Capítulo 59

          Vítor Hugo

      Sempre que eu não me sentia à vontade pra puxar um assunto sério com alguém, recorria a qualquer artifício, como olhar para o céu, o horizonte, qualquer coisa. Minha garganta tinha um tipo de embargo, um aperto, e as palavras martelavam na minha cabeça, pedindo pra serem postas pra fora. 

      Danielle tinha a mesma serenidade de sempre, mas eu podia sentir um pouco de impaciência em seus olhos. Ela me pedia através deles que eu fôsse direto ao assunto. Eu precisava abrir a boca, pedir uma resposta definitiva dela, e assim, decidir o que eu faria dali pra frente.

      Nas quase duas semanas que passamos juntos, tive a chance de conhecer a Danielle por trás da filha do Cisne Branco, a Danielle que como eu perseguia um ideal de vida, que sempre renascia das cinzas como uma fênix chamejante e nunca desistia. Aprendi muitas lições de vida. Também aprendi a me conhecer. Enxerguei melhor minhas fraquezas, evolui, tomei decisões importantes.

      Eu devia muita coisa a ela. Aquela moça de olhos azuis e sorriso triste, de coração generoso e bom, que amava dançar e não tinha medo de encarar desafios, era como uma droga pra mim, um vício, e não importava o que Duda tinha contado a respeito dela: pra mim não mudava nada.

      Ela não queria um compromisso sério com ninguém, somente casualidades. E eu não queria mais isso. Saber que ela e a Duda já fizeram sexo, e também com a Nicole, saber que ela encarava a vida como diversão, me obrigou a exigir de mim mesmo uma decisão.

      Várias vezes ela falou com todas as letras que não queria, que tinha muito o que dançar, muito o que viver, e no fundo eu entendia que eu também devia querer isso, mas era tão difícil aceitar uma negativa. Por que as coisas tinham que ser complicadas entre nós?

      O rosto dela me transmitia uma paz e uma quietude que me desconcertavam. Por um momento pensei em não dizer nada. Deixar o assunto morrer e só falar aleatoriedades, como sempre fazíamos para entrar num campo delicado.

      Sentado ao lado dela num banco de concreto de uma pracinha perto do hostel, soltei um suspiro, a olhei, sendo retribuído com um meio sorriso.

      — O que foi? — ela perguntou.

      — O curso de verão está terminando e vamos nos despedir — respondi.

      — Duas semanas passaram voando, não é? Parece que foi ontem que chegamos.

      — Ainda bem que temos mais uma semana — lembrei.

      Danny concordou com um aceno.

      — Daqui a alguns dias vou dançar na Suíça, e depois vou estudar na Inglaterra — continuei. — E a Europa vai ser minha casa pelos próximos anos.

      — Eu tô feliz por você — ela sorriu segurando minha mão. — Vou sentir sua falta. Vou torcer pra que você realize seu sonho.

      Assenti com um meio sorriso.

      — Queria realizar esse sonho ao lado da pessoa que eu amo — esperei ela responder, e como ela se calou, continuei. — Queria que você estivesse comigo lá e que fôssemos um casal.

      — Já falamos sobre isso…

      — Sim, falamos. Você falou que é muito nova pra namorar, que só quer sexo casual. Eu entendi bem.

      — E que não acredito em namoro virtual. Que duas pessoas precisam se tocar, se abraçar, fazer amor pra que uma relação vá pra frente.

      — Sim. Me lembro. Mas é isso mesmo que você quer? Que a gente não tenha uma chance?

      — Como assim?

      — Do que você tem medo, Danny?

      — Medo? 

      — O que eu preciso fazer pra você me deixar viver aqui? — ao dizer isso, toquei o seio esquerdo dela com o indicador.

      A bailarina virou o rosto para a direção contrária, ligeiramente pra baixo. Toquei com minha mão o queixo dela, o puxando pra mim e vi um olhar confuso, aflito.

      — Por quê, Danny? — insisti. — Por que não podemos namorar?

      — Eu já disse... 

      — Por causa da distância? Eu não vou, então.

      — O que está dizendo?

      — Eu não vou para Londres. Eu fico. Londres foi mesmo ideia da Agatha, ela que achou que o Royal Theatre se encaixava ao meu perfil e tal, mas eu não vou conseguir tomar chá ao invés de café. Eu desisto de Londres pra ficar com você.

      Segurei as mãos de Danielle por entre as minhas e prestei atenção a cada movimento de seu corpo.

      — Não pode estar falando sério, Vítor Hugo — Danielle balançou a cabeça negativamente.

      — Pois estou. Tenho um primo que trabalha no Banco de La Nación Argentina, na Avenida Paulista, e posso morar com ele. Posso pedir uma bolsa de estudos num estúdio de balé, pedir para morar num quartinho, sei lá, e pagar trabalhando como assistente de professor. 

      — É a chance da sua vida, e você cogita desistir por minha causa? Por quê?

      — Porque eu te amo, garota! — bati com as mãos nas coxas e me levantei. Andei um pouco, me voltei para Danielle. Ela se levantou, andou em minha direção.

      — O que eu preciso fazer pra você entender que não tem mais nenhuma pessoa de quem eu queira estar perto, senão de você, Danny? — toquei o rosto dela.

      — Você não precisa fazer nada. Eu nunca te pedi nenhuma prova, o problema não é você, o problema sou eu. Sou eu!

      Meus olhos se abriram em estupefação.

      — Eu não sou boa pra você, Vítor Hugo… Eu sou vazia por dentro… — ao dizer isso, ela andou apressadamente a uma distância de cinco metros de onde eu estava.

       — Por que você está dizendo que é vazia? — gritei. — Por que diz isso de você, Danielle? Qual é o seu problema?

      A garota me olhou por sobre o ombro e parou imediatamente, como que atingida por uma flecha.

      Aproximei-me dela antes que ela ganhasse a rua e corresse em direção ao hostel. Eu senti uma forte tensão irradiar de dentro da garota, uma mistura de sentimentos. Dúvida, medo, angústia.

      Os olhos dela lacrimejaram, um choro mudo irrompeu de sua garganta, me dando vontade de apertá-la contra meu peito e ficar junto dela pra sempre. Enxuguei suas lágrimas com o dorso da minha mão, mas nada parecia tranquilizá-la.

      Me culpei por fazê-la se sentir assim. Eu era um sem noção mesmo. Um idiota por sempre querer forçar a barra.

      Não.

      Eu tinha que tentar pela última vez. Ouvir um último não, quem sabe, e desencanar.

      — Não é verdade — a abracei —, você não é vazia. Você é a pessoa mais bondosa que conheci, você toca o coração das pessoas quando sorri e quando dança, e é importante pra todos nós. Pra mim…

      — Mas você disse que me ama, e agora tô me sentindo angustiada, sem chão e sem rumo. Não é justo comigo. Eu não quero amar ninguém. Não posso!

      — Não pode ou não quer?

      — Por favor, esquece isso, Vítor Hugo.

      — Por que, Danielle? Por que você acha que amar é errado?

      Fiz essa pergunta segurando o rosto dela por entre minhas mãos, enxergando dentro dos seus olhos. 

      Eu compreendi a verdade. Mesmo que ela negasse, mesmo que ela dissesse que não, os olhos dela a traíam. Meu coração começou a ser tomado de uma estranha felicidade e ao mesmo tempo de angústia.

      — Por que você não quer namorar comigo? — insisti. — Por que você não quer dar uma chance pra nós dois?

      — Porque eu sempre tenho medo de perder todas as pessoas que eu amo. Porque eu tenho medo de dizer que te amo, e que me apaixonei por você desde que eu te vi pela primeira vez naquela aula que eu cheguei atrasada, e você me esquecer quando embarcar pra Londres.

      — Danielle… Você…

      — Eu te amo, Vítor Hugo. Eu te amo.

      Meu coração começou a dar pulos dentro do meu peito. Minha respiração se acelerou, e era como se todas as borboletas do mundo voassem no meu estômago.

      Lágrimas molhavam o rosto de Danielle, emocionada. Finalmente ela abria seu coração pra mim. Depois de tanto tempo esperando essa frase de duas palavras que tem todo um significado, a bailarina se abria.

      — Diz de novo — sorri, entre impactado e feliz. — Diz, pra eu ter certeza que não ouvi errado.

      Danny pôs o dorso da mão no meu rosto, e nossas oposições se equilibraram numa troca visual atenta, contemplativa.

      — Eu te amo — a doçura de sua voz entrou nos meus tímpanos acalentando minha alma e me dando um ânimo novo. — Mas eu não mereço o seu amor, você tem um sonho pra realizar e não pode desistir dele, não por minha causa. Eu não mereço que não mereço que você me ame.

      — Não fala assim. Eu te amo, garota. Você é mais importante que tudo pra mim, quero construir uma história com você.

      — Vítor Hugo, por favor...

      — Pare de ficar achando desculpas para não ficarmos juntos. Eu tomei a minha decisão. Eu quero ficar no Brasil por sua causa. Não adianta nada meu corpo atravessar o Atlântico e o meu coração ficar aqui. Não adianta nada eu estudar na melhor escola de dança da Inglaterra e não ter você comigo. Só quero ficar perto da única pessoa que me faz feliz, e essa pessoa é você, Danielle Raluca.

      — Vítor…

      — Escuta uma coisa. Eu não estou desistindo do meu sonho. Contanto que eu fique perto de você, não me importo de dançar aqui. Tem ótimas companhias no Brasil. E eu não tenciono morar noutro país. Só quero um palco pra dançar, e esse palco pode ser brasileiro, com você junto comigo dançando pas de deux. Não quero que ninguém faça escolhas por mim. Eu as faço. E eu escolho você. Só tenho uma chance de ser feliz, e não vou perdê-la. 

      Já não consigo segurar minhas lágrimas. Todo meu conjunto entrou em colapso, não tenho mais palavras para dizer. 

      Danielle pôs as mãos nos cabelos, solta um suspiro profundo e sustenta meu olhar no dela.

      — Você é tudo pra mim, Danny — meu indicador tocou de novo a maçã do rosto dela.

      — Eu não sei o que dizer.

      — Só diz sim ou não. E eu nunca mais vou te perguntar. Danielle Raluca, você quer namorar comigo e fazer de mim o homem mais feliz que Deus criou?

      A boca dela semicerrou expondo uma parte de seus dentes brancos como neve, com aparelho de pedrinhas azuis. A demora em responder me afligia, quase me desmontando.

      — Eu quero — ela respondeu.

      De repente, um sorriso inevitável se compôs em meus lábios trêmulos.

      — Por favor, repete.

      — Eu, Danielle Raluca, aceito, Vítor Hugo Costa, ser sua namorada. Quero construir uma história com você, quero te amar, quero ficar do teu lado sempre e ser uma palhaça quando você estiver triste.

      Sentindo uma felicidade que nunca tive antes, abracei a Danny pela cintura, puxei seu corpo contra o meu e a beijei, sendo retribuído na mesma medida. Ela segurou meu rosto, cruzando seus braços atrás do meu pescoço, e a força que fez contra meu corpo foi tão grande que acabamos caindo.

      Rimos ao mesmo tempo por sermos desastrados, continuando a trocar beijos, até nos sentarmos de frente um para o outro, trocando olhares afetuosos.

      Não precisávamos de mais nada. Tínhamos um ao outro e isso bastava.

      Nossos corações batiam na mesma sintonia como um casal de bailarinos dança um pas de deux, e me senti transformado, capaz de mudar.

      Podia ficar o resto da noite olhando para o rosto da Danny. Podia ficar pra sempre perdido naquele olhar tão doce, sem que trocássemos uma única palavra. 

      Pus uma mecha do cabelo dourado dela atrás da orelha, rindo feito um bobo, tentando achar não sabia de onde uma frase que não soasse batida.

      Mas que palavras nunca foram ditas?

      — Eu te amo, Danielle Raluca Răducanu.

      Os lábios dela se juntaram aos meus num selinho, e desfizemos só por alguns segundos o contato físico.

      — Eu também te amo, Vítor Hugo Costa.

      Em meio à lágrimas e sorrisos, tocamos o rosto um do outro. A puxei num abraço apertado, mandando à merda todos os meus medos, segurando a seguir o rosto dela por entre minhas mãos.

      Não dissemos nada. Só mantivemos contato visual, juntando nossos lábios mais uma vez, porém por um tempo prolongado.

      Nada mais importava agora.


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