Capítulo 49

          Vítor Hugo

      Soltei um suspiro, abaixando a cabeça entre os joelhos e levantando-a em seguida ao sentir a mão do meu pai bater duas vezes na minha coxa. Me virei, vendo dois olhos meio avermelhados por causa do choro de minutos atrás e um meio sorriso.

      Ter contado toda a verdade me livrou de um grande peso. Eu agora não tinha mais nenhum segredo inconfesso, todo mundo sabia do meu caso com o Beto, e agora podia olhar pra frente.

      Não. Não foi um caso, não como um namoro ou algo casual. Foi uma relação abusiva.

      Mesmo assim, era tão difícil… Ainda doía, principalmente por saber que eu podia ter feito diferente ao invés de me machucar por causa de um sonho. Não confiei nos meus pais, não confiei no meu trabalho e no meu talento. Preferi escolher um caminho fácil e só Deus sabia o quanto minha consciência sentia dor.

      — Levante a cabeça, meu filho — meu pai pôs a mão no meu ombro —. Não se sinta envergonhado. Já passou.

      Já passou?, me perguntei entre confuso e aliviado.

      Confuso porque há uma hora eu estava com medo de ser expulso de casa por meus pais, acreditando que o que eu fiz era imperdoável. E todo o castigo que recebi foi um abraço deles e palavras acolhedoras, que me revigoraram, mas ao mesmo tempo me colocando numa posição de vigilância quanto ao que eu faria dali pra frente. Eu não tinha mais o direito de errar.

      — Obrigado, pai — respondi.

      Minha mãe falou muito pouco porque era péssima para se manifestar enquanto tomada de emoção, e se limitou a me dizer não chora, que vai te fazer bem, somos seus pais e você sempre pode contar conosco.

      — Você teve coragem de denunciar aquele pederasta, coisa que muitos meninos não fazem. Mostrou que tem vergonha na cara. Por isso, estou orgulhoso de você.

      Passei o dorso da mão nos olhos sem deixar de fitar os olhos do meu pai. Devia estar sendo muito difícil pra ele também.

      — Eu fiz minha obrigação, né… Não podia deixar o Beto impune.

      Ele assentiu apertando os lábios, dando outro tapa no meu ombro, me balançando e puxando meu corpo de novo para um abraço.

      — Vamos esquecer isso! — dona Carmem Lúcia Costa, vulgo minha mãe, se levantou abruptamente da cama. — Chega de falar nesse assunto. Já deu! Fale do curso de verão, filho. Está gostando?

      Era surpreendente que minha mãe quisesse pôr uma pedra naquele assunto tão rapidamente.

      — Ah… Estou, apesar de só ter feito uma aula... ontem! Os alunos são bons, tem até bailarinas do Ballet Imperial de Petrópolis.

      — Não acredito! — minha mãe pôs as mãos em ambas as faces, num exagerado gesto de surpresa. — É a maior escola de balé do Brasil. Para eles mandarem bailarinas de lá para estudarem aqui, então o curso é bom mesmo.

      — É sim, mãe. Os professores são bailarinos da Companhia Paulistana de Dança, coreógrafos da Promoarte. Só gente fera.

      — E... você não conheceu alguém especial? — meu pai apertou meu joelho, um meio sorriso em seu rosto.

      Eles não iam se abster mesmo de perguntar se eu tinha ficado com alguém. Era típico deles, apenas me surpreendi que não foi minha mãe quem perguntou.

      — Conheci, sim.

      Meus pais trocaram um olhar sugestivo.

      — É um garoto ou uma garota? — o tom de voz do meu pai saiu cauteloso.

      Soltei um suspiro.

      — Uma garota. 

      — Como ela se chama?

      — Danielle. É aquela garota com quem dancei o pas de deux de Lago dos Cisnes.

      — Aquela bailarina linda que parece princesa? — dona Carmem Lúcia junta as mãos diante dos lábios. — Eu adorei a técnica dela, parece que ela levita como uma fada.

      — Ela é linda mesmo, mãe. E também uma pessoa incrível, vocês iam adorar conhecê-la.

      Contei aos dois que Danielle e eu ficamos algumas vezes; tudo casual, sem compromisso. Eles ouviram com atenção, ficando admirados ao saberem que ela era filha da Françoise. 

      Só de falar no nome dela, só de lembrar do rosto lindo dela, meu coração se deixava preencher de alegria. Minha mãe notou o brilho nos meus olhos, tomou uma de minhas mãos por entre as suas e me aconselhou a não me iludir com nenhum compromisso.

      — Você vai para a Inglaterra — ela lembrou —, essa é a sua prioridade.

      — Eu sei — assenti, sério.

      Há pouco fui informado pela Agatha que esta era a nova diretora artística da Alliance Produções Artísticas. Melhor notícia, impossível. Todas as parcerias, patrocínios, foram mantidos. Eu iria mesmo para o Reino Unido em fevereiro.

      Mas eu também me despediria da Danny de uma forma definitiva e nossas vidas seguiriam rumos diferentes à partir dali. Ela continuaria lutando por seu sonho aqui. Com certeza dançaria em outro país em breve, arrumaria um cara legal para namorar. Se casaria. Teria filhos, seria feliz. E eu torceria muito por isso.

      Pelo menos eu podia guardar lembranças gostosas das nossas transas, dos beijos que trocamos, do nosso duo clássico de Lago dos Cisnes. Este pas de deux tinha um sentido especial, porque ela me mostrou seu lado inocente, puro, tocando meu coração, e eu guardaria pra sempre aquele momento em que ela se deixou cair nos meus braços e me olhou com paixão, enquanto éramos ovacionados.

      Foi perfeito.

      — Como estão as coisas lá em Jundiaí? — pulei para outro tópico, pondo um ponto final no assunto Danielle.

      — Choveu muito há alguns dias — minha mãe meneou a cabeça tristemente. — Algumas árvores caíram.

      — Eu vi algo assim na tv. Até o jacarandá mimoso em frente à nossa casa caiu, né? — aquela árvore era linda e eu me lembrava dela desde que me conhecia por gente.

      Eu sentia falta da nossa casa, de tomar o café Três Corações da minha mãe e estava louco para comer um prato de carne de onça (coisa de mãe nascida em Curitiba). Queria me jogar na minha cama e só acordar na véspera de ir para Lausanne.

      — Eu tenho uma coisa pra te falar, Vítor Hugo.

      Arqueii uma sobrancelha e me afligi com o tom sombrio empregado na voz de seu João Paulo. 

      — Fale, pai.

      — Então… sabe seu primo, o Júlio? Ele está muito doente.

      — O que ele tem? — o sobresalto se apossou de mim. Júlio, além de meu primo, era um dos amigos em quem eu mais confiava. Antes de eu sair de Jundiaí, fiquei sabendo que o nariz dele sangrou do nada e manchas apareceram em sua pele; como não apresentou nenhum mal estar depois disso, a família não deu atenção.

      — Ele tem leucemia — minha mãe atalhou.

      Abri os olhos e vinquei a testa em choque.

      Aquela notícia era muito ruim. Meu primo tinha o mesmo tipo de câncer que a Danny enfrentou.

      — Não pode ser. Vou ligar pra ele, pra saber como ele está. Meu Deus, ele deve estar arrasado. O tio e a tia.

      — Tem outra coisa — meu pai continuou — , o tratamento dele começou na quarta feira. No começo será a base de quimioterapia. Pode ser que o câncer seja curado só com isso, mas caso precise de um transplante de medula, nós lançamos uma campanha no bairro para conseguir doadores. Sua mãe e eu nos cadastramos.

      — Eu vou me cadastrar também — me levantei da cama num pulo. — Quero que meu primo fique legal, eu gosto muito dele, e se puder doar, vou fazer isso sim.

      As chances de se encontrar na família um doador cem por cento compatível são grandes, mas muitas vezes é necessário um doador de outro país. Caso o transplante fôsse necessário e eu fosse compatível, estaria a disposição da família.

      — Só vou esperar o curso passar. Quando eu voltar a Jundiaí, passo no hemocentro e faço a tipagem de sangue.

      Era um triste fato que eu não sabia nem meu tipo de sangue, e pra ajudar o Júlio, tinha que fazer um exame de sangue. E agulhas são um pé no saco.

      Se fôsse vontade da Providência, tudo ficaria bem.

      Meus pais e eu saímos para passear por Ribeirão Preto, aproveitando ao máximo a tarde que eles ficariam. Se hospedaram num hostel e voltariam para nossa cidade no dia seguinte.

      Comemos num restaurante e conversamos sobre vários assuntos aleatórios, inclusive sobre futebol. Rimos, contamos coisas engraçadas. Esporadicamente eu olhava as mensagens de whatsapp esperando encontrar uma da Danny. Ela não respondeu a nenhuma mensagem que enviei, o que me deixou bem intrigado, porque ela estava preocupada ontem à noite quanto à conversa com meu pai e minha mãe.

      Voltei ao alojamento quando anoiteceu, me sentando sobre o colchão inflável e procurando um vídeo legal no YouTube. Assisti a vários da Danny, gravados no estúdio da Letícia e em competições.

      Eu podia assistir aqueles vídeos um milhão de vezes, que nunca me cansaria de olhar para o rosto dela. Eu sorria feito bobo pensando nela e me sentia o cara mais feliz por tê-la conhecido. 

      Se a únicas coisas que eu guardaria dela seriam as lembranças, então estariam pra sempre dentro de mim e ninguém as tiraria.

      Micaela foi a primeira a entrar na sala, ao erguer a cabeça vi nela uma expressão de cansaço e aborrecimento, e seus olhos verdes escondiam algo.

      — Faz tempo que você voltou? — ela atirou a mochila no chão, jogando-se de costas em seu colchão inflável.

      — Há uns vinte minutos — encerrei o YouTube —. Conversei com meus pais e contei tudo o que aconteceu. Agora está tudo bem.

      Minha partner cobriu o rosto com as mãos e soltou um suspiro alto, pondo- se sentada.

      — Tô chocada até agora. Isso não me desce. Meu Deus, o Beto… Ele te abusando esse tempo todo e você aguentando quieto… Cara, por quê?

      — Eu não quero mais falar sobre isso, Mi — bati com ambas as mãos nas coxas.

      — Não, tudo bem — ela fez um gesto de quem se rende. — De qualquer forma, quero que saiba que sou sua amiga, apesar de você não me considerar mais.

      — Eu te considero. 

      — Sério? Não parece. Quase não temos nos falado. Você está muito diferente.

      Havia um ressentimento e uma carência afetiva no tom da morena de olhos verdes. Eu gostava muito dela e quase me levantei para lhe dar um abraço, mas as provocações que ela fazia à Danny, sua indiferença com o acidente sofrido pela Miyuki, não me davam escolha senão me afastar dela.

      Nos últimos dias notei uma estranha mudança na Micaela. Podia ser impressão minha, mas seu semblante estava abatido, e não tinha nada a ver com ciúme. Era algo profundo.

      — A gente muda quando se apaixona — respondi —. A gente passa a ver o mundo de outro jeito. Não é tão ruim, como eu achava que era.

      — Então, você está mesmo apaixonado pela Danny?

      — Desde o primeiro dia em que a vi. Ela é tudo pra mim.

      Micaela mordeu o lábio inferior, deu um sorriso irônico e triste ao mesmo tempo.

      — E ela? Também te ama?

      Semicerrei a boca, desviei o olhar para um canto para fugir aos olhos verdes e inquiridores da bailarina.

      — Não como eu queria. Nós temos uma conexão legal, mas não é amor recíproco.

      — Ela é perversa. De angelical, só tem o rosto.

      — Um dos motivos de eu ter me distanciado de você foi sua implicância com ela. Pare com isso. Eu amo a Danny, entenda isso.

      — Não quero mais falar sobre a bailarina de pernas compridas. A vida é sua, faz dela o que bem entender. 

      Num repentino gesto de aborrecimento, Micaela se aproximou da janela, olhou para a chuva que caia. Me aproximei dela, ficando ao seu lado. Olhei a furto seu olhar melancólico, perdido. Era minha amiga que estava ali, escondida atrás de uma blindagem de arrogância e empáfia. Algo a estava afetando.

      Toquei com meu indicador em seu rosto, dei um sorriso terno ao ser fitado por seus olhos verdes e grandes.

      — O que você tem, Mi? — perguntei.

      — O que eu tenho? Nada. Por que?

      — Você está estranha. Fica irritada do nada. Depois se fecha. Está se isolando do pessoal. Disseram pra mim que você chorou ontem no vestiário.

      — Quem disse isso?

      — Isso não importa.

      Ela andou em direção à porta aberta. Me olhou por sobre seu ombro, virou-se inteiramente pra mim e sorriu afrontosa mente cruzando os braços.

      — Ao invés de se preocupar comigo, se preocupe com a sua loura de olhos azuis.

      — Por quê? O que tem a Danny?

      — Ela fez uma aula toda cagada e perdeu a cabeça. Agrediu uma das alunas. 









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