Capítulo 6

          Danielle

      Fiquei tão entretida com as pequenas, que nem me dei conta que as apresentações haviam começado. A professora Vanessa me agradeceu, dizendo que eu era uma moça muito prestativa e educada, e que as meninas gostaram de mim.

      — Eu podia ficar o dia inteiro com elas — me derreti. — São muito fofas.

      — São mesmo. Tenho muito orgulho delas. Elas são umas pestinhas às vezes, mas você as cativou. E não só me ajudou a maquiá-las e a fazer os coques, como também as aqueceu e as  tranquilizou. Não tenho palavras para te agradecer, Danny.

      — Não precisa agradecer. Gosto de ajudar, e além disso, adoro crianças.

      Vanessa me pediu para conhecer seu estúdio, caso eu tivesse oportunidade de viajar para São José dos Campos, frisando que as gurias, principalmente Gabriela e Camila,  iriam adorar.

      — Eu prometo.

      Assim que a professora e sua pequena companhia se afastaram com muitos tchaus e beijos, me levantei e sacudi a poeira da minha calça de moletom. Minha variação de Paquita seria a última da noite, e nem sempre isso é legal para uma bailarina. A gente pode se dispersar, e os músculos esfriam, nos expondo à riscos de lesões.

      Tive um ano muito difícil. Uma lesão chata no músculo do meu glúteo direito, faltando um mês para a disputa do título de Primeira Bailarina Fantini Júnior, quase impediu que eu participasse da competição. Felizmente, me recuperei à tempo e obtive o tão sonhado título, ganhando o status de estrela da marca de artigos de balé.

      Foi meu presente de aniversário antecipado. Por eu dançar representando a marca, não preciso gastar com collants, meias calça, e além disso, passei a ganhar um par de sapatilhas de ponta por mês, o que aliviou um pouco o bolso do meu pai.

      Como conquistei o título de primeira bailarina Fantini, abdiquei de participar da competição da Promoarte. A Letícia queria evitar uma rivalidade entre três de suas bailarinas e só a Duda disputou o título mais importante do balé paulista contra a Nicole, que defendia o título. Duda venceu com uma nota quase perfeita, e minha amiga de olhos bicolores ficou super chateada.

      Quando a gente disputava títulos, só usávamos collants, meia calça e sapatilhas. Nem calcinhas podíamos usar. Um ano antes de concorrer com a Duda, a Nicole ficou nervosa e fez xixi no collant, tendo uma crise convulsiva de choro.

      — Eu não vou conseguir, Danny...! — ela gritou levando as mãos à cabeça, a poça de xixi no chão.

      — Vai sim, garota — dei vários tapas no rosto da turquinha, a fim de fazê-la se acalmar. — Você treinou muito. Claro que vai.

      Nesse dia descobri que podia ter uma carreira de psicóloga a posteriori, quando parasse de dançar. Dei um abraço forte na minha amiga, falei coisas que a gente sempre diz quando uma pessoa de quem a gente gosta está aflita, e aos poucos ela se acalmou.

      Sem tempo de trocar de collant e faltando apenas uma candidata antes dela se apresentar, a bailarina de olhos bicolores foi ao palco e arrasou, se sagrando vencedora naquele ano.

      Já no ano seguinte, a Duda decidiu mostrar porque era uma aposta pessoal da Tânia Dressler. A diretora artística queria uma bailarina negra como estrela da Promoarte. Duda não deu chances à Nicole ou à qualquer outra participante.

      Ela se aproximou da Nicole, que estava emburrada num canto.

      — Se você tivesse feito xixi, talvez tivesse vencido de novo.

      Nicole ficou tão chateada com a petulância da Duda que as duas ficaram um tempão sem se falar. Felizmente, a Duda reconheceu que havia sido infeliz com suas palavras e bastou um pedido de desculpas dela para que as duas ficassem amigas de novo.

      Passei por trás da cortina, do lado oposto ao que os alunos estavam, para poder ver as primeiras apresentações. Sem ninguém por perto. Não queria conversar. Mesmo com a escuridão do backstage, distingui as silhuetas de Vítor Hugo, Léo, Miyuki e outros dos quais ainda não havia decorado os nomes.

      Cruzei os braços e vi uma moça ter seu nome anunciado. Ela dançou Paquita, a mesma coreografia que eu dançaria depois. Não gosto de ver defeito nas pessoas, acho chato, mas a garota foi burocrática. Num dos atittudes, o pé não esticou totalmente, e os jurados não deixam escapar despercebido esse tipo de erro.

      E que jurados! Dois deles eram ex- bailarinos do Theatro Municipal de São Paulo, uma era a professora e maitreu da Companhia Paulistana de Dança, onde meu pai era Primeiro Bailarino, e duas eram membros do corpo docente do Teatro Marina Peixoto.

      Dançar diante de conhecedores da dança clássica sempre me dava nervosismo, mas eu queria brilhar. Eu queria começar o ano de forma diferente, com uma apresentação linda, mesmo que não desse para conquistar o primeiro lugar. Mesmo que não desse para conquistar nem segundo, nem terceiro. Pra mim, só importava ser feliz por uma noite.

      A Duda pisou no palco e quase todos os competidores que estavam sentados na coxia acorreram para os cantos do palco para ver a Primeira Bailarina Estadual Júnior dançar.

      Senti felicidade e orgulho por minha amiga encantar. Todos ficaram assombrados com sua apresentação primorosa, que beirou a perfeição, não deixando nada a desejar a de uma bailarina profissional. Sorri e vibrei, como se estivesse na Neo Química Arena vendo meu Corinthians golear o Santos. Acho que todos também compactuavam desse meu sentimento, desse meu orgulho.

      Duda foi a primeira que quis ser minha amiga quando eu, recém recuperada do câncer, careca e sem graça, cheguei ao estúdio da Letícia. As outras meninas tinham medo de se aproximar de mim, talvez porque pensavam que eu ainda  estava doente. Foi ela quem trouxe a Nicole, a Carol, a Jordana e as outras meninas para perto de mim, e eu pude enfim aprender o que é amizade e como é importante ser parte de um grupo.

      Minha amiga merecia estar vivendo aquele momento. E era uma inspiração para tantas meninas pobres acreditarem que era o talento e o trabalho, e não a cor e a classe social, que faziam um sonho se tornar realidade.

      Duda agradeceu ao público e saiu toda sorridente do palco.

      Então, Vítor Hugo se projetou para o palco onde minha amiga acabara de brilhar. Além de muito gato, ele era imponente. Um príncipe, vistoso em sua casaca branca, com detalhes dourados, e calça  justa, também branca.

      Ele não disputaria nenhuma medalha, já que era bailarino da produtora que estava organizando o festival de dança. Mas isso não queria dizer que ele não daria tudo de si.

      O acorde inicial tocou, ele avançou para dançar Paquita.

      Meu Deus, o cara era incrível. Pirouettes ousadas, saltos altíssimos. Quando ele saltava, parecia que nunca aterrissaria, tão leve parecia.

      Vítor Hugo insinuou sua imponência sem fingir humildade alguma. Era um verdadeiro artista. Um príncipe. Quando terminou seu show, voltou para trás da cortina sob os aplausos da platéia.

      Sai dali como entrei, silenciosa, sem chamar a atenção. Eu sabia de cor as próximas variações, e não estava muito a fim de ver, a não ser os conjuntos infantis. Em especial, das minhas novas amiguinhas, alunas da professora Vanessa. 

      Me sentei no chão do camarim, sozinha, tirei meu pequeno ícone ortodoxo de Nossa Senhora e me persignei com o sinal da cruz.

      Olhei no espelho meu rosto branco, quase translúcido, povoado de pintinhas. Diziam que meus olhos irradiavam doçura e uma pequena sombra de tristeza, o que não era verdade. Do meu jeito, eu me considerava feliz, mesmo tendo marcas que só meu diário sabia. Tinha muita coisa que eu preferia guardar só pra mim.

       Tirei minha camiseta, deixando meus seios nus com esparadrapos nos mamilos à mostra, baixei minha calça de moletom. Desde o começo da tarde estava usando o suporte, aquele fio dental tão invasivo que a gente usa e sem o qual não dá pra dançar. Vesti minha meia e meu figurino branco de Paquita, que eu amava, por ser presente da vó Vitória. Tinha detalhes dourados no busto e na saia bandeja, curtíssima.

      Faltava alguém pra me ajudar a amarrar os ilhós nas minhas costas.

      — Danny! 

      Olhei primeiro no espelho e depois para trás.

      Nicole.

      — Por que você está aqui sozinha? Vem assistir às apresentações com a gente.

      — Estou me vestindo. E eu quero ficar um pouco sozinha.

      — Você vai me ver dançar, né? Vou ficar chateada se você não ver.

      — Claro que eu vou,“ turquinha”. 

      — Nós non é turca. Nós é libanês.

      Nicole imitou o velho avô, seu Salim Rachid. Ele era um libanês que fez a vida como mascate no interior de São Paulo, e era um homem muito agradável de se conversar, a não ser quando o chamavam de turco.

      O que Nicole tinha de moralista, também tinha de brincalhona e era outra grande amiga minha. Gostava de imitar meu avô romeno, Nicolae Răducanu. Mas da minha avó, Raluca, tinha medo.

      Demos uma risada gostosa e aquietamos.

       — Nicole, que bom que você tá aqui. Amarra esses ilhós pra mim?

      Fiquei de costas para ela.

      Minha amiga de olhos coloridos entrelaçou as cordinhas calmamente e para fazer uma graça, deu um apertão, me fazendo gemer.

      — Desculpa, amiga — ela riu.

      — Desse jeito você me mata por falta de ar.

      Nicole riu e fechou a porta atrás de si, com estrondo. 

      Me permiti um momento de culto à minha vaidade. Bem breve. Passei batom, a maquiagem, o rímel, pus um laço branco no meu coque.

      Os dedos dos meus pés estavam em péssimo estado, com duas unhas encravadas, uma preta, e a unha de um dos hálux quase se desprendendo. É inevitável que pés de bailarinas  sofram por causa das sapatilhas de ponta. Estas nos fazem tocar o céu, mas também fazem nossos pés não terem uma boa aparência para calçar sandálias.

      Um dos meus calos estava em carne viva e o outro era uma bolha de água. Imagina a minha tentação de furá-la com um alfinete.

      — Melhor não — pensei.

      Abri minha caixinha de "primeiros socorros" para bailarinas, tirei um rolinho de esparadrapos e cortando vários pedacinhos com uma tesoura sem ponta, enrolei meus dedos em estado mais crítico.

      Por último, cobri as pontas dos meus pés com as ponteiras de silicone e calcei minhas sapatilhas de ponta, amarrando as fitas de cetim com toda a calma. 

      Ao fazer um pequeno aquecimento de pontas (um echapé de quinta posição), as dores das pontas dos dedos chegaram até meu cérebro, mas eu já estava acostumada. Eram minhas dores de estimação, minhas amigas, que eu nem me lembrava que existiam quando dançava.

      Tirei uma selfie em frente ao espelho com o sorriso mais artístico possível e prontamente postei no meu story no Instagram, com o título Coração a mil para pisar no palco.

      — Vai ser perfeito — prometi a mim mesma.

      Guardei minhas coisas, beijei meu ícone fazendo o sinal da cruz e deixei o camarim.

      Um garotinho louro brincava com um carrinho de brinquedo, imitando o ronco de um motor. Ele era muito gracinha, e ao me ver de baixo, ao ver uma mulher gigante, fez uma carinha assustada.

      — Oi, lindinho. Tudo bem?

      Ele sorriu pra mim e me mostrou o carrinho.

      — Pedro Henrique!

      O garotinho e eu olhamos ao mesmo tempo para uma moça que vinha. Ela tinha quase a minha altura, era loura, de olhos escuros, e usava  um tutu de Harlequinade. 

      Fiquei comovida ao ver o menino correr em direção à ela e abraçá-la pelas pernas.

      — Ah, filho. O que a mamãe disse sobre você não ficar brincando perto do camarim?

      — Olha, mamãe. Moça alta.

      Imaginei que a moça alta fosse eu.

      — É, filho? Ela é alta, né? Ela vai dançar Paquita. Olha a cor do olho dela, que lindo.

      — Azul!

      Não pude segurar um sorriso.

      — Putz. Você já é mãe.

      — Eu me casei aos dezoito anos. Era um antigo sonho meu, sabe, construir uma família. 

      — Muito legal. É que as pessoas do nosso meio se casam mais tarde, né, por causa da carreira, então tô um pouco surpresa. Ele é um menino lindo.

      — Obrigada. Como você se chama?

      — Danielle. 

      — Prazer, Danielle. Eu me chamo Maria Luíza. Sou solista do Ballet São Paulo.

      — É uma ótima companhia profissional. Você vai fazer uma apresentação especial, então? Como convidada?

      — Sim.

      — Quero assistir. 

      — Vai demorar um pouco. Vou dançar quase no fim, minha apresentação será a penúltima. Mas assiste mesmo, tá? 

      — Vou assistir, sim. Mas… como é ser bailarina, esposa e mãe? Sempre aprendi que o balé exige tudo da gente, uma dedicação que não dá espaço para mais nada. Viagens, família… A gente acaba passando uma imagem de ser muito sozinha, e de repente vejo você, com um filho lindo e uma aliança no dedo.

      Maria Luíza sorriu. Ela carregou o pequeno Pedro Henrique nos braços, beijou-o na bochecha.

      — Com planejamento, dá pra conciliar tudo isso. Eu tinha dezoito anos, queria me casar. Então me casei, passei a ter uma dupla jornada como bailarina e como esposa, e depois de um ano de casada, o Pedro Henrique nasceu. Fiquei vários meses sem dançar, por causa da barriga e do tempo de amamentação, afinal eu queria curtir meu momento com meu filho e com o pai dele. Mas depois eu voltei. Fora de forma, sem massa muscular. E daí? Fiz Pilates, condicionamento físico e tô aqui.

      À medida que Maria Luíza falava, eu compreendia melhor o que minha mãe havia vivido. Ela dizia quase a mesma coisa, mas eu não acreditava em tudo, porque parecia que ela queria tirar um peso da minha consciência, por eu ter tirado dela alguns meses no Bolshoi quando ficou grávida de mim aos quinze anos.

       Mas agora era uma opinião imparcial que eu ouvia.

      — Danny.

      Ouvi a voz da Françoise dentro de mim. Era num dia 7 de janeiro, dia em que os ortodoxos da Igreja Russa celebram o Natal. Eu estava indo para a mesa de cirurgia, para receber o transplante de medula que salvaria minha vida.

      Eu estava bastante confiante de que ganharia uma nova chance. Mas também um pouco triste por minha mãe ter deixado os Estados Unidos, o balé e a companhia pra ficar com a filha doente.

      — Danny, você é a pessoa mais importante que eu tenho. Tudo o que eu vivi de bom foi com você, minha filha, foi você quem deu sentido à minha vida, você é tudo de mais importante pra mim. Tente entender. Você nunca tirou nada de mim. Você  me acrescentou. E você vai vencer esse câncer. Estamos juntas até o fim.

      Meus olhos começaram a se encher de lágrimas. Agora eu compreendia o que era um amor de mãe e o quanto eu havia sido injusta culpando minha mãe, ainda que inconscientemente, por carregar o estigma de Cisne Branco, da filha da super bailarina.

      Quase não percebi Maria Luíza e o filho se afastarem, acenando pra mim. É uma das imagens mais bonitas que existe, uma mãe e um filho. O tipo de imagem que marca para sempre.

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