1 - Uma garota que não desiste de lutar
Rosário do Sul, dias atuais
Passei de fase do jogo que baixei do play store, e as pessoas se convencem de que sou uma aficionada por Killer Instinct, porque exibo um sorriso bobo, e vez ou outra solto um puta que o pariu. Minha mãe veio comigo, como sempre, e me dá uma reprimenda daquelas, me pedindo para parar de dizer palavrões dentro do consultório.
Ela não entende que para pessoas como eu, com restrição de movimentos, o celular e o computador são imprescindíveis, e que os jogos, vídeos de YouTube e livros de wattpad são uma fonte de cultura e conhecimento.
Olho para o relógio na parede, constatando com enfado que o médico está atrasado. Então… boto meus fones e ligo uma play list com músicas do Kiss.
Espero que o médico corte os corticosteróides e os inflamatórios que venho tomando há um mês para diminuir minhas dores. No fundo, acho que não será possível, já que sinto como se meus quadris não tivessem mais cartilagem. Cada passo que dou, me apoiando nas muletas, é como se osso esfregasse com osso.
Não suporto os efeitos colaterais que os remédios provocam em mim. Sinto ânsia de vômito, tontura e falta de apetite, e uma sensação de inchaço por todo o corpo. Às vezes acho as dores muito mais aceitáveis do que a vergonha de vomitar na sala de aula, porque não tenho tempo de chegar ao vaso sanitário e por tudo para fora. Tudo é difícil para quem tem os joelhos inchados e precisa de muletas para se movimentar.
Começo a viajar numa música, fazendo gestos de quem bate em pratos de bateria imaginária com baquetas imaginárias, até que sinto minha mãe dar um safanão em meu ombro, me fazendo abrir os olhos.
— O que eu fiz, mãe? — pergunto, tirando os fones.
— O médico te chamou, guria. — ela responde, atônita.
— Ah, tá. Tu me ajuda?
Minha mãe acopla as muletas de aço nos meus braços e me ajuda a me por em pé. Dou o primeiro passo, gemendo de dor, e já tenho a sensação de que minhas pernas frágeis não vão suportar meu peso. Levo mais de um minuto para ir do sofá da sala de espera até sala do médico. Se minhas pernas fossem boas, eu não levaria cinco segundos. Mas se minhas pernas fossem boas, eu não precisaria estar naquele consultório.
Fecho a porta atrás de mim, dou boa tarde ao médico, que é calvo e tem barba branca como sua roupa, e faço um verdadeiro e demorado ritual para ajeitar minha carcaça na cadeira à minha frente. Solto um gemido e sorrio.
— Como você está, Juliana? — ele pergunta.
— Estou com artrite reumatóide há três anos, com dores nos ossos. Uso muletas e sinto minhas articulações latejarem. E não posso andar a cavalo, coisa que eu mais amava. Ou seja, estou ótima.
Não vejo como não ser irônica. Minha doença não tem cura, e a tendência é que, com o tempo, eu precise ser empurrada numa cadeira de rodas para ter a liberdade de ir e vir.
O doutor assente, achando graça nas minhas palavras. Ele é um ótimo profissional. Atencioso. Brincalhão. Muitas vezes vim até aqui triste e sai rindo.
Sorrio novamente e olho em volta. Na parede atrás dele há quadros de certificados dos cursos de especialização que fez, alguns no exterior. Deve ser incrível poder conhecer outros países.
Qualquer coisa que as pessoas fazem é incrível, para mim. Tem dias que quero fazer uma coisa simples, como tocar o chão com as palmas das mãos e as pernas esticadas, coisa que eu fazia até os dez anos de idade, quando eu era bailarina.
Minha vida saiu da normalidade aos dez anos de idade. Deixei o balé porque, apesar de ser flexível, alongada e com en dehor, o hipismo era minha verdadeira paixão. Eu amava cavalgar, amava cavalos, amava tudo relacionado às equitação. Minha tia Idalina teve um ataque de choro quando contei que iria deixar o balé, porque ela sonhava que eu fosse para a Europa com a Danielle Răducan, a Princesa de Cristal, e me tornasse uma bailarina multicampeã como ela é. Mas quando passei a fazer parte da equipe feminina júnior de hipismo e conquistei vários torneios internacionais, ela se tornou minha fã número um.
Infelizmente, era só uma lembrança de uma época que não vai mais voltar.
— Amanhã é seu aniversário, não é? — ele arrisca.
— Como o senhor sabe?
— Na ficha dos meus pacientes tem a data de nascimento.
Claro, pensei. Óbvio.
— Quantos anos vai fazer.
— Tem a data de nascimento. Dia, mês e ano. Não quer chutar?
— Hummm… Dezessete anos.
— Sim, dezessete anos, mas com cara de oitenta. Acho que vou ganhar um andador de presente.
Hoje estou inspirada. O médico ri novamente e finalmente dá início ao exame.
Vejo ele rabiscar alguma coisa num bloco de notas. A letra é horrível, e sempre me perguntei porque profissionais da medicina escrevem tão feio e como os balconistas de farmácia conseguem ler os nomes dos remédios.
Aguardo ansiosa para que ele diga o que quero ouvir, mordendo meu lábio inferior. Faço uma figa, agoniada, como diante da tela de tv durante uma disputa de pênaltis entre o meu Grêmio e o argh! Inter.
Não vou ter mais que tomar esses remédios.
— Esse medicamento é mais forte do que o que está sendo tomado. São três comprimidos por dia, a cada oito horas.
Oi? Mais forte ainda?
— Pensei que eu ia poder comemorar meu aniversário sem estar dopada. — digo com tristeza.
— Sua artrite não estagnou. Avançou. Precisa de um remédio mais eficaz.
— Doutor, como paciente, tenho o direito de saber. Quais são os riscos que eu corro?
O médico solta um suspiro, e tenta manter a parcialidade.
— Há a possibilidade de você não poder andar, nem se sentar numa cadeira de rodas. Se as dores se intensificarem, terá de ficar acamada. Mas é uma possibilidade. Não quer dizer que é certo.
Solto um suspiro, desolada. Pego a receita da mão do médico, agradeço, me levantando com dificuldade, saio da sala e vou até o sofá onde minha mãe está sentada, lendo uma revista.
— O que ele disse? — ela pergunta quando já estamos dentro da Ecosport.
— Que vou ter que tomar uma fórmula mais forte do corticosteróide. E que pode ser que um dia eu fique deitada numa cama.
Começo a chorar, encostando minha cabeça no ombro da minha mãe, que acaricia meus cabelos lisos e louros.
— Isso não vai acontecer, minha filha. Tenha fé. Tudo vai dar certo.
Há três anos meus pais dizem que tudo vai dar certo. O que é esse tudo, que não faço idéia? Sou uma inválida, não consigo andar no corredor do colégio onde estudo sem atrapalhar os outros alunos, e ouço me chamarem de aleijada. Para pegar o ônibus, tenho que galgar os degraus sentada, porque não consigo dobrar as pernas sem que meus ossos doam, e quando atravesso a catraca, vejo os lugares especiais ocupados por adolescentes que ouvem funk no último volume sem fone de ouvido. E mesmo para fazer uma coisa simples, como xixi, é uma tortura.
Ter fé em que?
— Tu quer que eu te leve para tua casa?
Minha casa, a casa que Eduardo alugou para morarmos, costumava ser meu porto seguro, depois da aula. Somos o que as pessoas costumam chamar de amigados. Prefiro dizer que é união estável.
Sempre fomos um casal unido, com os mesmos gostos, cúmplices em tudo. Mesmo com as minhas limitações, saíamos quase todos os fins de semana, para churrascos nas casas de amigos ou barzinhos do centro de Rosário do Sul, que é uma cidade pequena do Pampa Gaúcho, mas tem lá seus locais de diversão.
Mas faz alguns meses que meu companheiro está calado e volta pra casa com um semblante abatido. Algo o aflige. Pergunto o que é ele não responde.
Em vez de ir para casa e esperar sentada pela volta do meu amor, decido pedir outra coisa.
— Me leva ao centro de equitação. Quero ver cavalos.
O carro atravessa a cancela do centro de treinamento, onde meninas de dezesseis anos treinam saltos com seus cavalos. Muitos destes são crias de raças caríssimas.
Rosário do Sul vai sediar um torneio com as modalidades salto, adestramento e cross country. Por isso há trailers e motorhomes nas imediações.
Desço do carro e vejo a Carla saltando com o Aristocrat, um puro sangue palomino, sobre um oxer. Tenho vontade de gritar e acenar para ela, mas não quero atrapalhar sua concentração, nem atrair para mim o olhar duro do treinador, o rígido Paulo Onório. No passado, ele foi meu treinador. E Aristocrat foi meu cavalo, antes de Carla recebê-lo.
Fico feliz que os dois sejam um conjunto altamente competitivo. Os dois ganharam vários prêmios, e são cotados para integrar a delegação olímpica de hipismo.
Imagino como seria se eu fosse uma garota normal. Sempre fui considerada uma amazona prodígio, técnica e arrojada. Diziam que se eu disputasse uma olimpíada, seria medalhista de ouro.
Se. A conjunção mais inútil que existe.
Carla e Aristocrat zeram o percurso sem cometer nenhuma falta, tirando um sorriso dos meus lábios secos por causa dos remédios.
Ela apeia do cavalo, afaga-lhe a crina e abraça-lhe o pescoço e passa a rédea para o tratador. Ao me ver, ela acena com os dedos e vem correndo ao meu encontro. Carla está usando um paletó preto, calça branca de montaria e botas pretas. Ao tirar o capacete, seu lindo cabelo louro surge. Ela é uma amazona linda. Tem olhos azuis escuros, um sorriso incrível e queixo arredondado.
— Não acredito que tu veio. Fiquei feliz agora. — ela sorri, me apertando num abraço.
— Queria matar a saudade daquele garotão. — aponta para o cavalo palomino. — E ver se tu tá cuidando bem dele.
— Estou, sim. Aristocrat e eu somos os melhores amigos do mundo.
Sorrimos uma para a outra.
Subitamente, a expressão da Carla entristece, como que com medo de dizer algo que possa me trazer tristeza. Seguro os dedos dela, olho para o chão, e digo um está tudo bem com o olhar.
— Não é justo, Juliana. Era pra tu fazer parte da equipe feminina júnior, se não fosse…
— Se não fosse isto aqui. — ergo minhas muletas. — Não era, Carla. Deus não dá asa à cobra.
— Mas ninguém cavalgava melhor que tu. Era seu sonho ser uma campeã olímpica. Tu treinou tanto.
Peço com um sinal para a loura não continuar. Somos amigas desde a infância, mas lembrar do que eu poderia ter vivido é como dar uma facada no meu peito. Se eu pudesse, queria esquecer que um dia montei um cavalo. Sou gaúcha, e nada é mais triste para uma filha dos pampas do que não poder cavalgar seu melhor amigo.
— Carla, amanhã…
— É seu aniversário! Eu sei. Às que horas é a festa.
— Não vai ter festa.
— Como não? Só se faz dezessete anos uma vez na vida. Tem que fazer um churrasco pra gente, tchê.
— O Eduardo não quer. Ele paga sozinho o aluguel da casa, só temos uma renda e não podemos gastar.
Carla faz um beicinho e acaba compreendendo. Conversamos sobre assuntos aleatórios, enquanto passeamos pelo picadeiro onde uma garota negra tinha treinado adestramento.
Me despeço da minha amiga com um abraço apertado e volto para o carro, onde minha mãe conversa ao telefone com meu pai.
— Vamos? — peço, enquanto afivelo o cinto.
Minha mãe me deixa em casa, e começo a preparar o jantar. Aprendi a cozinhar com minha avó, que era uma índia charrua. O tempero dela era infalível.
Esquento a água numa chaleira, tiro uma cuia de uma das gavetas da copa, ponho mate dentro e assento com a bomba; despejo água, e sorvo um gole.
Nesse instante, Eduardo entra e vou a sala aguardando por um beijo e um abraço, um sorriso no rosto. Meu companheiro, porém, passa por mim, me ignorando e vai para o quarto. Fico emputecida, e como não poderia deixar de ser, vou atrás dele.
— O que aconteceu?
Ele se senta na cama, passa as mãos nos cabelos escuros como a noite, cobre o rosto, e ao olhar para mim, suspira.
— Juliana, arruma tuas coisas, e vá embora. Não quero mais morar contigo.
Sinto como se tivesse levado um soco e não acredito no que estou ouvindo.
— Não estou entendendo, Eduardo.
— Eu estou terminando com você. Não dá mais para viver com uma mulher que não é uma mulher.
Minha respiração falha, e sinto que vou chorar.
— Eu não sou mulher? O que sou, então? Uma boneca inflável?
— Uma mulher doente, que precisa tomar remédio todo dia. Que vomita, que tem gosto de remédio na boca. Que não transa, porque sente dor. Que não me deixa te apertar, porque te machuca. Eu não quero viver com uma mulher assim.
Aproveito que meu companheiro está me subumanizando, lembrando gentilmente que sou uma deficiente física, para desabafar e contar como me sinto quando as pessoas me olham com pena. Choro, dizendo que sou um ser humano, com uma história de vida e com sonhos que vou realizar com ou sem ele.
Após nossa conversa, ele guarda minhas roupas em duas malas. Nada mais que está aqui dentro me pertence. Ele leva as malas para o porta malas de um carro emprestado pelo patrão e me deixa na porta da casa dos meus pais, que saem a porta para ver quem havia chegado.
Eduardo dá a partida e sai cantando pneus. Olho para a rua, e o vejo sumir na escuridão. Noto que está escurecendo, mas não por causa do cair da noite. O tempo está fechando. Uma frente chuvosa está subindo do Uruguai.
Caminho em direção às pessoas mais importantes da minha vida. Recebo um abraço apertado dos dois e derramo lágrimas de dor e frustração. Dor por meus sentimentos não terem sido correspondidos e por comemorar meu aniversário sozinha.
Meu pai carrega minhas malas para dentro de casa, e minha mãe me ajuda a caminhar. Por causa do abalo emocional, sinto minhas pernas mais frágeis e tenho medo de cair e quebrar algum osso.
Entro na nossa velha casa. Simples e aconchegante. Lembranças da minha infância me vêm na memória.
Meu pai me ensinando a andar de bicicleta, segurando o selim até eu me acostumar sem as rodinhas. Minha mãe batendo claras de ovos na tigela para preparar o bolo de fubá que amo.
Fui muito feliz nessa casa. Quando sai, aos dezesseis anos, acreditei que era dona do meu próprio nariz e que podia escrever minha história sozinha. Conheci o Eduardo, sobrinho de seu Tibério, do bolicho, e começamos a namorar. Alugamos uma casa para construir um projeto juntos. Me desdobrei como estudante e dona de casa, fui leal, carinhosa, e no final tomei um pé na bunda como uma china qualquer.
A custo da dor da rejeição do Eduardo, aprendi o quanto as pessoas são cruéis e te descartam quando tu não tem mais nada a oferecer. E que ter um pai e uma mãe é a maior benção que um filho pode receber, porque eles são amigos que nunca vão nos abandonar.
— Seu quarto está como tu deixou. — minha mãe guarda minhas roupas no armário cor tabaco. — Não mudei nada de lugar.
— Obrigada, mãe. — agradeço apoiando as muletas na parede, ao lado da cômoda.
Me deito com dificuldade, a dor nos quadris me fazendo gemer.
Minha mãe tira minha calça jeans e minha camiseta, me deixando de sutiã e calcinha, e me veste com uma camiseta cinza e uma calça de moletom branca, cobrindo meu corpo com dois grossos cobertores.
Fecho os olhos e sinto os dedos dela acariciarem meus cabelos.
— Amanhã é seu aniversário, minha menina linda. Uma nova fase da sua vida vai começar amanhã.
Suspiro, acenando positivamente.
— Hoje tu está triste. Mas amanhã vai estar melhor. Seu pai e eu sempre vamos estar do teu lado.
— Eu sei. Por isso eu amo vocês.
Sorrio para minha mãe e esta beija minha testa, antes de apagar a luz.
Assim que a porta se fecha, recomeço a chorar.
…
Acordo no meio da noite, acometida de dores horríveis nos quadris e em todos os meus ossos. Me viro de um lado para o outro. O latejar é tão insuportável, que e como se alguém estivesse esfaqueando meu corpo.
— Mãe! Me ajuda! — grito desesperadamente, e em menos de um minuto meus pais surgem no meu quarto e acendem a luz.
— O que está acontecendo, Juliana? Está com dor? — meu pai se senta na beirada da cama e toca meu rosto.
— Me levem ao hospital, por favor! Meu corpo está doendo! Parece que tem alguém moendo meu corpo todo!
— Minha filha, vou pegar seu remédio. — minha mãe abre a gaveta do criado mudo e tira uma cartela.
— Não adianta, mãe! É uma dor horrível, diferente, dói demais!...Eu quero morrer!
Meus pais se entreolham, chocados.
— Que horas são, Bento?
— Falta dois minutos para a meia noite.
Vejo eles baixarem a cabeça, horrorizada que nenhum deles se mexesse.
— Não há nada que um médico possa fazer por ti, guria. — minha mãe diz chorando. — Tenha fé. Tu vai ficar bem. — ela põe minha cabeça em seu colo.
Meu pai sai do quarto.
Um grito de dor e agonia explode da minha garganta. Quero que tudo acabe logo. Sempre acreditei que nada é mais forte do que a vontade de viver, e no entanto, tudo o que quero é que essas dores súbitas e agressivas que esmagam meus ossos frágeis cheguem às minha cabeça e acabem com tudo.
Minha mãe começa a cantar uma canção de ninar, dou mais dois gritos lancinantes e agudos, inspiro e expiro para suportar o suplício.
Uma corrente de ar frio entra pela janela aberta e todo o meu quarto se ilumina com um relâmpago. A tempestade chegou. Ouço um trovão ao longe e o som de um raio atingindo a árvore em frente à nossa casa.
Minha mãe não se deixa abalar pelo repentino acesso de fúria do céu. Eu também sempre gostei de trovões e relâmpagos, amava treinar com chuva. As explosões no céu são como uma canção de ninar, tão doce quanto a que está sendo cantada pela mulher que me gerou.
Aos poucos, as dores horríveis abrandam, voltando ao estágio normal. Minhas pálpebras pesam, sinto o sono voltar, e a última coisa de que me lembro é minha mãe me desejando feliz aniversário.
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