Capítulo 62

          Danielle

      Deixei Antonella dormindo, um meio sorriso em seus lábios me alertando de que, por trás daquele seu jeito indefeso, existia uma garota capaz de causar um estrago muito grande na vida das pessoas.

      Eu nunca poderia ser amiga de alguém como ela.

      Sai com uma muda de roupa, escova e pasta de dentes, aproveitando que ainda estava escuro. Só a insone aqui se levantava cedo, felizmente. Em casa eu treinava passos de balé no estúdio particular do meu pai, de paredes de vidro, e era prazeroso por causa da luz das casas do condomínio. Às vezes eu via carros entrando e saindo da garagem enquanto fazia exercícios.

      Tomei um banho demorado. Aos poucos meus pensamentos ganharam a forma de um garoto de cabelos escuros e boca sexy, a voz dele parecendo sussurrar um pedido pra que eu fosse logo ao seu encontro.

      Meus dedos procuraram minha vagina. Me toquei pensando nele, repetindo baixinho seu nome, e quando minha excitação escorreu por entre minhas pernas, se misturando com a água morna do chuveiro, senti uma pontada de angústia dentro de mim.

      Eu precisava do Vítor Hugo. Meu corpo sentia falta do dele, como precisamos respirar para viver. Quando o rosto dele surgia diante de mim, sentia vontade de sorrir e tudo ganhava um significado diferente. No fundo, sempre o amei. E não queria amar mais ninguém.

      Minha cuia de mate estava quase no fim quando Antonella apareceu na cozinha. Durante o tempo que ficou tomando banho, ela cantou uma canção pop em castelhano que não conhecia, e com uma mensagem bonita, sobre viver o hoje intensamente e esquecer o amanhã.

      Por mais que eu não quisesse ter qualquer coisa em comum com aquela garota, ela cantou uma canção que falou diretamente à mim. Eu era imediatista. Só o hoje importava.

      A loura me deu um sorriso malicioso, ao que retribui suspirando com tédio.

      — Oh! É mate?

      Acenei que sim.

      — Não sabia que usted tomava mate. Só se tomam nos estados do Sul, na Argentina e no Uruguai.

      — Eu nasci no sul do Brasil — informei. — Nasci em Santa Catarina. E mesmo que não fosse do sul, erva mate se vende em supermercados de outras regiões do Brasil.

      — Me puedo tomar un gole?

      Ofereci a cuia à argentina e gentilmente despejei água quente da garrafa térmica.

      — Que rico! — ela sorriu — Igual ao que meus tios tomam em Rosário do Sul. Ah! Não te contei? Minha prima también es bailarina. Ela se chama Tainá e se parece muito comigo, todos pensam que somos hermanas.

      Espero que a semelhança seja apenas física, pensei. Ninguém merece duas Carrascosas.

      — Vou indo ao balé — encerrei a conversa, me levantando.

      — Yo voy más tarde — a argentina respondeu.

      Que bom.

      Pus meu collant na mochila e o violão debaixo da cama. Olhei para o quarto uma última vez antes de sair. Sem saber porque, tinha um pressentimento estranho de que algo iria acontecer, mas não fazia ideia do quê.

      — Danielle.

      Me virei empinando o queixo para Lupita, que lia um livro sentada no sofá de frente para a estante da tv com vários dvds e livros.

      — Esqueça o que aconteceu ontem à noite — o pedido dela me atingiu como um soco. — Ninguém precisa saber.

      — Ok. Ninguém precisa saber.

      Como o caminho até a escola não era tão longo, optei por ir a pé, para tomar café da manhã numa padaria que eu tinha descoberto por acaso, e que vendia um alfajor mais gostoso do que os de Buenos Aires.

      Stefany demorou a atender o telefone. Nada mais ela, sempre tão devagar. Normalmente eu contaria à Duda ou à Nicole que eu não estava mais solteira, e todas as palavras que Vítor Hugo e eu dissemos um para o outro. Como minha melhor amiga estava agindo de forma estranha comigo, escolhi minha prima preferida.

      — É sério que você tá comprometida? Logo você, Danny, tão independente? 

      — Pra tu ver como as pessoas mudam.

      — E como é esse cara?

      — Simplesmente o homem mais legal, carinhoso e companheiro que conheci — imaginei meus olhos brilhando ao falar sobre meu namorado. — Tô muito feliz, Steffany.

      — O tio Daniel sabe?

      — Eu acho até que ele sabia que isso iria acontecer.

      Dei todos os detalhes do que aconteceu nos últimos dias aproveitando o pouco de tempo que tinha e andei até a sala de aula, ficando parada na porta à espera dele. Quando apareceu, sorri pra ele e trocamos um selinho, entrando na classe de mãos dadas com ele.

      Pouco falamos, devido ao fato de estarmos num ambiente de estudo, mas mandávamos mensagens um para o outro. A vaca da Antonella também ficou me secando a aula inteira, o que me deixou puta. Porém mantive minha compostura. Fiz minha aula, ensaiei e sai com minhas três colegas de coreografia.

      Olhei por sobre meu ombro e não me importei em ver Vítor Hugo segurando a Duda pela cintura por trás. Só senti um pouquinho de ciúme. Eu sabia que ele tinha um sentimento verdadeiro por mim e só isso bastava, um sentimento que mudou muita coisa em mim. Que me tornou uma pessoa melhor, menos medrosa, mais confiante.

      Ele era tudo.

      Mas alguma coisa ainda precisava se encaixar pra que tudo ficasse bem, algumas arestas precisavam ser aparadas para que nosso namoro ficasse perfeito.

      E por mais que eu odiasse admitir, o problema era eu. Sempre fui eu.

      Enchi minha garrafinha de alumínio com água, subitamente senti um tapinha no bumbum.

      — Não acredito que vocês dois finalmente estão namorando — Nicole me deu um abraço.

      — Estamos — sorri.

      — Tô feliz por você, amiga. Finalmente, né? A gente agradece.

      — Eu demorei pra ver que ele é o cara certo pra mim.

      Nicole tocou meu rosto, sempre me olhando com afeto, parecendo me dizer se joga. Era isso mesmo que eu queria. Me jogar.

      Estávamos voltando para a sala.

      Fiquei perplexa ao dar de cara com o Vítor carregando a Duda nos braços, pedindo-nos com rispidez e urgência que os deixassem passar, e como minha amiga chorava em voz alta, entendi que tinha acontecido algo grave com ela.

      — Voltem para a sala! — nos ordenou Carlos Amaral, enquanto seguia meu namorado com a partner nos braços. — Vamos continuar os ensaios daqui a pouco. Vão!

      — O que aconteceu com a Duda? — me atreví a perguntar.

      — Ela caiu — o coreógrafo retrucou com nervosismo e aflição. — Se desconcentrou durante a elevação em cadeira e despencou. Parece que quebrou o pé, mas só vamos saber com o raio x.

      Meus olhos se abriram em choque e levei a mão ao peito.

      Droga!

      Aquilo não podia ter acontecido. Uma fratura no pé é muito grave, muitas vezes põe fim à carreira de uma bailarina.

       — Não — eu meneei a cabeça negando. — Não pode ser. Carlos, ela não pode ter quebrado o pé. Deve ter sido só uma pancada, sei lá.

      — Tomara, Danny. Tomara.

      — Eu posso ir com vocês? — pedi.

      — Não. Voltem aos ensaios, como eu mandei. Tanta gente lá só vai atrapalhar, não tem nada que você possa fazer para ajudá-la.

      — Mas…

      — Vai, Danny.

      Me virando as costas, Carlos correu para alcançar meu namorado.

      Lágrimas rolaram dos meus olhos e uma parte de mim tombou. Me senti pequena, como se eu tivesse caído com a Duda.

      Eu podia sentir a dor dela.

      Não somente dor, mas medo. Quando uma bailarina se machuca de um jeito tão grave, ela não tem certeza do que vai ser dela depois. Não sabe quando vai voltar a dançar, nem se será o que era. 

      Tudo é incerto.

      Nicole tocou meu ombro, me deu um abraço e choramos juntas.

                        …

          Duda

      Eu olhava com aflição para o rosto imparcial e frio do médico que me examinou, enquanto ele segurava o raio-x. Minhas lágrimas voltaram a cair, e um sentimento terrível se apossou de mim. Era como se toda minha vida tivesse sido jogada fora.

      Carlos Amaral ficou sentado na cadeira desde que chegamos, sem esboçar sentimentos, sem se exasperar ou mostrar cuidado, embora eu soubesse pelo constante piscar de olhos que ele estava preocupado. 

      Meu pé direito não se mexia, e além de doer muito, estava inchado, preto. Eu tentava evitar olhar para baixo, mas era impossível. Toda vez que o latejo ficava mais forte, como se meu coração estivesse ali, instintivamente eu olhava para aquele pé que tantas vezes sustentou meu corpo, tantas vezes me fez girar e saltar, e que agora estava destruído.

      Merda!

      Não podia ter acontecido, não comigo.

      Vítor Hugo e eu estávamos tão bem, entrosados, conectados, que não havia nenhuma dúvida que seríamos ovacionados no espetáculo. Mas eu me desequilibrei e cai, e de repente, meu sonho virou pesadelo. Além de ter quebrado meu pé (estava na cara que não havia sido só uma torção), eu comecei a achar que nunca mais pudesse dançar com uma sapatilha de ponta.

      Eu não conseguia me imaginar não dançando. Minha vida não teria graça nenhuma.

      — É muito grave? — perguntei, por fim.

      Enxuguei minhas lágrimas com o dorso da mão enquanto o doutor olhava o raio-x contra a luz. 

      — Você sofreu uma fratura incompleta no osso cubóide — ele respondeu. — É o que chamamos comumente de trinca. 

      — Mas eu vou poder continuar dançando?

      — Claro que vai. A cicatrização do osso, nesse caso, é rápida, desde que você use uma bota imobilizadora.

      As palavras do médico me tranquilizaram. Tive vontade de abraçá-lo.

      — Eu vou precisar de fisioterapia?

      — Bom, como você é bailarina, os exercícios de balé serão suficientes para o tratamento. Esticar o pé, flexionar. O uso de uma faixa elástica será muito importante. 

      Meu sorriso voltou ao rosto, mas logo sumiu quando o médico me recomendou a ficar pelo menos três semanas sem fazer balé e quarenta dias sem usar sapatilhas de ponta. 

      Carlos Amaral e eu trocamos um olhar desolado, sem nada dizer um ao outro.

      Eu continuaria sendo a estrela da Promoarte.

      Mas estava cortada do espetáculo.

          Danielle

      Todas nós voltamos nossos olhares para Carlos Amaral quando ele entrou pela porta. As meninas e eu tínhamos terminado nossos ensaios há meia hora e só estávamos nos aquecendo enquanto as outras bailarinas ensaiavam suas partes no balé.

      — A Duda sofreu uma fratura incompleta no pé direito — ele foi direto — e está fora do espetáculo.

      — Ela vai ficar bem, né? — perguntei.

      — Vai sim, Danny. Não vai poder calçar sapatilha de ponta por pelo menos quarenta dias, mas vai poder dançar normalmente assim que a fratura calcinar.

      Segurei a mão da Nicole e pude, enfim, sorrir aliviada.

      Os rostos dos bailarinos agora tinham uma expressão de alívio, estávamos felizes pela Duda não ter de se afastar do balé para sempre, embora eu soubesse que ela estava muito frustrada. Aquele espetáculo era muito importante pra ela. Ela se doou totalmente para aquele papel.

      Agora ela estava cortada.

      Mas eu sei que ela era forte, determinada. A arrogância da Duda a fazia diferenciada de todas nós, com certeza ela iria superar.

      Vítor Hugo e eu achamos um tempinho pra conversar depois dos ensaios coletivos. Ele estava triste pelo que aconteceu com minha amiga, mas sabia que não fora o culpado. Um bailarino pode ser forte e erguer uma bailarina o mais alto possível, mas ela precisa fazer sua parte também e se manter firme.

      — O Carlos disse que vai pedir a Maria Luiza Pomini pra ser substituta da Duda — ele disse enquanto afagava meu rosto.

      — Puxa, vai ser incrível se ela aceitar — sorri. — Ela é uma bailarina profissional e muito linda.

      Meu namorado assentiu.

      Segurando meu queixo com uma de suas mãos, me deu um selinho.

      Esse gesto de carinho me encorajou a por meus braços em volta do seu pescoço e respondi com um beijo mais longo.

      Desfizemos o contato ao ouvir passos vindo em nossa direção. Carlos Amaral coçava a nuca, sua respiração se tensionou e um vinco surgiu em sua testa ao nos ver de mãos dadas.

      —  A Malu Pomini não aceitou ser a Odette — ele comunicou.

      Semiabri a boca, desanimada.

      E agora?

      — Quem vai substituir a Duda, então? — alternei meu olhar entre Vítor Hugo e Carlos.

      O coreógrafo delineou um meio sorriso.

      — Você.

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