Capítulo 19

        * Aviso de gatilho. A última parte deste capítulo contém a descrição crua de um acidente. Um segundo aviso em negrito recomendará para pular adiante, caso não se sinta a vontade para prosseguir. Grato.

            Vítor Hugo 

      — O senhor tá maluco, tio? — gritei, enquanto acima de nós, numa sacada com grades de um terraço, um velhinho de bochechas rechonchudas segurava um balde. Duas crianças pequenas abraçavam suas pernas.

      — Cale a boca e vão embora! — o velho explodiu. — Antes era só a cachorrada que acasalava aqui! Eu quase tive um infarto quando meu netinho de quatro anos contou que tinha um homem e uma mulher se agarrando debaixo da minha janela! Se querem fazer sem vergonhíce, vão pra outro lugar!

      Eu mostrei o dedo do meio e já ia responder com alguns impropérios, mas Danny me puxou pela mão. 

      — Que velho babaca! — puxei a camisa com os dedos, e a água escorreu para baixo. 

      — Não acredito que isso esteja acontecendo comigo. Que ódio! — Danny fez cara de choro, fechando os punhos e pisoteando a calçada. 

      Nós dois estávamos ensopados.

      Merda! Não era o desfecho que eu esperava para o beijo que eu roubei da bailarina. Eu queria que tivesse terminado bom pra nós dois, e não numa ducha fria.

      — Dá tempo de voltar à escola e pegar outra muda de roupa — sugeri.

      — É claro que vou vestir outra roupa. Acha que vou assim para o teatro? Que ódiooooooo! Ele molhou meu cabelo…!

      — Ô garota, sem drama, está bem? Foi só um banho, e está calor. Relaxa.

      Em resposta ao meu sorriso irônico, Danielle parou e me fuzilou com um par de olhos furiosos. Escrevi uma nota mental a fim de não esquecer: meninas odeiam que molhem seu cabelo.

      — A culpa é sua — a loura me deu vários socos no peito, trincando os dentes. — Me agarrando, me beijando desse jeito, como se eu fosse uma qualquer.

      — Menos — segurei-lhe os punhos— Você gostou.

      — Gostei, ô… — ela se soltou e continuou me socando sem dó até se cansar. — Olha em que estado fiquei. Toda molhada. 

      — Danny…

      Ela pôs o indicador nos lábios, me pedindo silêncio.

      — Chega, tá? Deu pra ti.

      E saiu andando apressadamente. Mantive uma distância de três metros atrás, para não perdê-la de vista.

      — Puxa, Danny, estávamos nos dando tão bem. Não acredito que tu vai ficar com raiva de mim por causa de um velho ranzinza que não beija mais.

      Danielle estacou no lugar como se uma corda a tivesse enlaçado pela cintura, e também parei, assim que ela se virou. Seus olhos eram de absoluta descrença.

      — Eu não sei qual é o teu problema, Vítor Hugo. Você complica tudo, mistura as coisas, faz tudo errado.

      — O que eu tô confundindo? — o teor cortante das palavras dela me intrigou.

      Mas ela não respondeu.

      Minha boca esboçou um sorriso com uma pitada de ironia e desdém. Que nada a ver! Eu não estava confundindo nada. Será que aquela garota achava que eu estava me iludindo com algo mais sério com ela? Desde quando para um cara beijar uma garota é preciso haver tanto sentimento? Eu queria um beijo e consegui, e mesmo que a loura de sardas estivesse puta comigo pelo banho que tomamos, ela gostou.

      — Eu não te entendo — meneei a cabeça.

      — Não é pra entender. Só fica longe de mim por hoje.

      — Eu vou com você, espera — pedi, ao vê-la andar um passo.

      — Não precisa — ela se virou para mim com os punhos fechados —, eu conheço o caminho.

      — Danny...

      — Me deixa — ela se virou pra mim com os punhos fechados.

      Vendo-a andando torcendo a barra da camiseta para a água escoar, cruzei os braços e ri.

                               🎼       

      Minha coreografia contemporânea foi assinada por um artista uruguaio, amigo da Agatha, e com ela ganhei vários prêmios. A primeira parte da marcação de palco foi reservado para os alunos do núcleo infantil, a segunda para os bailarinos da categoria sênior, e a terceira, para os da júnior.

      Uma faísca era gerada quando Danny e Micaela se aproximavam, me fazendo achar que as duas acabariam se pegando a qualquer momento. Pior que as garotas próximas às duas botavam pilha, incitando-as à briga.

      Eu não queria pensar o que já teria rolado se a minha colega de estúdio estivesse competindo também. Ontem, antes de entrar na sala de aula onde estávamos dormindo, ouvi da porta Micaela revelando para a Ana e a Rafa que se ela, e não a Malu Pomini, tivesse que pôr a medalha de vencedora no pescoço da Danny, teria deixado o objeto cair no chão. Ela era capaz dessa infantilidade.

      Me sentei num dos primeiros assentos para observar a marcação dos bailarinos de até dezesseis anos. Angel, o louro aluno da Letícia Ballet, abriu os ensaios com um solo bem arrojado nos passos de saltos e giros. Mesmo quem não ouvia sua voz afetada, logo captava que ele era gay. Seus movimentos eram desprovidos de virilidade. Não que isso fôsse errado ou merecesse julgamento, mas o próprio balé, onde homens homossexuais encontram um ambiente acolhedor, era preconceituoso com homens que não dançavam como homens.

      As meninas chamaram muito mais minha atenção que os homens, por causa do feeling mais sensual.

      A Duda era uma superbailarina. Merecia ser a sétima melhor do mundo. Os passos e movimentos ousados da sua coreografia me deixaram hipnotizado, de tão atrevidos. Com uma mescla de dança e ginástica acrobática, a bailarina negra de sorriso maroto fazia saltos  parecerem uma brincadeira. Três homens sentados ao meu lado comentaram sobre o ensaio, ouvi a palavra primorosa. Eram olheiros de companhias atrás de jovens talentos.

      Mas por que eu estaria impactado? A garota havia contado ontem que fizera ginástica artística até os dez anos de idade no Corinthians junto com a Nicole, a garota de um olho azul e outro castanho. Saltos mortais eram fáceis para as duas.

      Quando terminou de ensaiar, Duda passou em frente à cadeira onde eu estava sentado, e sinalizou com os dedos para os homens que a olhavam como abutres para carne podre. Então, a Nicole e a Alice Chamowitz ensaiaram, cada uma por seu turno.

      Chegou a vez da Danny e os olhos dela encontraram os meus de uma forma casual. Ela não sorriu, embora não parecesse estar brava. A seriedade e concentração em seu semblante me serviram de aviso de que ela não iria se distrair.

      A loura de olhos azuis esbanjou vigor e sensualidade numa coreografia feita especialmente para ela, com pirouettes em sexta posição, fails, saltos e rolamentos no chão que num instante se transformavam em belos piqués com port de bras expressivos.

      O corpo dela suava, gotas escorriam por sua testa e pescoço, correndo para o vale entre seus peitos pequenos.

      Ela sorriu ao fim do ensaio. Passou correndo à minha frente me olhando com malícia e altivez, ao que retribui com um enlevo do canto esquerdo da minha boca. Um homem com um microfone em punho e um cinegrafista a abordaram para mais uma entrevista para a Le Danse, e eu olhava para as lindas formas andróginas de seu corpo enquanto ela sorria respondendo as perguntas.

      Danielle usava collant regata púrpura com abertura nas costas e meia calça preta por cima da malha, com sapatilhas de lona cor bege e as canelas à mostra. Era mais alta que a maioria das meninas da idade dela, com um brilho incomum. Tinha carisma. Vida. Tinha beleza.

     Por mais que eu achasse que o destino dela seria o mesmo dos muitos rapazes e garotas que passaram pela minha vida, alguma coisa gritava dentro de mim — e eu não sabia o quê —, que havia muito mais a ser decifrado nela, e que só uma transa era pouco.

      Estapeei esses pensamentos ao me lembrar que eu também tinha que subir ao palco. Olhei para a garota por sobre o ombro e sai.

      Léo e Rafa voltaram há pouco da rua, contando que o clima na cidade estava horrível. O céu se escurecera, como que antecipando a noite, e ventos cortantes percorriam as ruas. Dona Carmem, supersticiosa, dizia que era mal sinal. Há poucos minutos, ela me mandou uma mensagem de áudio contando que um vendaval derrubara postes e árvores no bairro onde morávamos. O jacarandá mimoso em frente a nossa casa não existia mais.

      Ninguém ali estava preocupado com a possível chegada da tempestade, mesmo estando vindo fazendo estragos pelo interior de São Paulo. Nossas preocupações eram outras.

      De qualquer forma, o clima entre os bailarinos estava tenso por outro motivo. Não fôsse a variação e o pas de deux de Lago dos Cisnes que eu teria de dançar com a Danielle, eu estaria tranquilo. Me dava aflição conceber outro ensaio improdutivo amanhã. Como o Angel não a deixava cair de lá de cima, de propósito?

      Que garota fresca, espera que eu faça tudo sozinho.

      Então, a Miyuki Nishizawa subiu ao palco. O nome da sua coreografia era “Folhas do chão”. A nikkey era baixa, mas tinha uma força física impressionante. Os movimentos dela eram fluídos, limpos. Ela esbanjou técnica na primeira parte da música.

      Quando chegamos há três dias em Ribeirão Preto, Miyuki e Micaela criaram um laço de amizade que incomodou a Ana e a Rafa. Estas se sentiram jogadas para escanteio. Miyuki e Micaela se pareciam em vários aspectos, principalmente na arrogância e na implicância com a Danny. Apontavam defeitos nas outras competidoras, contavam segredos uma para a outra, e mesmo não tendo ganhado nada até ali, a nikkey se comportava com uma pose de alguém que poderia brilhar quando bem quisesse.

      Danielle se manteve quieta no canto do palco, quase na saída para uma das coxias. Tomava uma garrafa d'água, com uma toalha cor de rosa no ombro.

      Pela primeira vez depois do balde de água fria que tomamos, ela me olhou com ternura, e sorri, mas a dança da Miyuki era cativante. Ela inclinou o tronco para trás, pôs ambas as mãos no chão e fez uma inversão. Voltou ao fundo do palco, numa das diagonais, se preparou, tomou impulso para um grand jeté... saltou…

      E todos os espectadores se levantaram, horrorizados com o que aconteceu. Algo imponderável.

      Horror!

* Início da descrição de um acidente. Sinta-se a vontade para pular para o próximo capítulo.

      Um grito cortante, agudo, e a nikkey se contorceu no chão, sobre o flanco direito. Ao pousar desajeitadamente após o salto, os dois ossos da perna da garota se quebraram, lhe rasgando a carne e a pele, e se projetando para fora como lanças.

      — Meu Deus! Meu Deus! — uma bailarina atrás de mim se desesperou ao ver a fratura exposta.

      O ar se comprimiu em meus pulmões. Aquela cena era demais pra todos, ninguém esperava que o ensaio terminasse num acidente tão grave.

      Miyuki perdeu a voz de tanto gritar, levando as mãos à cabeça. Uma confusão se instalou no recinto, com bailarinos, professores e leigos se levantando, sem saber o que fazer.

      Foi em fração de segundos.

      O fim de tudo. De sonhos, de projetos.

      Meus olhos buscaram os da Danny. Assim que ela viu a Miyuki cair, com as pontas dos ossos saltadas para fora, a loura gritou em desespero, levando as mãos à cabeça, e correu para perto da acidentada, se ajoelhando ao seu lado e lhe tomando uma das mãos.

      — Parem de ficar só olhando e chamem a ambulância! — ela explodiu, indignada com a apatia dos presentes.

      Danny passou o dorso de sua mão na testa de Miyuki. Seus lábios se mexiam, e acho que eram palavras de encorajamento. Ou um pedido para que ela fosse forte.

      Me ajoelhei do outro lado da Miyuki, mesmo sabendo que não havia nada que eu pudesse fazer.

      — Já foram chamar o socorro — avisei.

      — Minha perna!... Minha perna! Dói muito…! — senti na alma os gritos agoniados da moça, o rosto banhado em lágrimas.

      A professora da moça, e sua outra aluna, uma moça de cabelo castanho, se agacharam em solidariedade.

      — Me ajuda! — Miyuki implorou.

      A mulher meneou a cabeça negativamente, sensibilizada. Apenas se sentou sobre as pernas, e beijou a testa da aluna, segurando sua mão com força.

      Miyuki foi retirada do palco numa maca, e seu sangue no tablado do palco, enxugado. O choque era visível, quase palpável, no rosto de cada bailarino. Eu estava abalado. Nunca vi uma pessoa se ferir tão gravemente dançando.

      As meninas choravam, buscando consolo e explicação enquanto se abraçavam. Micaela e Alice operavam de outra maneira, não deixando transparecer nenhuma emoção.

      Mesmo não havendo clima para a continuidade dos ensaios, a falta de sensibilidade dos profissionais da Alliance prevaleceu, e a Rafa  retomou a marcação de palco.

      Sai na coxia, vi Danny vestindo uma calça azul escuro com listas pretas — essa calça larga nos distingue como bailarinos. Ela chorava baixinho. Pôs a mão na testa, andou dois passos, se apoiou na parede.

      Me aproximei dela calmamente, pus uma das minhas mãos em seu ombro, e ela se virou para mim, bem devagar.

      — Gosto de você, mas quando está sorrindo — me abri. — Volte a sorrir, por favor.

      Danny enxugou as lágrimas, pôs o dorso da mão abaixo do meu olho.

      — Podia ter sido com qualquer um de nós, não é? Nossos corpos fazem coisas incríveis, mas são tão frágeis quanto o de qualquer pessoa. Não é justo.

      Assenti em silêncio.

      Danny tocou minha boca com a ponta dos dedos, passou por mim sem dizer nada. Entrou no corredor, sumiu na escuridão. Fiz menção de segui-la, dando dois passos, mas não tive presença de espírito para continuar.

     Ela precisava ficar sozinha para tirar forças, não sabia de onde, para dançar.

* O sobrenome da Miyuki é 
uma homenagem minha a Hiroioshi Nishizawa, piloto da Marinha Imperial Japonesa. Com seu avião de caça Zero, derrubou mais de 100 aviões americanos na Segunda Guerra Mundial, até ser morto durante a escolta de um comboio aéreo.

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