Carta 5: De Rosa ao Rei
Dia 2 do segundo mês de Theína. Ano 120 pelo calendário de Morat.
Majestade,
Agradeço por ter aceitado colocar um encanto em nossas correspondências. Apesar de minha confiança em ti, não poderia continuar estes relatos sem a certeza de que meu povo está seguro. Sei que és incapaz de mentir para mim e também perguntei a tua irmã sobre o que foi feito. Apenas agora, ao receber a ave dela, respondo tua carta.
Diga-me, entretanto, por qual motivo queres saber de minha vida antes dos acontecimentos de seis anos atrás?
Quando me pediste para narrar nossas aventuras, imaginei que falava apenas do ápice que ocorreu após aquele incêndio. Agora, me pedes para falar sobre minha história, antes de tudo isto. O que ainda não te falei? Quais detalhes, por mais sórdidos, que foram omitidos? Não sei o que pretendes, mas nunca foi de meu intento expor-me de forma tão visceral.
Quanto às tuas outras reclamações, vou me resguardar ao direito da abstenção. Falo dos personagens tal como me pareceram naqueles instantes, o que se tornaram no porvir ainda há de ser dito.
Imagino que saibas o silêncio que paira entre minha mão e o papel neste momento, enquanto pondero sobre teu pedido e a folha parece sussurrar enquanto advoga a teu favor. Não é com imenso júbilo que o acato, porém ainda recordo o sorriso que se forma em teus lábios finos, aquele de canto, que dás toda vez que consegues algo – principalmente de mim.
Sim, conseguiste. Espero que fique imensamente feliz com isto.
~*~
Como sabes, sou jovem demais para os fardos que carrego. As vinte e cinco passagens fazem-me uma criatura nova e inexperiente diante de outras fadas. Por hora, a data de meu nascimento não é de interesse, tampouco as condições sob qual encontrávamo-nos – minha mãe, eu e minha irmã – naquele dia. Tudo o que há necessidade de conhecer é que fui uma criança sadia (mesmo que em nossa língua não exista tal termo para as pequenas fadas) e que até os quinze anos jamais me preocupei com o mundo para além da neblina, como chamamos as terras ao qual pertences.
Quando alcancei esta idade, entretanto, algo extraordinário aconteceu. Não aquele tipo de extraordinário que nos tira do eixo, ou como tantos outros episódios que permearam minha vida. Acredito que existem situações que são capazes de nos mudar por completo, por mais simplórias que elas sejam aos olhos do mundo. A visita, feita na presença de minha mãe e irmã, ao vilarejo de Kajary foi este marco.
Conheces bem os teus domínios. É quando eles findam que os meus começam. A Floresta Cinzenta contém mais que as árvores que lhe deram nome, existe aqui cidades e abrigos que às vezes mergulham na própria terra e a saúdam com vida e glória. Nossos domínios se estendem das fronteiras com Morat, ao Leste, até as montanhas de Candire, onde principia Gamora, a Terra Esquecida. De todas as porções de terra que me cabem governar hoje, uma ilha em particular se destaca: Hechalean. A maior das ilhas que envolve Ealin.
Uma vez, muitos anos atrás, os teus costumavam morar nesta ilha. Creio que ainda recordes do estreito que a separa do resto de Ealin, aquelas águas calmas e rasas ao sul. Houve um tempo que uma ponte nos ligava. Jamais descobrirei como ou sequer onde ela costumava ficar, mas há certa metáfora em saber que ela foi destruída pelo tempo, ou pelas intempéries. Assim como a Cidade dos Visitantes foi destruída pelo fogo; aliás, foi os escombros desta cidade que mudaram minha mente.
A memória daquele dia ainda é vívida. Eu tinha quinze anos e era tempo de Aghair. Por assim sê-lo, os ventos sibilavam por entre as árvores, fazendo coro ao som das marés chocando-se com a costa. O céu estava claro e o sol era forte, os raios perpassavam as folhagens e deixavam cada recanto da floresta em tons esverdeados e vivos.
Minha mãe seguia na frente, fazendo com que eu e minha irmã a seguíssemos. O caminho, feito tantas vezes em direção a Kajary, parecia tomar contornos desconhecidos. A visita era incomum, tanto pelo lugar quanto pela ausência de outras fadas. Quando pousamos, nos limiares das árvores, apenas podíamos ver cinzas, troncos queimados e musgo a recobrir os cacos de uma cidade. Franzi a testa, não era a primeira vez que admirava o fantasma da Cidade dos Visitantes, todavia, não compreendi o motivo de vê-la àquela altura.
Os pensamentos eram ofuscados com as possibilidades, até então eu supunha que meu pai morrera em tal incêndio e que isto explicaria a ausência e a hesitação em Ryona mencioná-lo.
— Mãe, por que nos trouxe aqui?
— Não chame nossa mãe assim, Rosa — repreendeu-me Nátira. As anciãs não gostavam quando chamávamos Ryona por outra coisa senão seu título. Todavia, ela sempre pareceu apreciar quando eu a chamava assim e eu gostava de esquecer o título por um instante.
— Você mesma acaba de dizer que ela é nossa mãe — rebati com calma.
— Sim, mas antes ela é nossa rainha!
Uma alegoria me passa a mente agora. Nátira sempre foi, de nós, a mais apegada aos costumes. Ela escutava às antigas fadas como quem bebe águas doces após longos dias à deriva no oceano. Sempre foi menos disposta a romper tradições e questionar. Nossas brigas comumente começavam por estes conflitos de pensamentos e culturas. Em algum ponto, culminavam na acirrada competição pela coroa, não recordo em que momento deixei de desejá-la, ou se um dia cheguei a querê-la de fato, porém fosse por este ou qualquer outro motivo eu e ela vivíamos em uma eterna disputa. O prêmio para a ganhadora era incerto, ainda assim nenhuma cedia aos desejos da outra.
— Meninas, não briguem. — Nossa mãe interrompia nossos conflitos com a mesma agilidade com a qual batia suas asas. Havia sempre um sorriso nos lábios cansados, mas sua voz firme era o suficiente para que nos calássemos. Ela voou até o que deveria ter sido uma praça, sendo seguida por nós duas. — Este lugar costumava ser o mais vivo dentro da Floresta. Havia homens e fadas, convivendo em harmonia.
— Era aqui que nosso pai morava? — perguntei, sentindo os olhos de Nátira me fulminarem.
Ryona se voltou para nós ao pousar, esboçando um sorriso triste e distante. Creio que aquela foi a primeira vez que vi como os anos afetavam minha mãe. Diferente de muitas fadas, a rainha envelhecia, as rugas adornando seus olhos claros e o rosto mostrando como os anos lhe eram gentis e cruéis ao mesmo tempo.
— Era, Rosa. Mas seu pai morreu antes do incêndio, ele sequer conheceu vocês duas. — Ela nos levou para uma campina afastada da cidade, de onde todo o caos ainda podia ser observado. — Vocês sabem o que aconteceu aqui? — perguntou com os olhos fixos em Kajary.
— Houve um incêndio, anos atrás. Matando quase todos na calada da noite. — Nátira foi ágil ao responder.
— O que causou o incêndio?
— N'amach — murmurei apontando com o rosto na direção sudeste, onde costumava ficar a terceira fonte, não muito distante do lugar. — Alguém usou a fonte para causar destruição. Uma faelin.
— O que vocês sabem sobre ela?
As perguntas pareciam vir como se participássemos de alguma aula. Ryona tinha os olhos de quem sabia todas as respostas, mas preferia que lhe déssemos cada uma delas.
— Nada. Só que não devemos confiar em uma fada sem asas. — Nátira retrucou, em seguida falou baixo, como se o que dissesse fosse um imenso e tenebroso segredo. — Os homens as chamam de bruxas.
— Quem disse isto?!
Até aquele momento, eu jamais tinha presenciado tamanho desgosto nos olhos de nossa mãe. Seu tom agudo, surpreso e ferido não poderia ser ignorado. Não acredito que o sentimento estava dirigido a nós, mas Nátira recuou com a reprimenda sutil.
— As anciãs nos disseram, mãe — eu respondi rapidamente, notando o silêncio de minha irmã. Trocamos um olhar com a pequena mentira.
Os boatos chegaram até nós por acaso, em uma de nossas idas às cidades limítrofes. Nós sabíamos que anos atrás uma bruxa saíra da Floresta, era uma faelin. Ela subjugara vários homens e os levara para o norte. Para além das montanhas de Candire, para as terras desconhecidas de Gamora.
Nátira não contrapôs o que eu disse, ela sabia, como eu, que nossa mãe não deveria se preocupar com o que ouvíamos, sequer com as pequenas aventuras de nós duas. Ryona nunca chegou a descobrir, ou pelo menos assim acredito, que eu e minha irmã íamos aos limites da Floresta, observar a rotina do teu povo.
Confesso que o fascínio era todo meu, porém Nátira insistia em não me deixar sozinha, chamava-me de irresponsável e tola por querer chegar tão perto. Talvez, admito, ela tivesse razão. Porém assim aprendíamos mais do que se escutássemos apenas as anciãs, descobríamos costumes que elas jamais nos diria – talvez por não conhecê-los – e víamos como a realidade era diferente dos ensinamentos passados.
A rainha suspirou, colocando as mãos em nossos ombros. Os olhos dela, de tons indescritíveis e profundos, nos encararam.
— Não escutem essas bobagens. Existem faelins que são boas, neste vilarejo algumas morreram querendo até mesmo nos salvar.
— Todas morreram? — eu perguntei, incapaz de tirar os olhos das ruínas.
— Nem todas — respondeu. Atraindo meu olhar para o seu rosto. — Mas a maioria sim. Sabem como as faelins nascem?
Negamos com acenos silenciosos de cabeça, enquanto procurávamos, eu e Nátira, a resposta uma na outra.
— Elas são filhas de fadas que, pelos mistérios de Ban'dir, nasceram sem asas. São nossas irmãs e devem ser tratadas assim. — Os olhos de Ryona pareciam reluzir quando nos encarou, acariciando nossos rostos, tinha uma mão em cada uma de suas filhas. Ainda posso ouvir seu riso sábio quando proferiu: — E às vezes, irmãs brigam.
As asas furta-cor de minha mãe se abriram, enquanto seus olhos fitavam os céus. Imitamos o gesto, sabendo que ela iniciaria um voo que deveria ser seguido. Antes de se impulsionar, entretanto, ela nos olhou uma última vez por cima de seu ombro e disse:
— As anciãs ainda possuem conceitos muito arcaicos. Coisas que deveriam ter sido esquecidas após o primeiro acordo. Não permitam que estes preconceitos manchem quem são.
Não sei por qual motivo me ponho a narrar esta cena. Talvez para explicar-lhe, com as palavras daquela que me guiou no mundo, um pouco do que somos e dos detalhes intrínsecos ao que somos e a como éramos, eu e minha família, antes dos trágicos acontecimentos que sucederam pouco depois.
Ao voltar para Clanad, a cidade das raízes, separamo-nos. Ryona jamais conseguia ficar conosco tempo o suficiente. Naquele tempo suas funções como rainha exigiam dela mais do que me atrevo a imaginar. Acordos deveriam ser mantidos, bem como o bom relacionamento para com os outros seres da Floresta Cinzenta. Mesmo que os elfos estivessem sumidos nas entranhas de Ealin, ainda existiam as demais criaturas e tudo exigia a sua atenção.
Como toda criança que quer mais atenção de sua família, eu a julgava pela ausência, hoje entendo seus motivos.
Após nosso regresso, voei pela cidade sozinha. Eu tinha questionamentos a urrar na mente. A curiosidade sempre foi uma companheira, ainda mais nos momentos nos quais meus pés não tocavam o chão. Digo, ainda hoje, que voar é sinônimo de vida. Não há sensação que se compare ao vento em nosso rosto. Acredito que se soubesse o que me aconteceria, talvez tivesse deleitado mais e tido menos pressa em tais momentos. Mas isto são palavras saudosistas e nostálgicas, ditas por uma mente cansada.
É preciso dizer que nossas cidades vistas de cima sempre me parecerão mais belas. Clanad, caso não lembres, parece apenas um vilarejo espaçoso e bagunçado perto de tuas cidades, se vista do chão. Há poucas pedras, muito musgo. As árvores, tão antigas quanto o próprio tempo, competem entre si a fim de tocar as nuvens. Como sua alcunha sugere, as raízes saltam do solo, mergulhando em meio a finos córregos, tão pequenos que sequer nos damos o trabalho de mapear. Muitas delas se emaranham em construções simples, aparentemente soltas nos troncos robustos.
Porém, quando no ar, vemos que as maiores raízes possuem escadarias e os caminhos que não existem nos chãos abundam em pontes de cipó e madeira. Existe também construções robustas, com uma biblioteca – modesta se comparada a tua – e uma santuário de pedras azuladas, retiradas do fundo Bea'la para homenagear Ban'dir. Sei que recordas do rosto sereno da imagem da Grande-Mãe, talhado na árvore, e modo protetor como os galhos parecem abraçar as estruturas construídas sobre suas raízes.
Acredito que por esta ser uma cidade construída e habitada por aesyrs, nunca houve preocupação com entradas terrestres. Todavia, nos últimos anos, as primeiras rotas nasceram e com elas algumas casas se apoiavam no chão. Ainda assim são poucas, creio que ainda hoje eu possa contá-las nos dedos das mãos.
Em meu voo baixo, eu buscava uma destas raras construções. Sempre que possuía alguma dúvida, buscava a dona da morada de seixos creme, repleta de musgos nas paredes e cogumelos a nascer na soleira da porta.
— Tyla? — chamei ao entrar. O som de minha voz ecoou nos meus ouvidos, as estantes, cheias de pergaminhos e anotações, permaneciam incólumes com teias de aranhas a prendê-las no lugar.
Por um momento, pensei em sair, achando clara a mensagem da sábia. Tyla costumava ser de um temperamento ambíguo, sua inteligência ímpar dava-lhe ao mesmo tempo docilidade e impaciência, pinceladas com um desprezo pontual aos invasores. E sim, sabes que ao falar nestes termos me refiro aos homens.
Então a figura pousou na minha frente, fazendo uma mesura sutil e me levando a rir discretamente diante daquilo. A pele azeitonada brilhava com a luz amarelada da vela em sua mão, mas seus olhos, escuros e gentis, tinham brilho mais intenso. Os cabelos cortados pouco acima da nuca sacudiram quando ela franziu o cenho e sacudiu a cabeça em desaprovação. A face, aparentemente tão jovem, escondia uma sabedoria secular. Ela bateu as asas, de um tom anil, uma única vez e me encarou ao pousar.
— O que faz aqui?
— Tenho uma pergunta — disparei, antes que ela me expulsasse de sua casa. Às vezes, a fada de idade indeterminada era extremamente doce e paciente, noutras, parecia estar em seu próprio mundo. Pelo olhar que me deu e a sobrancelha ligeiramente arqueada, não duvidei em nenhum instante que ela desejava que eu fosse embora. Todavia, eu sempre fui insistente, ou teimosa, se a palavra lhe cai melhor assim. — Por que minha mãe envelhece quando outras, como você, permanecem imutáveis?
Ela demorou a me responder, talvez me analisando ou talvez apenas buscando palavras. Com um suspiro, deu de costas e voou rapidamente até um primeiro andar de sua morada, onde uma mesa repleta de livros se destacava como única mobília. A lua entrava pela janela, com sua luz prateada destacando alguns símbolos nos papéis. Tyla pegou um pergaminho, desenrolou-o e soprou a poeira sobre ele.
Era um mapa, antigo e repleto de falhas. O mapa ilustrava apenas a ilha de Hechalean, esperei que ela dissesse algo sobre ele, porém, ao invés disto, ela deu um suspiro cansado.
— Foram os homens — proferiu com calma. — Desde que Trisha se apaixonou por aquele rei e teve nossa rainha, a linhagem nunca mais foi a mesma.
A mágoa ecoou com sua voz, seus olhos marejavam.
— Eu não entendo...
— Claro que não entende! Você e a rainha não estavam aqui para presenciar. Vocês são fruto destas paixões proibidas, que Ban'dir me impeça de viver tamanha desgraça — Tyla ralhava com aspereza. Então fechou o punho sobre o mapa e respirou fundo, acalmando-se com os olhos fechados. — Perdoe, princesa. Eu não blasfemo contra você ou contra a rainha. É que eu vi e vivi a época antes da chegada deles. Nossos vales eram tão mais férteis, podíamos voar por toda a ilha sem nos preocupar com caças ou com a morte.
Seu rosto exibiu um sorriso repleto de saudades, parecia evocar memórias antigas. Estava prestes a me retirar em silêncio quando ela abriu os olhos. Caminhou devagar até sentar-se sobre uma raiz e ser iluminada pelo brilho da lua.
— Não deveria perguntar a mim. Pergunte à rainha esse tipo de coisa, acredito que ela tenha uma outra visão de tudo, mas falarei o pouco que sei. Acredito que conheça a história de como eles chegaram em nosso lar. — Não respondi, apenas aguardei que ela prosseguisse e assim o fez. — Depois que os barcos atracaram houve conflito, sangue, muitas aesyr perderam a vida. Eles nos ofereceram a paz, depois que tinham devastado tudo. Um acordo por um casamento.
O modo como a palavra escapou de sua boca me disse o quanto ela repugnava aquilo. A boca franziu-se levemente em uma careta, enquanto a sábia cruzava os braços à frente do corpo.
— Trisha se sacrificou por todas nós, abdicou da liberdade, de viver na Floresta para ir para as cidades deles. Dele...
— Ele quem?
— O antigo rei, não o pai deste rei, o outro. O conquistador, Albert Marcet.
— E o que houve com ele?
— Foi morto — respondeu com um suspiro e juro ter visto um sorriso mínimo em seus lábios. — Traído pelo próprio povo, para que os Morat assumissem. E isso fez com que Trisha voltasse para cá, buscasse abrigo entre nós. Como recusar depois de tudo o que ela tinha feito por nós?
— Depois disso, ela teve minha mãe...
Não havia sido uma pergunta, tampouco as palavras saíram com entusiasmo. Eu apenas as tinha dito, reflexiva.
— Sim.
Sua resposta foi dita pouco antes de eu sair. Tyla havia me deixado com mais interrogações na mente que pontos amarrados. Eu voei novamente por Clanad, desta vez em direção à minha casa. Talvez, majestade, ainda recordes dela. Assim como a de Tyla, ela se apoia no chão, parecendo ser feita de raízes enroscadas ao redor de um vão vazio. Eu corri pela casa, sempre apertada demais para se voar, e alcancei o modesto primeiro andar pela escada no canto da parede.
Uma pequena curiosidade que apenas muitos anos depois fez sentido para mim: nossa morada era a única com uma escada.
— Mãe? — chamei, incerta, torcia para que Nátira não estivesse em casa, minha irmã jamais gostava de minhas perguntas.
A rainha estava de costas para mim quando a vi. Debruçada sobre uma mesa com a luz da janela a iluminar o papel. Ao ouvir minha voz os, seu rosto virou em minha direção, os longos cabelos acobreados caindo por seus ombros tal qual uma cascata, o rosto tão símile e tão distinto do meu ao mesmo tempo. Então os enigmáticos olhos azuis me fitaram, inquisidores. Pareciam lagos no solo que começava a se dobrar. Hoje, havia rugas de expressão manchando sua testa, seus lábios e ainda que seus olhos estivessem estreitos nunca deixava de me perguntar se eles não eram capazes de ler a alma.
Antes que pense que ali jazia um exemplo de mãe, informo que há um terrível equívoco. Não que fosse péssima mãe, mas sempre havia sido melhor rainha que isto. Eu não deixava de admirar seu esforço, sua dedicação e sua teimosia ao permanecer no posto quando, claramente, diversas outras queriam ocupá-lo.
— Diga, Rosa — pediu, com o mesmo tom que sempre nos falava; extremamente cordial.
— Por que somente algumas fadas envelhecem? — disparei a pergunta, ainda eufórica da corrida e da conversa com Tyla.
Ryona me olhou com um sorriso, um daqueles raros destinados somente a mim ou a minha irmã e se aproximou, erguendo-se da cadeira onde anotava algo sob uma luz tênue e bruxuleante e me analisando com calma. Sempre tive a sensação que ela conseguia desvendar todos os meus mistérios com seu olhar.
— Daqui a dois anos completas dezessete — falou com um suspiro. — Tu e tua irmã... Sabes que paramos de envelhecer a esta idade não é?
Acenei afirmativamente, ansiosa por ouvir o resto. De fato, a maior parte das fadas permanecia com faces juvenis, exceto por um punhado, a exemplo de minha mãe, que sentia cada mudança, cada lua passando sobre si e levando sua juventude.
— Como bem sabes, cem anos atrás não existiam homens em Ealin e voávamos sem pudores por toda a extensão, do vulcão no Norte aos balneários no Sul. Os elfos ainda viviam na Floresta e as tínhamos paz entre todas as criaturas. Mas tudo mudou com a chegada dos estrangeiros... Bem, no primeiro contato, ambas as partes não se conheciam e alguns mais exaltados quiseram tomar a força o que sempre foi nosso. Foi nesta época que muitas morreram e aquilo foi uma terrível novidade. Éramos acostumadas a permanecer intocáveis por toda a vida e, de repente, houve morte e dor para todos os lados, sangue de nossas irmãs e de nossas amigas.
"Entretanto, diz-se que nem todos que concordavam com o tipo de dominação imposta e pouco a pouco os homens bons se aproximaram de nós, trazendo suas esposas e crianças, e o mais importante, uma oportunidade de parar o banho de sangue. Minha mãe e um elfo foram ao encontro deles para oficializar o acordo. Os povos élficos não gostaram do que estava sendo traçado. Ainda assim, a Primeira Rainha aceitou a aliança e se casou com o Primeiro Rei dos Homens, meu pai. Nós os ajudamos a construir Meryott..."
— Conheço o conto, mãe — retorqui, contrariada, aquela história nos era ensinada desde os primeiros passos e eu já a tinha escutado diversas vezes de diversas bocas.
— Eu sei, sgi; mas nem tudo pode ser contado de uma vez e também não posso começar uma história pela metade. Então espere mais um pouco, está bem?
Bufei em resposta, sentando impacientemente no chão enquanto ela caminhava para a cadeira e a puxava para mais perto.
— Continuando, nós os ajudamos a construir Meryott, mas até então Trisha não sabia o que era casamento, tampouco ele havia sido celebrado. O acordo vinha sendo mantido sem que fosse oficial, nós não havíamos concordado com nada. Nós não imaginávamos o que era isto. Casar. E antes de fechar aquela aliança tivemos que ouvir diversos homens e mulheres, na surdina, tentando compreender tudo, algumas coisas foram interessantes, outras nem tanto; mas logo ficou claro que era um ultraje a nossa cultura estabelecer um acordo que deixasse sua avó em posição tão submissa como é na cultura deles. Ainda assim, ela decidiu arcar com o fardo e como rainha disse que faria tal aliança, contanto que do mesmo modo que os povos tratar-se-iam com igualdade, o fariam também eles dois.
"Pelo que contam, a reação de seu avô foi icônica, ele riu, alto, na frente de todos e a provocou com um sussurro. Dizem que sua avó ficou tão vermelha quanto a cor que tem seu cabelo, Rosa, e por instinto lhe estapeou com imensa força. O seu avô continuou sorrindo e disse que criatura tão indomável e bela seria sua esposa mesmo que isso lhe custasse a vida. Ao que se sabe ele demorou a conquistar sua confiança e ainda mais a conquistar seu amor e fidelidade. Mas ambos os reinos precisavam da segurança de um tratado antes que algum massacre começasse, a rivalidade estava piorando, entende? Os dois se casaram e durante muitos anos reinaram juntos."
— Eles foram felizes?
— Durante algum tempo, acredito que sim — minha mãe parecia distante, perdida com os olhos a admirar um ponto infinito. Ela deu um longo suspiro e prosseguiu: — Mas nem todos estavam satisfeitos com a aliança. Eles, os homens, não aceitavam uma aesyr como rainha, quiseram nos converter ao seu deus e Trisha não permitia que isso ocorresse. Foi no ápice de toda a confusão que eles armaram para Albert e o mataram. Trisha fugiu para cá e quando chegou aqui descobriu que estava grávida. Ninguém jamais tinha visto caso semelhante e foi por uma visão de N'firyn, durante a gravidez, que minha mãe descobriu a quarta fonte.
— Achei que só existissem três.
— Porque a quarta só abre a cada 21 anos. Dela nascem as águas de Bae'la, um dia você a conhecerá. Ela nos permite abdicar da dádiva da imortalidade e os anos passam a correr normalmente para nós, como correm para todas as raças de Ealin. Minha mãe abdicou da imortalidade por não haver sentido de viver para sempre sem o meu pai. Ainda assim ela viveu o suficiente para passar seu legado a mim.
— Mãe, por que você foi à fonte? — perguntei.
Ryona deu um sorriso tristonho e respondeu, no seu típico tom, acariciando meu rosto com uma mão.
— Assim como minha mãe antes de mim, eu vivo apenas para passar meu legado à próxima rainha. Ninguém pode reinar para sempre, Rosa.
— Mas... mãe! Assim você vai morrer! — exclamei, abraçando-a. Raramente a abraçava, mas naquele instante eu sentia a necessidade de fazê-la eterna, de prendê-la ao nosso lado. Sua mão tirou o cabelo de minhas costas delicadamente e ela ergueu meu rosto para o seu.
— Só se morre de verdade quando nada do que se faz tem valor. E olhe só para você! Olhe para Nátira! Há algo mais do que eu possa me orgulhar? Uma das duas será rainha em breve e ambas são tão cheias de qualidades que não sou capaz de escolher.
— Eu não quero ser rainha — falei baixinho, para mim mesma. Acredito que era a primeira vez que o admitia em voz alta. De alguma forma ela escutou, com aquela onisciência que possuem as mães.
— Talvez por isso seja uma rainha excelente. — Ela riu.
Ficamos naquele abraço tempo o suficiente para eu ainda sentir seus braços ao meu redor cada vez que fecho os olhos. Acredito que a partir daquele momento algo mudou. Aquele tipo de algo que não se consegue pôr em palavras, afinal, eu pensava, a todo momento, o que poderia ser tão sublime ao ponto de fazê-la abdicar de uma vida eterna, que sentimento era este que a compelia a desejar voltar à Ban'dir.
Se antes tinha curiosidade de entender a neblina e o que havia depois dela, nesse instante a curiosidade se tornou quase uma obsessão.
Em dois anos, tentei reunir toda a informação que podia sobre teu povo, tão fisgada pela curiosidade que me dominava os pensamentos que as horas e os dias passavam em piscares.
No meu último aniversário, entretanto, tudo mudou.
Não é costume nosso comemorar o tempo que estamos aqui, todavia a décima sétima passagem sempre é homenageada. Há alguma música, alguma comida, pequenas extravagâncias, o suficiente apenas para que a rainha se enchesse de orgulho – de mim e de minha irmã.
Imagino que fique a sensação que aquele dia foi especial, único, do tipo para ser lembrado em décadas e não posso negar, de fato, foi assim.
Porém não pense que foi pelos brindes, pela música, pela dança. Tampouco foi pelo marco e pela festa.
Há memórias que, quando gravadas, apenas desejamos esquecer. Meu último aniversário foi exatamente assim.
Afinal, que filha quer lembrar que foi responsável, direta ou indiretamente, pela morte de sua própria mãe?
Espero que perdoe minha interrupção abrupta desta carta, mas sou incapaz de prosseguir.
Afinal, eu a amava, tinha por ela um espelho, um guia. Então, naquela noite, perdi mais que minhas asas, perdi também o chão.
Para sempre,
Da tua Rosa.
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Nota da autora: Prestem atenção às datas tanto das cartas quando da narrativa. Eu sei que é complicadinho, mas a narrativa tem um funcionamento diferente. Beijos!
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