, me cumprimentando.

      — A Maíra e eu não vivíamos juntos — Mateus explicou —, mas depois que nossa filha foi operada, nos aproximamos e ficamos amigos. E dessa amizade nasceu entre a gente um sentimento forte. Nos casamos. E somos uma família.

      — Não sabe como fico muito, muito feliz por isso. Vocês são uma família linda.

      — Vocês estão a passeio? — Vítor Hugo perguntou.

      — A trabalho — corrigiu Mateus. — Estou levando uma carga para Ibiúna.

      — Como a Isadora está de férias, nós sempre viajamos juntos — Maíra explicou. — Acredita que ela ser caminhoneira igual ao pai?

      Bem diferente, pensei. Mas bonito.

      — Você ainda tem aquela carreta volvo azul? — quis saber.

      — Ah, não. Vendi para o Pedro, meu irmão. Vocês estão com pressa? 

      Como respondi que tinha algum tempo, Mateus pediu que Vítor Hugo e eu fôssemos lá fora um pouco.

      Uma carreta volvo cinza, muito maior e mais nova que aquela em que viajei, se destacava entre as outras no estacionamento. 

      — Caramba! Que linda! — fiquei assombrada.

      — Não é? Alguns cavalos à mais de potência, mais velocidade, wi-fi embarcado e um volvo, claro.

      Nos sentamos à mesma mesa. Me servi de arroz, salada e dois filés de peixe (merluza e tilápia, dois pescados que eu adoro). Vítor Hugo e a família do Mateus lastrearam seus pratos com vários cortes de carne bovina, linguiça e purê. A gracinha Isadora perguntou porque eu só comia peixe, e respondi, brincando, que cisnes comem peixes apenas.

      Os minutos que passamos foram incríveis, me fez lembrar nossos almoços de família na casa do vô Nicolae e da vó Raluca. Era como se fôssemos amigos desde sempre.

      Mateus parou pouco no restaurante, já que queria chegar logo em Sorocaba e pegar a Raposo Tavares.

      Deu um último abraço em mim e no Vítor Hugo, me desejou felicidades. E partiu com sua família.

      A mãe e a filha se desmancharam em sorrisos enquanto acenavam para nós e a carreta de tamanho titânico se afastava. Mateus acionou a buzina do volvo. Era seu último tchau.

      — Família linda, né? — Vítor Hugo cingiu minha cintura.

      — Sim — confirmei.

      — Tomara que possamos encontrá-los um dia.

      — Sempre que a gente dá um tchau ou um até logo, é porque sabe que haverá um reencontro.

      Vítor Hugo concordou. Me apertou mais forte contra seu peito. Passei meus braços em volta de seu pescoço. Nos beijamos.






 






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