Capítulo 20
Danielle
Duas horas atrás….
Era pra ter sido só uma marcação de palco. Um ensaio. Uma fatalidade fez com que se tornasse o fim do sonho de uma garota.
Quando vi ela cair daquela forma tão desastrada e os dois ossos da perna saltarem pra fora, foi como se essas pontas tivessem me rasgado. O desespero se instalou em mim. Levei as mãos à cabeça, e seguindo um instinto muito mais forte do que a vontade de não ver aquela imagem chocante, corri até ela.
Eu não podia ficar só olhando, tinha que fazer alguma coisa. Me abaixei junto a seu corpo cheio de espasmos, a garota gritava, quase perdendo o ar, com uma dor horrível nos ossos expostos.
A única coisa que pude fazer foi segurar a mão dela e olhá-la com compaixão.
Eu quis ficar sozinha, longe de todos. Precisava de algum jeito buscar motivação, não sabia de onde, para continuar.
Vitor Hugo tocou meu ombro, me virei para olhá-lo. Seu semblante era carinhoso e havia muita emoção em seus olhos, mas duvido que no estado de abalo emocional em que eu me encontrava, alguma coisa que ele dissesse pudesse me confortar.
Toquei seus lábios, andei como se ele não estivesse ali. Ainda bem que não me seguiu, me poupando o desgosto de pedir que me deixasse em paz.
Tirei meu ícone da Theotokos da mochila, me persignei com um sinal da cruz, fiz a oração que os ortodoxos fazem antes da execução de qualquer atividade.
Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de teu Pai não-originado, Tu que disseste com teus Preciosíssimos lábios: Sem mim vós nada podeis. Ó Senhor, meu Senhor, tendo abraçado com fé as Tuas Palavras, prostro-me perante a Tua bondade; ajuda a pecadora que sou a, através de Ti, concluir este trabalho que vou iniciar. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Fiz novamente o sinal da cruz e uma metanoia, beijei o ícone, e não sei como, me arrastei até o corredor. Mesmo desestabilizada, mesmo sem ânimo algum, eu era bailarina. E uma bailarina nunca foge de um palco.
Por um dos vidros laterais da coxia, vi que uma tempestade caia lá fora. Não era pouca chuva. A copa de uma árvore balançava, os galhos balançavam como que numa coreografia ao vento. Não demorou muito, e um galho se quebrou.
Fiquei praticamente pelada na coxia. Numa apresentação de dança, não existem provadores, vestiários, para todos os dançarinos. Temos que nos trocar aonde dá, do jeito que dá. Eu sempre tinha o cuidado de manter esparadrapos nos mamilos e estar de suporte, o fio dental incômodo e invasivo. Mas nunca usava calcinha pra fazer aula.
Vesti meu figurino, um macacão marron claro, com uma sainha de um marrom mais escuro. Essa tonalidade mais escura também estava presente na altura dos ombros. Minha sapatilha era de meia ponta, combinando com a malha.
Me sentei num banquinho diante do espelho, para que Letícia confeccionasse em mim uma trança embutida. Ela também me maquiou.
Minha professora me olhou com preocupação, sem me dizer nada. Andei para a lateral do palco, onde começava a cortina.
A continuidade da competição naquela noite deixou de fazer sentido pra mim. Eu admirava pessoas com nervos de aço. Pessoas que não se abalavam com nada, nem com um acidente tão grave acometendo uma pessoa tão próxima à nós. A Miyuki não podia ser chamada necessariamente de amiga. Estudou conosco, tomou café da manhã na mesma rotisserie que nós, contou histórias. Meu Deus, ela tinha sonhos, e saber que eles estavam perdidos doía demais.
A Duda agia de uma maneira diferente da de todas nós. Mesmo depois de uma decepção, ela sempre se reinventava, a motivação dela era inabalável, e não por acaso era primeira bailarina da produtora.
Ela pisou no palco de forma decidida, altiva, deu saltos e giros que beiravam o absurdo de tão perfeitos e dois mortais seguidos que somente ginastas olímpicas são capazes de executar. O público gritou “oh”, bateu palmas, e era só o começo.
A bailarina de pele negra e olhos desafiadores rolou no chão, pondo-se em pé numa pose atrevida, e fechou sua apresentação com um espacate frontal e um dedo nos lábios. Essa pose final fazia parte da coreografia, e de forma inequívoca, era um pedido de silêncio a todos aqueles que ousaram duvidar que ela era a melhor.
— Foi lindo, Duda. Parabéns — eu a abracei, logo que ela voltou, sob os aplausos e gritos de bravo da platéia.
— Obrigada, Danny — ela sorriu.
Quando chegou minha vez de dançar, minhas emoções afloraram todas juntas. Desta vez nem a respiração de ioga adiantou. Meu corpo parecia pesar.
— Aluna da Letícia Ballet, com “No topo da felicidade”, Danielle Răducanu!
A luz me cegou ao ser acesa. Porém dançar era algo instintivo pra mim, e depois que marcava o palco no último ensaio antes da apresentação, eu podia dançar de olhos fechados, já que sabia das proporções do espaço.
Executei muito bem a primeira parte da coreografia, menos exigente, com quatro pirouettes, um rolamento no chão e um espacate lateral. Um sorriso pendia dos meus lábios.
Um port de bras, outra série de pirouettes en dedan em sexta posição de pernas. Arqueei meu corpo para trás, dei um salto mortal, e ouvi gritos de “linda", “bravo” vindos das primeiras fileiras.
Faltava pouco para o fim da apresentação.
Fechei os olhos, fiz um chassé, tomei impulso para saltar e ainda longe do chão, vi imagens em desfoque na minha frente. E todo meu trabalho se foi. Ouvi lamentos do público. Um "oh" desanimado. Uma espécie de canção fúnebre.
Eu tinha caído de bunda no chão. Felizmente, não tinha me machucado, pelo menos por fora. Mas por dentro, tão logo o susto passou, senti o impacto da frustração.
— Levanta, Danny!
Letícia. Era a voz da minha professora ecoando dentro de mim, rompendo aquele silêncio opressivo que se instalou nos microsegundos entre meu desequilíbrio e minha queda.
Quando eu tinha dez anos, Letícia gritou, ordenando que eu me levantasse. Eu estava chorando por ter caído no último ensaio de um jazz antes de uma apresentação.
— Levanta! Não suporto ver você chorar como uma menina mimada que não sabe lidar com um tombo!
Abri e fechei os olhos rapidamente. Minha respiração ofegava. Eu via diante de mim aquela menina careca, que tinha acabado de perder a mãe, sentada com a cabeça escondida entre os joelhos. Chorando.
— Não estrague a sua apresentação. Continue, mesmo se cair. O espetáculo não PARA!
O que fazer? Me levantar e terminar a coreografia, já que a música continuava? Ou encostar a cabeça no chão, deixar que as lágrimas viessem?
Não! Não vou aceitar que ninguém sinta pena de mim. Eu sou bailarina e bailarinas sempre se levantam.
Improvisei um rolamento, me pus em pé novamente, e terminei minha apresentação. Dissimulei um sorriso artístico e agradeci aos aplausos entusiasmados do público.
— Bravo! Bravo! Linda! — a plateia me ovacionava.
A tristeza momentaneamente alojada dentro de mim se dissipou e deu lugar a uma felicidade sem tamanho. Não tem coisa que mais motive um bailarino a ir além do que o carinho do seu público. Nenhum som se compara ao de palmas sendo batidas, te fazendo se sentir amada, te fazendo sentir tocando o céu.
Entre as juniores, Duda foi a vencedora e vibrou muito quando subiu ao palco. Nenhuma novidade, já que ela estava numa noite de sonho. Nicole ficou em segundo lugar.
Não obtive colocação, embora já esperasse por isso.
Enquanto deixávamos o recinto, com meus dedos teclando o celular, distingui ao meu lado Micaela e Rafa conversando à meia voz.
— Parece que a Duda colocou a gata borralheira no seu devido lugar.
Olhei de canto para as duas e fuzilei Micaela como se pedisse vá se ferrar. Me retirei, sem me envolver em mais uma briga sem importância.
🎼
O que parecia improvável acabou acontecendo e a cidade amanheceu sob chuva. Não a tempestade que a morena do tempo anunciou, o pior mesmo tinha acontecido de madrugada, com postes e árvores caindo em bairros vizinhos. A chuva agora era calma e constante.
Por causa da mudança de tempo, a temperatura caiu, e a qualidade do ar melhorou bastante. Nada mais daquele ar seco querendo fazer meu nariz sangrar. Por outro lado, a mesma chuva que trouxe cheiro de vida e renovação ao solo seco deu àquele começo de manhã uma atmosfera sombria, triste.
Vesti uma calça jeans skinny, calcei um par de botas de cano alto e vesti uma blusa de moletom preta com uma estampa de bailarina. Sai sem dizer para onde ia.
Letícia não me criticou, não disse que minha performance foi uma bosta. Ela sabia que eu fiquei desestabilizada, por isso me deu um abraço apertado e bagunçou meu cabelo com os dedos. Esse gesto inesperado tirou de mim um meio sorriso triste.
— Um dia de cada vez, Danny. Um dia de cada vez — ela me olhou nos olhos.
Me levantei da cadeira cor de abóbora, da mesma cor das cadeiras do Hospital do Câncer onde fiquei internada quando era criança, e me dirigi ao guichê de atendimento onde uma moça morena ria enquanto teclava o celular.
— Com licença — fui dizendo com gentileza —, eu queria notícias da paciente Miyuki Nishizawa.
A mulher me encarou com desprezo.
— Você é parente da paciente?
— Não, sou só uma colega de estudo.
— Não estou autorizada a dar essa informação a quem não for parente ou responsável por ela.
— Posso pelo menos vê-la?
— Quantos anos você tem?
Mentir idade não adiantaria nada. Mesmo sendo uma recepcionista desleixada e doida para me fazer perder a cabeça, me levando a dizer algumas verdades que com certeza ela faria um advogado acreditar ser desacato à funcionário público, ela devia ter um pouco de inteligência para constatar que eu só tinha quinze anos logo que visse meu RG.
— O próximo! — a mulher cortou ante meu impasse.
Franzi minha testa em completa incredulidade.
— Não tem nenhum próximo aqui — usei um tom petulante — Por que tu finge ser eficiente, se não pode dar uma informação tão simples?
— Por favor, garota, quer se retirar?
— Nosso sistema público de saúde está de parabéns, com funcionários tão prestativos.
— E um elogio como esse, vindo de uma garota cujos pais pagam para ela médicos particulares, é sempre bem vindo — se intrometeu uma outra funcionária, que trouxe uma garrafa térmica com duas xícaras.
Virei as costas para as mulheres, me sentei novamente na cadeira. Cruzei os braços, aborrecida.
A professora da Miyuki saiu de dentro acompanhada de um médico. O semblante dela era puro desânimo. Me levantei, me coloquei diante dela antes que saísse.
— Como ela está? — a questionei.
— Está dormindo agora. Recebeu os primeiros cuidados, tomou duas injeções para aliviar a dor, e está sendo bem acompanhada.
Informações muito vagas, pro meu gosto.
— A fratura exposta foi grave — meio que ela adivinhou que eu não me contentaria com respostas evasivas. — Ela terá de pôr pino, e ficará sentada por algum tempo numa cadeira de rodas.
— Tô muito triste por ela. Espero que possa voltar a dançar logo — confessei, me esforçando para não chorar.
— Por que você veio? Vocês não são amigas, ela nunca falou bem de você, sempre achou você arrogante e mimada. Mesmo assim, você é a única que veio saber notícias dela.
Sorri com tristeza.
— Dentro do palco, nós somos rivais, mas eu não tenho motivo pra desejar o mal de ninguém. Somos todas meninas com os mesmos sonhos, todas nós queremos um dia dançar numa grande companhia, e mesmo que ninguém concorde, podemos fazer esse caminho juntas.
A mulher anuiu.
— Devia ser assim — ela suspirou.
— Quem sabe um dia seja.
— Quem sabe?
Suspirei profundamente, com medo de não conseguir chegar ao fim.
— Pode ser que você ache bobo, mas cada pessoa que existe no mundo é uma parte de mim, e se essa pessoa estiver triste, eu vou ficar triste também. Não consigo sorrir se uma pessoa próxima a mim estiver chorando.
— Você é uma moça de coração muito bom. Obrigada por ter vindo. A Miyuki vai ficar feliz por saber que você veio e perguntou por ela. Posso te abraçar?
— Abraço é sempre bom, né? — sorri.
A mulher me abraçou, e ouvi um choro se formar nas minhas costas.
Ficamos abraçadas por quase um minuto. Depois me distanciei.
— Diga a Miyuki que tudo vai ficar bem. E que eu vou rezar pra que ela seja forte e volte a dar aquele sorriso tão lindo que todo mundo gosta de ver.
— Vou dizer.
Sorri com tristeza. Peguei minha mochila e o guarda chuva na cadeira, beijei a professora e sai acenando com os dedos.
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