14: $$ Caixa de Pandora $$
--2600 palavras por aí--
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Num ápice assustador, Emma largou o pequeno. Mas não deu nem tempo para estar consciente das suas ações, pois logo sangue branco saiu do seu nariz. Foi algo pouco, nada de muito preocupante e de poucos segundos, mas ainda assim assustador aos olhos de todos.
Kuma, por outro lado, assim que ganhou completa consciência, a reação foi outra. Fora instintivo, as suas feições tornarem-se assustadas, assim que sentiu tudo no seu corpo em perigo iminente.
Estava sozinho outra vez.
Escondeu-se por detrás dos cortinados mais próximos e encolheu-se entre as suas pernas, na procura de um porto seguro, escondido de todos.
"Mas que porra tu fizeste, Emma?!" Valac estava inundado de raiva, olhava-a gelidamente. Vontade não lhe faltava para lhe arrancar a cabeça. Até começou a avançar com todo o poder protetor de pai que lhe tinha subido ao consciente para mostrar que nada devia magoar o seu filho, porém o choro do mais pequeno chamou mais a atenção dos seus instintos.
Daemonium deu um último olhar mortal à Emma, e avançou devagar até ao pequeno, mas, assim que tentou tirar a cortina da sua frente, foi um grito agressivo e protestante que o parou mais uma vez.
Kuma chorava compulsivamente, mas as suas lágrimas eram diferentes das demais, eram alaranjadas, brilhantes e vívidas. Queimaram o chão daquela vez. Era até possível sentir o calor que o seu corpo exercia.
Mas não era isso que ia crescer o medo no peito do Daemonium.
"Ei, filhote..." Tentou o tocar, assim que se agachou perto dele, mas o pequeno estava frenético demais para o aceitar. A voz que outrora o serenava, metia-o ansioso, em perigo. "Sou eu." Não ligou, parecia nem ter ouvido. Continuava a chorar, com medo.
Era o pavor que consumia a criança de dentro para fora. Mas ninguém entendia o porquê. O que a Emma tinha visto?
"Noah." A voz dele tornou-se autoritária. "Tira-as daqui, e sai."
Ninguém ripostou aquela ordem, não porque não queriam sair dali, mas sim porque a privacidade era algo importante. Só pediam à Lua para que o pequeno ficasse bem e voltasse a pular e a transmitir alegria dentro daquelas quatro paredes.
"Qualquer problema, não hesite em me chamar."
Novamente, Noah foi o último a sair, não tirando o olhar dos dois que estava a começar a se preocupar muito mais do que profissionalmente.
Valac não respondeu, dando ao choro e aos fungos do pequeno lugar naquele silêncio.
Sabia que tinha de levar aquilo como algo normal e não se deixar levar pelas pequenas chamas inofensivas que as suas lágrimas formavam no chão. "Respira, querido."
Kuma estava a ferver, mais uma vez.
E era como pai que o tinha de acalmar, transmitir segurança e confiança, que estava tudo bem e que estava seguro.
Todo ele tremia, encolhido ainda entre as pernas. Aquela visão era uma faca a espetar-se no coração do filho do Sol. Tudo dele queria abraçá-lo, acarinha-lo, mas tinha medo de que se aproximasse mais um pouco o pequeno explodia de tão tenso que estava.
"Respira comigo, querido." Inspirou fundo, esperando que o pequeno o seguisse, mas os seus ciclos respiratórios continuavam rápidos e barulhentos. "Devagar, calma. Olha." Inspirou de novo. "Cheira uma rosa..." E expirou. "...apaga uma vela." Sorriu para ele, enquanto o olhava com ternura. Talvez, simplesmente com o olhar, ele conseguisse o acalmar. "Cheira uma rosa...apaga uma vela..." O mais novo conseguiu acalmar um pouco a respiração, mas as lágrimas fogosas não paravam de brotar. "Isso! De novo, querido. Mais devagar. Cheira uma rosa, apaga uma vela." Desta vez respirou com ele, os dois no mesmo ritmo. "Isso mesmo. Outra vez."
E copiou o mesmo ciclo vezes suficiente para que o pequeno conseguisse respirar mais calmamente.
"Melhor, filhote?"
Kuma fungou em confirmação.
Daemonium tentou se aproximar dele, ainda com receio que ele fosse se afastar ou voltar a piorar. Mas nada disso aconteceu. Embora chorasse e tremesse, o pequeno queria o calor dele, e o abraço dele. Assim que sentiu a mão grande e terna no seu braço, daquela vez, tudo pareceu ficar mais calmo. Fungou, baixinho, quando viu os braços do seu protetor abertos para o receber mais uma vez.
Realmente, ele estava a ferver.
Kuma ficou enrolado nos braços dele, enquanto tentava enlaçar todo o peito robusto, algo que era impossível para os seus bracinhos. Valac não se importou, estava mais concentrado no calor que o corpo do pequeno conseguia aguentar e se as lágrimas que molhavam a sua camisola o iam queimar.
Todavia tudo isso saiu da sua mente, quando o pequeno fungou algumas palavras impercetíveis ao seu ouvido.
"O quê, amor?"
Não disse mais nada. E não era naquela altura que Valac o ia obrigar a dizer alguma coisa. Somente era necessário reavivar um pouco mais da sua confiança e alegria. Voltar a ver o menino a correr por ali, a fazer bagunça.
E nada era melhor para alimentar a alegria do que comida.
"E se a gente visse um desenho animado enquanto lancha?" Sussurrou perto do ouvido do pequeno, massajando os caracóis negros. Ele adorava este cafuné.
Kuma afirmou que sim.
"O que é que queres comer?"
"Leite."
"Com?"
"Torrada."
Afastou-se dele o suficiente para o ver por inteiro. Ele sorria de canto, Ah o sorriso que eu amo ver. "Então, vamos pedir ao Soren para preparar para a gente? O que achas, filhote?"
O pequeno confirmou com um aceno de cabeça, limpando as lagrimas que ainda desciam nas bochechas. O olhar do Kuma, apenas por um segundo, tornara-se num laranja vívido, fogoso e pavoroso, algo que deixou Valac mudo. Ele conhecia aquele olhar, viu-se nele. Quando levou todo o seu pensamento à memória de adolescente, a resposta veio. Não podia ser.
Mas era algo que não ia se preocupar agora.
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"Filho do Minguante, han?" Emma tentava quebrar o gelo que se fazia na segunda sala de estar daquela mansão. Estava do lado de Camoren, embora esta também partilhasse um pouco da ira do seu irmão.
"Correto."
"E tu a rara Loba Lunar?" Apontou para a Camoren desta vez. Sentia a raiva dela.
"Hmhm."
E a distância dos dois.
"Olhem...eu não fiz de propósito. E-Eu ainda não sei controlar os meus poderes. Descobriu-os fazem poucos meses, e eles continuam a se apoderar de mim."
Noah suspirou.
"Nós percebemos isso, Emma. Porém isso não seria desculpa se algo acontecesse com o Kuma."
"Não sei como é que o meu irmão ainda não te aniquilou, querida."
"Estou prestes a fazê-lo se essa menina não sair da minha casa em dois minutos."
A voz do Valac soou tenebrosa e fria, vinda com uma vaga de frio enorme. Todos naquela sala arrepiaram-se ao ouvir aquele timbre tenebroso. Ele estava irritado. Emma engoliu em seco, tentando descobrir maneira de lhe mostrar submissão e desculpa; ela não tinha feito de propósito, era difícil de compreender?
Na verdade, quando alguém toca nos pertences mais próximos de Valac Daemonium, é preciso muito tempo e paciência- e sorte- para que ele perdoe.
"E...eu não tenho carro, senhor."
Valac bufou. "Noah, por gentileza..."
"Eu levo-te." Camoren interrompeu aquele que não deve ser interrompido, mas precisava de ser rápida, antes que os níveis de raiva dentro daquelas quatro paredes aumentassem. "Bora."
Emma pegou as suas coisas, as mãos tremiam-lhe junto às roupas. Definitivamente, aquela família assustava qualquer um. Porém uma coisa apenas passava na sua cabeça: A culpa não era dela. Ela não precisava de estar com medo das consequências de algo que não fez de propósito. Mas assim que olhava para a íris alaranjada de Valac Daemonium, um choque intenso inundava a sua espinha.
Saiu dali com o passo mais apressado que a Camoren.
Deixando a Raiva e a Serenidade mais uma vez sozinhos.
"Como está o Kuma?"
"Melhor, mas continua abalado. Consegui acalmá-lo com um pouco de leite e com a televisão." Mesmo com o seu alvo fora da sala, a ira dele ainda se sentia na voz. "Vim só ver como vocês estão, pensando que aquela...pessoa...já tinha saído daqui. Já me deixou de mau humor."
"Então, eu não vou incomodá-lo mais, senhor Daemonium. Eu vou embor—"
"E a nossa conversa, Noah Alba? Tu só sais da minha casa quando disseres o que se passa contigo."
Autoritário quando está enraivecido, senhor Daemonium, como eu poderia esquecer?
"Certo, mas acho que seri—"
"Minha casa, minhas regras." Aproximou-se do albino. Ambos sabiam que quem iria ganhar aquela pequena negociação era o Daemonium, mesmo que o de olhos azuis insista e insista que o melhor era ele passar mais tempo com o Kuma e que descansasse. "Afinal tu próprio o disseste: Qualquer problema, não hesite em chamar."
"Não sabia que a minha vida pessoal era um problema para si, senhor Daemonium."
Com a resposta que saiu da sua boca, Noah sentiu o coração palpitar em perigo. Só naquele momento ele viu o quão rude estava, realmente.
Foi no olhar raivoso do seu chefe que se viu indefeso. "Desculpe."
"Ah, mas eu vou descobrir o que se está a passar contigo, Noah Alba." Riu-se.
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Às 4 da tarde, o Sol já se começava a acanhar-se para o Oeste, já não sendo capaz de ser visto pelas duas garotas fechadas dentro de um veículo de vidros fumados. Estavam em silencio já faziam alguns minutos, parados no estacionamento perto do prédio onde a Mensageira Lunar vivia sozinha. Nenhuma delas queria se separar, ou começar a falar, porém o ar já começava a ficar estranho.
Num engolir seco, Emma começou, trémula:
"Camoren, achas que o teu irmão vai me desculpar?"
"Não sou o meu irmão, então não posso achar nada. Simplesmente mexeste com o filho dele, algo é uma sentença de morte para a nossa família." Suspirou. "Se não fosse o Noah, e os seus mega conhecimentos da vossa mitologia, o Valac tinha arrancado a tua mão do pescoço do Kuma."
"Isso seria bastante grave..."
"Foi bastante grave, Emma." Estava realmente irritada. "Conseguiste fazer o menino a chorar!"
"Não fiz de propósito, okay?!"
"Não interessa. Tu nem sonhas o que aconteceu com o último que magoou o Kuma. Ninguém naquela casa sequer pensou em impedir o Valac de fazer justiça contra aquele merda. Tiveste sorte por a tua vida ter estado conectada com a do Kuma..."
"Eu entendo que o menino é de ouro e que fazem de tudo para o proteger, mas eu não fiz de propósito. Entende-me, também, Cam!"
"Eu entendo, querida- se eu não entendesse não estaria aqui-, mas não é a mim que precisas de pedir entendimento."
"Eu sei." Suspirou.
O silêncio reinou mais uma vez. Elas odiavam discutir uma com a outra, embora mal conhecessem as suas personalidades. Depois de acabado o serviço da Matilha, Camoren continuou a ver a Emma, a namoriscá-la, querendo a sua atenção. Entendeu o porquê daquela carência toda: Talvez...por ela ser Mensageira Lunar?- foi nessa pergunta que ela pensou a viagem inteira.
Não queria entrar nesse mundo de novo.
Foi ela quem quebrou o silêncio de poucos segundos.
"E o que é que viste, nessa...tua...visão?"
Emma demorou a responder, relembrando-se de todas as sensações, imagens, cheiros, sons daquele sonho. "Foi muito confuso. Num momento, estava tudo rodeado de chamas, noutro ouvia-se rugidos. Tudo muito intenso, demasiadas emoções, demasiada força. Depois tudo ficou calmo e sereno, mas escuro. Senti-me num túnel, sabes? Uma passagem...parecido com aquela expressão: a luz no fundo do túnel. E depois...senti...sujidade..." O seu rosto ficou enojado, como se estivesse dentro daquele ambiente cego. "...dor. A pior parte foram os gritos...gritos de crianças."
"Crianças?"
"Sim. Crianças, outros mais velhos, alguns recém-nascidos a chorar. Parecia um hospital, mas não parecia ao mesmo tempo." E o silêncio tinha voltado. Emma não olhou mais para o rosto da mulher no volante "Se aquelas visões forem reais, o Kuma passou pelo Inferno."
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Não foi naquela noite que o Valac ficou a saber o que afetou tanto o Noah para que a sua pouca rudeza o dominasse mais do que a simpatia. Verdade era que o Valac não tinha um pingo de paciência para insistir naquele assunto, nem o Noah de ouvir tanta insistência.
"Amanhã, venho o buscar a que horas, senhor Daemonium?"
Mas a serenidade tinha de estar no comportamento de Noah Alba mesmo nos momentos em que a irritação esteja num nível alto e tudo nele queira explodir.
"No horário de sempre."
"Certo." Noah olhou bem na íris alaranjada do seu patrão. Estavam cansados, furiosos e rígidos para com tudo à sua volta. Ou será que era com ele? "Desculpe-me pelo meu comportamento de hoje." Sussurrou com metade do seu corpo do lado de fora do alpendre. Estava mais frio que o normal, e Noah tinha quase a certeza que o temperamento do homem á sua frente influenciava de alguma forma.
"Que comportamento? Sê específico."
O senhor quer sempre estar por cima, não é verdade?
"Pela minha rudeza pela manhã, de não ter cumprimentado a visita- como sempre faço-, por lhe ter faltado ao respeito."
"E porquê esse comportamento?"
"Senhor Daemonium, como eu já disse..." E estou farto de me repetir. "...outro dia eu conto."
Vai te foder, vai te foder, vai te foder, Noah Alba, caralho. Não digas, então, porra. Não te volto a perguntar mais.
"Okay." Foi o que saiu da sua boca.
Espero que amanhã venhas com a resposta preparada na ponta da língua, seu Guardião do Caralho, se não cabeças vão rolar!
Viu o Albino sair do alpendre da casa e tirar a chave do Mercedes branco do seu bolso.
Seu...idiota.
Antes mesmo de fechar a porta do condutor, onde estava sentado, Valac, de olhos fechados- tentando controlar a sua língua e a sua raiva-, ouviu a voz terna e serena do seu segurança mais uma vez:
"Qualquer problema, telefone-me."
E fechou a porta.
"VAI TE CATAR, NOAH ALBA!"
☀☀☀
Kuma demorou para adormecer naquela noite. Mesmo com o som da chuva e neve que se fazia cair nas janelas abertas e amplas, o seu corpo não queria largar os poucos alertas que estavam ao seu redor. Até mesmo com a rara e momentânea voz cansada, rouca e sonolenta de Valac Daemonium, a sua imaginação não criava os pequenos animais que a história infantil criada na hora tinha.
"Devagar, devagarinho, o Pequeno Leão foi adormecendo perto da Zebra. As suas riscas hipnotizavam-no e deixavam quentinho, como se deitassem calor por elas. E, devagar, devagarinho, o Pequeno Leão fechou os olhos, respirou fundo, aninhou-se um pouco mais entre as patas da Zebra e disse num rugido lento e baixo: Boa noite, Zebra."
Valac viu os olhos do pequenote fecharem-se para talvez não abrirem mais naquela noite. Olhou para o seu relógio no pulso esquerdo: 11:46 da noite. Tardíssimo. Levantou-se com cuidado para não ranger a madeira do cadeirão onde estava, perto da cama do pequeno. E sem fazer muito barulho, apagou a luz laranjada de presença do quarto e saiu do quarto.
Porém, antes de encostar totalmente a porta, Kuma levantou o dorso, assustado.
"Dorme, aqui!"
Valac suspirou. Kuma não se deixava mesmo vencer pela independência de dormir sozinho.
"Amor, o pai está cansado e..." Kuma abeiçou em desaprovação, os seus olhos redondos cristalizavam. "Oh, filhote...não fica assim não."
"Dorme aqui..."
"Pode ser no meu quarto, pequeno?"
Murmurou que sim, retirando-se logo de dentro dos lençóis. Correu com a almofada nos seus braços, de pés descalços, até às pernas do seu protetor. Pegou-o no colo. Ainda estava quente. Sentado na dobra do braço, pousou a cabeça no ombro do maior e apertou a almofada, não a deixando cair. Viu-se andar sem tocar no chão, as paredes a saírem lentamente da sua visão. Estava escuro, somente as luzes mais frascas estavam acesas.
Reconheceu o cheiro do quarto assim que entrou dentro dele. Não demorou muitos segundos para sentir o colchão maior da casa inteira, e os lençóis polares brancos e cinzentos.
"Melhor?"
Será que estava?
O pequeno não sabia nomear o medo que sentia no peito cada vez que o seu protetor sair de perto dele. E o Valac não imaginava como conseguia acalmar aquele medo desconhecido sempre que estava perto dele.
Daemonium queria muito saber o que tinha despertado aquele alvoroço de emoções no pequeno, o que continha a Caixa de Pandora que fora aberta naquela tarde pela Mensageira Lunar.
"Hmhm."
"Ainda bem." Sorriu.
Valac deu um beijo casto na testa do pequeno e tapou-o até ao pescoço. A criança estava mais feliz agora, por entre aqueles lençóis, embora ainda sentisse medo de que ele ficaria sozinho naquela noite. Mas os seus pensamentos cessaram quando viu o mais velho deitar-se ao seu lado, um pouco afastado.
O filho do Sol bateu palmas, e o quarto ficou apenas iluminado pela luz da Lua que passava pelos cortinados de seda brancos.
Daquela vez, o pequeno fechou os olhos por vontade própria, esperando que os sonhos viessem logo. Não demorou muito para estar noutro lugar, não ouvir mais nada daquele mundo e se sentir seguro.
O moreno enrolou um pequeno caracol da sua franja no indicador, deixando-o escapar com lentidão.
Estava mais frio.
"Boa noite, pequeno."
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