Prólogo

      O cortejo adentrou os muros de Asgard e se apresentou diante de Odin, o Pai de Todos. Sentado em seu magnífico trono de Hlidskjalf, ele observou, com seu único olho, a garota que Thor havia trazido algemada de Jötunheim, a terra dos gigantes. E sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

      A prisioneira era uma bela jovem de cabelos ruivos, aparentemente com apenas 18 anos. O olho direito dela era azul, e o esquerdo, de um vermelho incandescente, vivo e selvagem. Uma grande cicatriz descia de seu supercílio esquerdo até a boca, que era carnuda. Sua roupa era toda preta; usava botas de couro que lhe passavam dos joelhos.

      Ela encarou o Pai de Todos com um ar desafiador e respeitoso ao mesmo tempo, e sorriu, mostrando dentes brancos e perfeitos.

      Thor, o deus do trovão, se desagradou de tal gesto de puro atrevimento. Sacou sua espada e num golpe forte, bateu com o dorso da lâmina na parte de trás das pernas da ruiva, obrigando-a a se ajoelhar perante Odin. Ela deixou seus olhos encontrarem os do belo e musculoso æsir e fuzilou-o com uma rajada de ódio. Era o máximo que podia fazer.

      Os demais palacianos riram por verem quebrada a empáfia da filha de Loki e o Pai de Todos fez sinal com a mão para que se calassem.

      Thor se aproximou de sua bela esposa Sif, Cabelos de Trigo, que usava uma armadura completa, e beijou-a. A bela deusa de cabelos dourados era uma notável guerreira e exímia arqueira, e ajudou seu esposo e seu cunhado Tyr na captura dos três filhos do deus da trapaça.

      Um sentimento de nojo invadiu o coração negro da jovem algemada, por ver aquela cena tão comovente, patética, de dois jovens apaixonados, que lhe esfregam na cara algo que ela nunca terá: o amor.

      Ela olhou para o teto do palácio. Para o trono de Odin. Para as colunas de sustenção, tão magníficas. Jurou que um dia, tudo seria seu.

      O Pai de Todos se aproximou dela, olhou-a atentamente, e apertou-lhe o queixo, virando sua cabeça para a direita e para a esquerda, lembrando um comprador que se interessa por um escravo. Tirando o olho vermelho e a grande cicatriz na face esquerda da moça, ele não conseguia ver nada que a desabonasse, e por um momento ocorreu-lhe que o oráculo lhe enganar, e ele cometera uma grande injustiça.

      Mas... E se não tivesse se enganado? E se aquela garota tivesse a chave da grande desgraça que se abateria por Asgard e por todos os nove mundos?

      Ela era cria de Loki, irmão de Odin por uma jura de sangue, com certeza devia oferecer perigo.

      Os dois irmãos dela também tinham sido capturados e receberam destinos específicos. Jörmungund, a grande serpente do norte, foi atirada no grande oceano cinzento de águas geladas, e crescia assustadoramente, serpenteando pelas fossas marinhas, devorando tubarões e baleias e provocando maremotos que varriam ilhas e arquipélagos. Era um dos monstros mais temidos pelos marinheiros. Fenrir, a Besta do Ragnarök e assassino das florestas, foi atado com correntes e teve sua garganta trespassada por uma espada, para que não pudesse estraçalhar ninguém.

      Mas a jóia de Loki desconhecia seu destino. Seria morta, decapitada por Thor? Ou trespassada por uma flecha disparada pela bela e selvagem Sif?

      Odin apertou-lhe o queixo com mais força, fazendo-a soltar um grunhido de dor, mas a expressão do soberano era serena, sem ameaça, um contraponto com a predisposição de Thor de cortar fora todos os membros da moça.

      O deus do trovão não confiava nela, achava prudente resolver tudo o mais rápido possível. Uma execução preferencialmente dolorosa, para servir de exemplo aos gigantes que ele sabia estarem disfarçados de asgardianos. Os mesmos gigantes, selvagens e ardilosos, que haviam abandonado os três irmãos.

      Mas Odin era pai de Thor, e somente ao deus caolho cabia decidir a sorte da ruiva.

      Um silêncio de morte pairava no imenso salão. Podia-se ouvir unicamente os sons das batidas dos corações dos æsires, ansiosos e aflitos.

      Odin quebrou o impasse.

      — Como se chama, menina?

      Ela sustentou seu olhar firme em direção ao de seu senhor.

      — Hel, majestade. Sua serva. — ela curvou o tronco com respeito.

      — Hum. Você é filha de Loki e de Aungboda.

      Não era uma pergunta.

      — Sim, meu senhor.

      Odin assentiu.

      — A sua aparência é de uma jovem muito bela, apesar dessa sua cicatriz. Parece uma chaga viva. Porventura dói? Algum dos meus guerreiros a machucou?

      Hel balançou a cabeça em negação.

      — Ninguém me machucou mais do que o destino, Pai de Todos. Esta chaga é de nascença. E este olho também.

      O ancião adentrou no íntimo do coração de Hel, aproveitando uma vulnerabilidade momentânea da algemada, e o que viu o deixou estarrecido. Sua alma corrupta estava repleta de ambição, sombras, asco e desprezo pela vida. Não havia nada de virtuoso nela. Ela nunca poderia ser admitida na sua corte. Era um monstro, como seus irmãos, oculto sob uma forma que não era dela.

      — Tenho uma última pergunta: você é viva ou um cadáver?

      Antes que o soberano terminasse a pergunta, Hel soltou uma risada procedida de um pigarro e de uma bolota de sangue expelida por sua garganta, ferida pelo soco de aço desferido por Sif.

      — Sou apenas Hel. Sou o que sou. Nem viva, nem morta. Mas eu gosto da morte e dos mortos. Estes são melhores que os vivos. Os vivos sentem nojo de mim.

     — Que tolice! Por que sentiriam nojo de vossa pessoa?

      Hel desfolhou seu sorriso mais malicioso, permitiu que o Pai de Todos visse sua aparência original e o que o ancião viu causou-lhe repugnância.

      A reação inesperada do velho fez com que lanças com cabo de freixo apontassem para a cabeça da moça, que suspirou entediada.

      — Não! Guardem suas lanças! — o velho esbravejou.

      Assim dizendo, virou as costas para sua "sobrinha" e voltou para seu trono, ao lado de sua esposa, Friga.

      — Decidi seu destino, jovem Hel. — ele principiou em tom solene. — Tu governarás o mundo dos mortos, para onde vão todas as pessoas que morrem desafortunadamente. De velhíce ou doenças ou envenenamento. Os guerreiros que morrerem bravamente em combate cearão conosco no Valhala, comerão carne assada e beberão do bom hidromel, e serão meus convidados. Mas os mortos sem luta são bastardos, e serão súditos de Hel. Não poderão pisar no Valhala.

      Thor e Sif se indignaram e avançaram em direção ao trono.

      — Isso por acaso é uma afronta a nós? — o deus do trovão elevou sua voz, fazendo-o ecoar pelo salão. —  Arriscamos nossas vidas para capturar essa vadia e o Pai de Todos  dá-lhe um reino para governar?

      — Silêncio, Thor. Não admito que contestem minhas decisões.

      Alheia a discussão acalorada entre os consortes e o deus supremo de Asgard, Hel sorriu. Um sorriso cruel, evidenciando suas intenções homicidas.

      Depois de ser jogada no mundo dos mortos, a entidade sombria passeou em meio às lápides, sepulturas dos corpos dos desonrados. Era um mundo de névoa, escuro e sem estrelas, sem contagem de tempo. As árvores eram secas, com galhos retorcidos que lembravam garras de monstros. Em volta do grande cemitério, montanhas íngremes repletas de espetos brotando do solo gelado sem uma única planta. O vento soprava com força, e agitava os cabelos cor de fogo da rainha da desolação.

      Hel caminhou durante milênios por aquele mundo podre. Viu abismos, vulcões, pássaros monstruosos sobrevoando o céu sem luz, aspirou o cheiro de podridão exalado pelos cadáveres recém atirados e pisou em pilhas de ossos, esqueletos.

      A jovem chegou a uma ravina, um buraco profundo cavado na terra cujo fundo não podia ver. A qualquer humano ou deus, a visão daquele abissal despertava medo. Mas à filha de Hel, era apetecível, e um sorriso lhe surgiu na face sombria.

      Ela lembrou-se do dia em que fora capturada por Thor e por Sif. Como podia esquecer da humilhação que lhe imputaram? Algemada e presa por uma coleira, viu os dois nus, fazendo amor na sua frente, como dois devassos. Fez todo o caminho, de Jötunheim até Asgard, puxada por uma corrente unida a sua coleira e a dela do cavalo selvagem montado por Sif, e os aldeões das vilas riam ao vê-la subjugada. E na antesala do Palácio de Inverno, recebeu de Thor socos no estômago.

      Ódio. Era tudo o que podia sentir.

      O que havia feito, para ser arrancada de sua terra e jogada naquele local sujo, podre e fétido, junto de ossadas e fantasmas? Ser cria de Loki era motivo para uma maldição eterna?

      — Hei de me vingar. — ela promete, apertando os punhos e trincando os dentes.

      E esgueirando-se para a abertura do fosso onde caiam as almas recém separadas de seus corpos, Hel estendeu os braços, os cabelos balançando ao vento, e um grito explodiu de sua garganta.

      — Levantem-se, ossos ressequidos, e curvem-se diante de sua rainha!

      Assim dizendo, um rugido irrompeu do buraco, como o rugido de um dragão. Fagulhas de fogo saltaram para fora, e os esqueletos, ao serem tocados, ficavam em pé, como que retornando à vida. Ossos de homens, mulheres e crianças, outrora tombados em vergonha, marchavam de todos os cantos do mundo tenebroso em direção à filha de Loki, que emanava uma aura fantasmagórica e emitia palavras num idioma ancestral

      Quando o fosso cessou de expelir fogo, Hel virou-se para trás e viu com alegria que todos os esqueletos do Tártaro se curvavam diante dela. Muitos estavam com trincas nas costelas ou com dentes faltando. Mas eram seus súditos fiéis.

      — Marchem em direção a Asgard e destruam tudo o que encontrarem pela frente!

      Depois desse ciclo, um grande inverno glacial se abateu sobre os nove mundos. As folhas da Ygdrasill, a árvore do mundo, caíram, e seus galhos se quebraram com o peso da neve. Midgard, o lar dos humanos, enfrentou a fome, porque o sol foi devorado por Fenrir, o lobo assassino, impossibilitando a vida.

      As nevascas impossibilitaram a chegada de alimentos às aldeias próximas a Asgard, ocasionando saques e assassinatos. Mas ainda não era o fim.

      Heimdall, o Observador, viu da ponte Bifrost drakkares  se aproximando de Asgard. Os tripulantes desses navios eram guerreiros com armaduras negras e brilhantes e usavam capacetes com máscaras inteiras com rosto de caveira. Por cima da armadura, tinham mantos negros.

      Ele nada pôde fazer para alertar os æsires. Ao aportarem na praia, os guerreiros de armaduras negras correram em direção à grande muralha erguida repelir os ataques dos gigantes e puseram-na abaixo com aríetes.

      Uma chuva de flechas caiu sobre os exércitos invasores, que para horror dos deuses, não sentiam nada.

      Então, o banho de sangue se iniciou.

      Os deuses caíram um por um diante dos mascarados. Mortos por decapitação ou estripados pelas lâminas afiadas dos invasores. Tyr, o deus da guerra, atingiu a máscara de caveira de metal de um deles, partindo-a ao meio. Arregalou os olhos acinzentados ao constatar que o rosto de seu oponente era uma caveira de verdade.

      Mortos vivos, ele murmurou.

      Em meio aos guerreiros, Tyr notou um que não usava máscara. Era um guerreiro que retalhava deuses unicamente com suas garras afiadas como adagas e avançava deixando atrás de si corpos divididos ao meio.

      Era o lobo Fenrir, em sua forma humana. Um homem alto e esguio, com cabelos negros e compridos amarrados num rabo de cavalo. Os olhos dele eram verdes, e furiosos, como os dos lobos famintos.

      Tyr fez menção de correr até o irmão de Hel para intercepta-lo, mas seu descuido lhe custou caro. Uma lâmina afiada cortou sua carne e um grito de dor ecoou pelas montanhas cobertas de neve.

      Do topo de uma colina, um par de olhos perversos observava por meio de uma luneta o banho de sangue dentro dos muros destruídos de Asgard. Usava uma armadura negra igual a dos demais guerreiros da horda, mas uma bela cabeleira ruiva aparecia abaixo do capacete, dando-se a conhecer como uma mulher. Era Hel. Com o rosto oculto sob a máscara de caveira, sorria diabólicamente por ver seus captores sendo extintos.

      Fenrir prosseguiu retalhando e decapitando todos os que apareciam em seu caminho. Num instante, eram vivos. No outro, cadáveres sem braços ou pernas, ou cortados ao meio.

      O lobo transmutado em homem fez a porta de um aposento em pedaços e adentrou. Viu um berço todo ornamentado em ouro. Dentro dele, alheia e inocente ao mașsacre lá fora, dormia um bebê. Era a filha recém nascida de Thor e Sif.

      Fenrir lamentou que os deuses consortes estivessem ausentes, combatendo trolls no leste ( e portanto, não faziam ideia do que estava acontecendo em Asgard). Seria ótimo mata-los com suas garras afiadas. Doia-lhe no coração ver famílias separadas. Mas um assassino não escolhe sua vítima, e esta pode ser um bebê.

      Ele fez crescer suas   suas cinco garras afiadas, lançou-se para frente à toda carga e desferiu um golpe contra a menina. As garras que retalhavam aço não encontraram nenhuma resistência, o que enchia o lobo de orgulho.

      Porém, ao reparar bem, Fenrir viu que atingira um simples travesseiro.

      A criança não estava ali! Mas como? Bebês conseguem se teleportar?, perguntava o cérebro irracional do irmão de Hel.

      Ele aspirou o ar, inflando suas narinas, olhou para trás, e então entendeu. Um homem de cabelos castanhos, olhos negros e rosto delgado carregava a pequena deusa. As feições do guerreiro eram belas e ferozes ao mesmo tempo. Uma espada com empunhadura esculpida em arte descansava em sua bainha.

      Fenrir soltou um rosnado, adiantou um passo em direção ao jovem que estragou sua diversão.

      — Ulrik! Desgraçado! Não interfira!

      — Não vou deixar que machuque a deusa Thrud. Tente e vai morrer.

      Você é um semideus. Não tem força suficiente para lutar comigo.

      Ulrik deu um sorriso desafiador para a fera e levou a mão esquerda ao cabo da espada, aguardando o momento oportuno para saca-la. Com o braço esquerdo, segurava a criança contra o peito. A menina abriu os olhos, mostrando um par de olhos azuis doces e inocentes, rendendo o guerreiro a um sorriso amoroso e protetor. O rosto delicado dela tinha algumas sardas pontilhando seu nariz.

      Era filha de Thor, mas puxou o rosto lindo de Sif.

      — Vai mudar de idéia. — o rapaz assumiu uma postura de ataque.

      A fúria se apossou de Fenrir e o impeliu ao bote. Como um predador violento e fortíssimo, lobo devorador de homens nunca errara uma presa. Não seria Ulrik o primeiro a escapar de suas garras e presas afiadas; afinal, ele era só um semideus.

      Os dois contendores se estudavam calmamente, buscando brechas. Tentando encontrar pontos desguarnecidos no corpo um do outro. Um ponto cego.

       Ulrik lamentou que Asgard estivesse sendo destruída. O fim estava se consumando. Mas ele era um guerreiro, e seu instinto de casta o empurrava para o combate, mesmo que o oponente fosse mais forte. Protegeria a pequena Thrud até o fim.

      Fenrir mirou a jugular do guerreiro, seu único ponto desguarnecidos, e quebrou o impasse, tomando a iniciativa do ataque.

      Então, Ulrik sacou a espada.

                                ...

      Ao final do que ficou conhecido como a Extinção de Asgard, o Palácio de Inverno foi conspurcado e profanado por entidades sombrias e horrendas. Cadáveres jaziam nos corredores, no passadiço e nas torres de vigia.

      A noite eterna se abateu sobre a morada dos deuses, anunciando uma era de escuridão e medo. Os lobos, quase mortos de fome, uivavam alto olhando para o céu cinzento do qual caia a nevasca enregelante.

      Dentro das ruínas do palácio, Hel caminhou graciosamente em direção ao trono que outrora pertencera à seu tio. Seus guerreiros a observaram, respeitosamente curvados. Ela usava a armadura negra, com o capacete e a máscara, e os retira, assim que se senta no trono. Fenrir, seu irmão, oferece-lhe a lança Gungmir e se alegra com ela.

      Agora, Hel é soberana de Asgard e do inferno.

                              ...

      No cimo de uma montanha, Sif contempla as ruínas de sua terra. Seu coração estava em pedaços, inconsolável. Lágrimas desciam de seus olhos azuis, e nada conseguia alegra-la. Não tinha mais sua filha. Já não era mais mãe.

      Thor a envolveu por trás num abraço. Beijou o rosto da jovem e bela esposa, mas esta não lhe correspondeu, tão infeliz se sentia. O deus do trovão era avesso a lamentos, mas sentia a falta de sua menina.

       Os dois se olharam, tentando buscar força um no outro para que continuassem a viver, para que seguissem em frente.

      Num ato de dor extrema, o filho de Odin tirou o martelo Mjölnir da cintura, girou-o com a mão direita, e soltando um grito de dor e raiva, atirou-o para longe. A arma desapareceu nos ares.

      Ela não podia cair nas mãos de Hel.







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