Capítulo 14
Danielle
A sala de aula ainda não estava liberada pra que pudéssemos entrar e nos aquecer. Depois que nos trocamos no vestiário, começamos a fazer alongamento ali mesmo, no corredor.
Felizmente, eu havia trazido vários collants para Ribeirão Preto. É super desagradável fazer aula de balé com uma malha fedendo a suor, mesmo com o antitranspirante. Bailarinas não são necessariamente as pessoas mais cheirosas que existem. Não depois de mais de duas horas de aula.
Segurei numa barra embutida na parede, fiz um souplesse e um detiré, segurando meu tornozelo e esticando minha perna direita até fazê-la tocar na minha orelha.
— Metida! — Nicole cruzou os braços, fazendo uma cara de nojinho.
Ofereci um sorriso à minha amiga de olhos bicolores, e acidentalmente, encontrei a Duda do outro lado do corredor, fazendo cambrés.
Desde ontem a noite conversamos muito pouco. Ela não ficou nem um pouco contente com a medalha de segundo lugar, já que era acostumada a vencer competições. Claro que eu achava isso muito infantil, nada combinando com a principal bailarina da Promoarte. Ela devia saber que nem sempre a melhor vence. Além disso, eu estava numa noite de sonho.
Eu não tinha culpa alguma pelo mau humor dela, e nem me cabia passar a mão na cabeça de ninguém. Ficar em segundo lugar numa competição é ótimo, é um prêmio, de qualquer forma.
Finalizei meu aquecimento fechando minhas pernas em quinta posição e desci meu tronco até que minha cabeça tocou bem abaixo dos joelhos. Os músculos das minhas coxas latejaram, e fiquei assim por três minutos.
— Bom dia, meninas — Letícia tinha um sorriso quando se aproximou segurando um jornal .
— Danielle, você saiu no Caderno de Artes — ela informou animada.
Eu arrumava minha polaina quando ela estendeu o Gazeta de Ribeirão Preto. Me levantei rapidamente, com meu olhar brilhando de ansiedade, tomei o periódico e abri num dos cadernos.
— O que escreveram? Lê pra gente— Nicole se apoiou no meu ombro.
“Segunda noite de competição consagra bailarina catarinense”, dizia o título.
Na foto a cores, eu estava fazendo um ecarté devant – incrível como essa pose fica legal em todas as fotos.
“A bailarina Danielle Răducanu impressionou ontem público e jurados com um atrevimento técnico e sorriso cativante, e conquistou o primeiro lugar na categoria Júnior com variação de Paquita”.
O artigo não era extenso, mas as palavras foram o suficiente para fazer com que eu sentisse orgulho de mim mesma. Me perguntei se era um sonho.
“Danny será um dos principais destaques este ano e já desponta como favorita em importantes competições ao lado da Duda”, enfatizou Ico Villa Lobos, ex-bailarino do Theatro Municipal de São Paulo e um dos jurados.
O que me deixou superfeliz é que ninguém mencionou o nome Françoise. Os caras escreveram só sobre mim.
— Atrevimento técnico — Angel pontuou.
— Ontem ela estava atrevida — Letícia apoiou, recebendo de volta o jornal que eu estendia, toda alegre.
— Minha partner é muito linda — Angel abraçou minha cintura por trás, beijando meu rosto.
— Mas não fique se achando, garota — pra Letícia, sempre tinha um porém. — Precisamos limpar muito essa variação de Paquita. Para o público em geral foi lindo, maravilhoso, sublime, ver uma bailarina levantar essas pernas compridas até o teto, sorrir e tal, afinal, elas não entendem de fundamentos técnicos da dança clássica. Mas para nós, professores, nada passa despercebido. Ainda bem que os seus fouettes já não valiam pontuação. Eu não mandei você girá-los por acaso, queria te avaliar. Vamos melhorar, Danielle Raluca.
Fiz um beicinho. Pensei que ela tinha gostado dos meus giros. Letícia sendo Letícia, exigente.
Espiei Duda no outro canto enquanto Letícia fazia sua preleção. Minha amiga era tão diferente quando fechava a cara. Parecia uma pessoa amarga.
— Duda, vem cá! — Letícia também acenou para Alice, que abria espacate na parede. — Angel, meninas, fiquem perfilados na parede, pose de foto. Não! No corredor mesmo.
Letícia destravou a tela do seu iPhone de mais de 5 mil reais e o deu à Myuki.
— Faz um favor pra mim? Tire uma foto nossa.
Letícia soltou o cabelo e se colocou ao lado do Angel. Fizemos uma pose clássica.
— Sorriam, avestruzinhas — Letícia nos chamava por esse apelido fofo por causa do nosso collant preto e das meias calças cor de rosa.
A japonesa clicou duas vezes pra garantir.
Barulhos de vozes e risadas desviaram meu olhar para o começo do corredor. Eram os temidos bailarinos da Stude de Dance Agatha Toller, com sua professora, à frente. Eles já estavam uniformizados para a aula.
— Bom dia, Letícia, querida! — as duas professoras se cumprimentaram com beijinhos. — Não vi você hoje de manhã no hotel.
Se minha professora não tivesse garantido que a professora do Vítor Hugo era uma pessoa transparente e honrada, eu acharia que La Toller era cínica e fingida. Seu sorrisinho afetado me fazia pensar assim.
As alunas dela eram puro orgulho. A Micaela não fazia questão de esconder de ninguém sua importância na companhia. A Rafa e a Ana eram uns amores, simpáticas. O Léo não ficava muito atrás.
Vítor Hugo surgiu discretamente detrás do grupo, com seu sorriso perfeito, seus olhos sempre confiantes, e lhe ofereci um sorriso.
Mesmo eu não tendo nenhuma intenção de avançar para um algo a mais, eu não podia negar que o que a gente viveu foi perfeito. Sublime. Ele foi gentil comigo, respeitou meu ritmo, deixou que eu me soltasse aos poucos sem fazer nada forçado. Não podia ter sido melhor.
Nos aproximamos um do outro, sorrindo, e ele insinuou tocar minha cintura. Ao se dar conta que tinha pessoas nos olhando, deu um beijinho na minha face direita.
Uma mulher baixinha veio apressada, não sei de onde, resvalou no meu ombro e quase me fez cair nos braços do Vítor Hugo. Ela segurava um molho de chaves, e por causa da afobação, demorou a encontrar a chave certa.
— Por que vocês não abrem a sala mais cedo? — Agatha cobrou com prepotência. — Os alunos precisam se aquecer antes da aula.
A funcionária do teatro abaixou a cabeça em sinal de vergonha pela falta de eficiência, e tive pena.
— Ah, sossegue, Agatha — Letícia pediu. — Deixe nossas meninas fazendo aula e vamos passear de vassoura por aí, tomar uma cerveja.
Levei uma mão à boca, para disfarçar uma risada.
Os meninos entraram na sala de aula com tudo, saltando grand jetés, fazendo aquele barulho no piso flutuante de madeira.
Entrei com Vítor Hugo, com meu corpo um pouquinho a frente do dele. Nos sentamos de frente um para o outro, com nossas pernas esticadas para os lados. Trocamos um sorriso e um olhar silenciosos, passei meus braços em volta do pescoço dele, e ele cingiu minha cintura.
Começamos a fazer o alongamento, com os braços dele puxando meu corpo para si, tocando nossas panturrilhas, depois coxas, até que meu sexo tocou o dele. Nesse momento, ele fez uma careta de dor, e eu ri.
— O que foi? — perguntei.
— Não sou tão flexível quanto você — ele gemeu baixinho. — Minhas virilhas estão doendo. Você não sente dor?
— Um pouquinho, afinal, tô viva. Mas eu consigo até negativar esse espacate.
— Não precisa me humilhar.
— Não tô te humilhando. Só tô dizendo que sou alongada.
Ele puxou meu corpo um pouco mais para si em resistência ao incômodo muscular que sentia e que o fazia gemer baixinho, até que meus peitos tocaram seu busto. Nossas bocas ficaram pouquíssimos centímetros de distancia uma da outra. As mãos dele escorregaram por trás da minha cintura e apertaram meu bumbum, fazendo de propósito que meu collant entrasse.
Meu rosto esquentou e ganhou uma tonalidade rubra, se sobrepondo à minha palidez natural.
— O que está fazendo? — perguntei.
Mas Vítor Hugo ficou quieto, só se limitando a um sorriso pretensioso.
Então um flash me fez piscar.
Uma mulher surgida sabe-se lá de onde sorria inocentemente quando a olhamos ao mesmo tempo.
— Sou fotógrafa da Promoarte — ela informou — e tiro fotos dos alunos durante as aulas para o site da produtora.
Sem deixar de abraçar Vítor Hugo, alternei um olhar entre ele e a fotógrafa inoportuna.
— Está fazendo um ótimo trabalho — notei um tom irônico no comentário dele, um sorriso brincando em seu rosto. Reprimi um riso.
— Obrigada. Vocês são namorados?
Isso é da sua conta?, tive vontade de perguntar.
Respondi que não com a cabeça.
— Apenas amigos — Vítor Hugo respondeu secamente.
A mulher assentiu e puxou uma caderneta do bolso do colete com uma caneta.
— Podem me dizer os nomes de vocês? Preciso pôr abaixo abaixo da foto.
— Vítor Hugo Costa — ele respondeu. Soltei meus braços de duas costas e apoiei as mãos no chão.
— Danielle Raluca Răducanu — sorri. — Mas só anote Danielle Răducanu.
Ela disse um ok, agradeceu e se afastou.
Vítor Hugo levantou-se num pulo e me estendeu a mão pra que eu ficasse em pé.
— Raluca — ele observou. — É a primeira vez que ouço esse nome.
— É o nome da minha avó romena. Meu pai quis fazer uma homenagem. Ela é um pouco brava, mas uma pessoa com um coração que não cabe no peito.
— Bacana.
Reviro os olhos, passo a mão no meu coque.
— Bom, vamos treinar pirouettes? — mudo de assunto repentinamente.
Corri para a Duda, que fazia um souplesse en avant na barra. Ela se manteve séria, estava mesmo chateada comigo. Deu como desculpa que seu smartphone tinha pouca carga, o que não era verdade, já que me lembro que o celular dela passou a noite no carregador.
Me virei para Vítor Hugo de longe, acenei negativamente. Nicole não estava na sala nesse momento, e ela era a única garota com quem eu tinha intimidade para pedir esse favor.
A Alice fazia um ecarté devant , com a perna lá em cima, o braço levantado e o olhar alto, fixo nos tornozelo. O celular dela tinha uma câmera melhor que o da Duda. Será que se eu pedisse com carinho, ela negaria? Mas era a ranzinza da Alice.
— Posso te pedir um favor? — arrisquei, assim que ela baixou a pernoca. Alice era do tipo de garota com quem ninguém se metia. Tinha o olhar sempre altivo, sério. — Se você não puder, tudo bem.
— Fala.
— Você pode filmar o Vítor Hugo e eu treinando pirouettes?
Eu esperava um não como resposta, e já ensaiava uma meia volta.
— Claro, sem problema.
O mundo tinha salvação. Alice, não sendo Alice?
…
Toquei o peito de Vítor Hugo com as mãos e o olhei com afeto. Me virei num posé e caminhei dois passos, então fiz um plié, com vários hoppings e os braços erguidos em quinta posição. Os alunos se viraram atentos, por causa do som que as minhas sapatilhas de ponta faziam no tablado.
O som tocava Lago dos Cisnes.
Dei um sorriso, e nesse momento, olhando para a parede de espelhos e para a Alice com seu smartphone me filmando, senti as mãos de Vítor Hugo tocarem minha cintura, logo abaixo das minhas costelas. O toque dele era firme, sem deixar de ser gentil.
Marcando a cabeça num ponto acima da minha colega, pra não sentir tontura, lembro do ensinamento da Letícia: “A cabeça é a última que vai e a primeira que chega”.
Girei dez pirouettes, e no complemento da última Vítor Hugo me girou num atittude, com minha perna de trás quase abraçando sua cintura. Ele me desceu num penchè, e eu vi pelo espelho minha perna de trás subindo tão alto que quase passou a altura do Vítor Hugo.
Subi lentamente, e ao final, meu corpo caiu, como se eu tivesse desfalecido… ou caído de amor pelo Príncipe Siegfried. Deu frio na barriga, porém seu braço esquerdo me segurou com firmeza. Meus braços e pernas estavam em quinta posição, e meu olhar no teto.
Terminamos dentro do tempo da música, sob aplausos dos demais alunos. Não que tivesse ficado lindo como um pas de deux de palco, mas era o que tínhamos pra hoje.
Vítor Hugo me ajudou a levantar e me olhou com cumplicidade, fazendo eu sentir minhas bochechas corarem.
— Logo você vai dançar Lago dos Cisnes — ele vislumbrou.
Por alguma razão, acreditei que era um sonho possível, eu só tinha que me dedicar um pouquinho mais.
Sorri, passando os dedos no meu coque. Sempre faço isso quando fico encabulada.
— Teu número ainda é o mesmo?— Alice perguntou, a voz neutra.
— É, sim. Obrigada, Alice.
— Não vá se acostumando, ok?
Ela insinuou um meio sorriso, voltou para seu canto na barra, rebolando. Havia voltado ao normal. E quer saber? Prefiro assim.
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